domingo, 15 de agosto de 2021

Centenário de Dom Paulo Evaristo Arns é alento para resistência diante do nazifascismo golpista em ação atualmente. ‘País está despencando pelo precipício’, afirma ex-ministro

 

A um mês dos 100 anos do cardeal, ativistas e entidades se organizam e destacam o legado do religioso, que morreu em 2016

CNBB
Cardeal completaria 100 anos no mês que vem. Tornou-se símbolo do movimento pelos direitos humanos e da resistência ao autoritarismo

São Paulo – A um mês do centenário de dom Paulo Evaristo Arns, algumas pessoas que conviveram com ele se reuniram para falar de seu legado, recordar histórias e enfatizar a necessidade de manter a mobilização no atual momento do Brasil. “Nós temos que seguir o legado dele, temos que lutar pelos direitos humanos, pela democracia, que está em risco”, afirmou o ex-ministro e ex-secretário estadual (de São Paulo) de Justiça, José Carlos Dias, atual presidente da Comissão Arns. Para ele, “o país está despencando pelo precipício, com pessoas absolutamente inconsequentes”. E citou Bolsonaro, o “presidente (que) se distrai andando de moto enquanto as pessoas morrem”.

Advogado de presos políticos durante a ditadura e também integrante da Comissão Nacional da Verdade, Dias participou ontem (10) à noite de encontro virtual sobre dom Paulo, que completaria 100 anos em 14 de setembro. Ele morreu em dezembro de 2016, aos 95. Também estavam na live, apresentada pelo jornalista Juca Kfouri, a ativista Margarida Genevois – que recentemente ganhou biografia, escrita pelo jornalista Camilo Vannuchi – e o presidente do Conselho do Instituto Vladimir Herzog (IVH), Ivo Herzog.

Perseguidos políticos

Na conversa, Dias lembrou da formação da Comissão Justiça e Paz (CJP), na Arquidiocese de São Paulo. Ele recebeu convite para participar de reunião na residência do cardeal – “Uma casa modesta na rua Mococa, no Sumaré” – com outros advogados, como Dalmo Dallari, Fabio Konder Comparato, Mári Simas, José Gregori, Hélio Bicudo. “Dom Paulo falou da necessidade de ter um grupo de pessoas que pudesse dar apoio a ele na defesa dos direitos humanos e protegendo aqueles perseguidos políticos”, recorda. “Foi uma conversa tensa, mas muito forte, que mexeu com cada um de nós.”

Outra lembrança foi de uma viagem a Brasília, ao lado do cardeal-arcebispo, para uma reunião com várias famílias de presos políticos. Eles iriam se encontrar com o então poderoso ministro Golberi do Couto e Silva. “Chega Golberi, ele senta, aí dom Paulo fala: ‘Ministro, estas pessoas que aqui estão vão dar testemunho de violência praticada contra pessoas de sua família. Quero que o senhor ouça”. Então aconteceu um fato impressionante: o Golberi chorou. E disse: eu me comprometo a tentar achar essas pessoas. Claro que isso ficou só na promessa. Mas foi uma cena que eu guardo presente na minha lembrança de uma forma indelével.”

Paz, liberdade, respeito, democracia

Ivo Herzog conheceu dom Paulo quando criança, em circunstância triste: no ato ecumênico em memória de seu pai, morto sob tortura no DOI-Codi paulista em outubro de 1975. Lembra-se dele “acolhendo minha mãe, que tinha acabado de perder o marido, dois filhos pequenos… Sempre me senti muito acolhido por ele.”

Quando surgiu a proposta de criar o IVH, Ivo foi com a mãe, Clarice, e com o jornalista Ricardo Carvalho visitar o já “aposentado” cardeal, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Dom Paulo, conta, já tinha ideias na cabeça sobre a futura entidade. “O instituto tinha que promover a paz, a liberdade, o respeito e a democracia. Essa é a nossa missão até hoje, contra essa cultura estabelecida de ódio e violência.”

Não se pode esquecer

Margarida conta que conheceu dom Paulo por meio de convite feito por Comparato, que a convidava para integrar a CJP. Ela não sabia do que se tratava, e foi com o jurista para uma reunião com o cardeal. “Uma casinha pequena, modesta, um piso só, um portãozinho mínimo…” A reunião foi na cozinha, um lugar mais discreto da casa. Durante duas horas, ouviu relatos de prisões, torturas, desaparecimentos. “Eu nem desconfiava que aquilo fosse possível. Era proibido falar disso no jornal. A quem recorrer?” Depois de formada a comissão, “as pessoas contavam seus dramas, suas angústias, procurando as pessoas da família que tinham desaparecido”, recorda.

Uma dessas famílias era do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. “Eu me lembro dele, pequenininho, devia ter uns 2 anos, nos braços da mãe.” O pai do advogado, Fernando Santa Cruz Oliveira, militante político, desapareceu durante a ditadura.

Margarida lamenta que os jovens atualmente não se interessem tanto pelo assunto, pelas memórias desse tempo. “E isso me machuca muito, sabe? É preciso não esquecer essas dramas que vivemos”, pediu.

Assista ao encontro sobre o legado de Dom Paulo:

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