quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Le Monde Diplomatique entrevista o sociólogo José de Souza Martins sobre os desmandos do governo Temer e o emergir da Terceira Escravidão no Brasil




Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, sociólogo José de Souza Martins analisa desmandos do governo Temer no combate ao trabalho escravo no Brasil


“A Portaria é filosofante, o que não tem o menor cabimento em lugar nenhum do mundo”. É assim que José de Souza Martins avalia a Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho, publicada no dia 16 de outubro e que altera o modelo de fiscalização e combate ao trabalho escravo no Brasil. Professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Martins de Souza é especializado no estudo de conflitos fundiários. Liderou o GERTRAF (Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado), criado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2003, no combate à escravidão, e foi membro do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, entre 1998 e 2007.

A portaria em questão criou novos conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante. De acordo com o novo documento, serão consideradas situações análogas à escravidão a “retenção de documentação pessoal com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho”, a “submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária” a “manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, entre outros tópicos.


A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, concedeu liminar no último dia 24 revogando a portaria, alegando que o texto “teria como efeito provável a ampliação do lapso temporal durante o qual ainda persistirá aberta no Brasil a chaga do trabalho escravo”. A medida foi acatada pelo Ministério do Trabalho e o texto deverá ser analisado pelo plenário do STF nos próximos dias.


Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, José de Souza Martins explica o fenômeno por ele caracterizado como a “Terceira Escravidão” brasileira, analisa o distanciamento da sociedade em relação ao tema, reflete sobre a necessidade de uma Reforma Agrária real e questiona a lógica do capital variável na relação entre empresários e trabalhadores. “Quem sabe pagar pouco para ganhar muito, quem não considera o trabalhador um legítimo agente de capitalismo, quem transforma o outro em mercadoria barata, não é um empresário, é um criminoso, um ladrão de direitos alheios. Esse ainda primitivo ganhador de dinheiro sabe que a tendência da estrutura do investimento deve privilegiar o dispêndio com capital constante, que já é produto histórico e expropriado de trabalho, em face do dispêndio com trabalho, cuja remuneração é o capital variável. Esse explorador do trabalho é apenas ideologicamente “moderno”. Sabe gastar consigo mesmo, mas não tem a menor noção de sua responsabilidade social”, comenta.

Le Monde Diplomatique Brasil: De que maneira as mudanças promovidas pelo Governo Temer, agora revogadas pela ministra Rosa Weber, diminuem as ações no combate ao trabalho escravo?

José de Souza Martins: A Portaria do Ministro do Trabalho, que pretende reconceituar “trabalho escravo” no Brasil, tem o objetivo de definir práticas que as convenções internacionais, de que o País é signatário, definem como escravidão como se escravidão não fosse. Imputa à consciência da vítima a definição do que é o cativeiro e retira dos fiscais do trabalho a iniciativa do diagnóstico com base na lei. Com isso, exacerba a ideologia neoliberal e individualista na caracterização do problema e retira do Estado a função de mediador legítimo da consciência coletiva na caracterização e vigilância daquilo que fere princípios e valores de sustentação da sociedade. A Portaria é “filosofante”, o que não tem o menor cabimento em lugar nenhum do mundo.

Em alguns eventos e entrevistas o senhor disse que a sociedade brasileira não sabe o que foi a escravidão antiga e também desconhece a escravidão contemporânea. Essa análise faz parte do que podemos chamar de escravidão indígena, escravidão negra e a terceira escravidão?

Sim e mais do que isso. O desconhecimento do que é escravidão e do que dela subsiste entre nós decorre da profunda e manipulada alienação do povo brasileiro. Remanescentes de escravidão estão em todos os âmbitos desta sociedade, tanto entre os ricos quanto entre os pobres. Ricos e pobres adotam na vida doméstica técnicas de imposição de subserviência nas relações sociais, do homem em relação à mulher, dos pais em relação aos filhos, de patrões em relação a empregados. No interior da família, as relações sociais ainda são mais de cerceamento do que de libertação e emancipação. A falsa liberdade que aí há é liberticida porque mero privilégio tolo em vez de ser uma liberdade emancipadora e socialmente responsável, baseada no reconhecimento dos direitos do outro e no direito à diferença dos que até aqui carregaram nos ombros o peso das benesses dos que podem e mandam.

Há um distanciamento entre parte da sociedade e a presença do trabalho escravo no Brasil? Em caso positivo, por que isso ocorre?

Não temos no Brasil uma parte propriamente emancipada da sociedade e outra não. Ainda nestes dias vimos um ministro da Suprema Corte fazendo ironia sobre a escravidão. Escravidão para ele é trabalhar muito, quando na verdade é trabalhar indevidamente mais do que o necessário à sobrevivência. Ele pressupõe que cada qual pode renunciar livremente à própria liberdade e que ser vítima de cativeiro é uma questão de opção. Mesmo pressuposto da Portaria do ministro. Na verdade, ninguém tem o direito de renunciar a um direito que é um bem coletivo, um valor do que a sociedade deve ser. Excesso de descabido poder tem sido no Brasil fator de que um indivíduo, no poder, se julgue no direito de fazer o que bem entender e de impor aos outros seu próprio entendimento de como a sociedade deve ser.

Como a lógica do capital variável, ou seja, disponibilizada para a mão de obra na estrutura atual, ajuda a compor o cenário de escravidão contemporânea?

Um sujeito eventualmente ignorante que saiba como fundar e manejar uma fazenda pode ter uma mentalidade levemente capitalista e pseudo empresarial, como aconteceu muito na região amazônica nos anos 1970 e 1980. Isso não faz dele um verdadeiro empresário nem o torna um baluarte da sociedade capitalista. Sociedade capitalista não é nem pode ser a sociedade baseada no lucro fácil e farto, egoísta e sem responsabilidade social. Quem sabe pagar pouco para ganhar muito, quem não considera o trabalhador um legítimo agente de capitalismo, com direito ao justo reconhecimento do que vale o seu trabalho, quem transforma o outro em mercadoria barata, não é um empresário, é um criminoso, um ladrão de direitos alheios. Não sou eu quem diz. Isso está nas teorias, nas leis e nas convenções, nos sentimentos de quem trabalha para outrem. Está nos próprios valores éticos, de fundo religioso, que sustentaram o nascimento do capitalismo.

Esse ainda primitivo ganhador de dinheiro sabe que a tendência da estrutura do investimento deve privilegiar o dispêndio com capital constante, que já é produto histórico e expropriado de trabalho, em face do dispêndio com trabalho, cuja remuneração é o capital variável. Esse explorador do trabalho é apenas ideologicamente “moderno”. Sabe gastar consigo mesmo, mas não tem a menor noção de sua responsabilidade social. É apenas um personagem da modernidade, o moderno como teatro, fingimento e ignorância. Acontece que, de vários modos, o trabalhador de hoje é também “moderno” de algum modo. Isto é, o próprio mercado de trabalho o informou do que é a “normalidade” das relações laborais. No caso da Amazônia, mas não só, para ter o trabalho desse trabalhador por menos do que ele vale é preciso enganá-lo e subjugá-lo. Isso é possível porque o saber do trabalhador é parcial e deformado. Ele sabe, mas não sabe tudo. Educado numa cultura de subserviência, como ocorria no cativeiro da agricultura de exportação, ele tende a acreditar no direito de mandar do patrão e na sua própria inferioridade social. Tudo que o outro faz lhe parece lícito. É a cruz que lhe cabe carregar. Na escravidão contemporânea, isso facilita a subjugação do trabalhador na fase do aliciamento, completada com jagunços e pistoleiros na fase do trabalho, quando as carências cotidianas e a violência física e psicológica lhe mostram que ele já não é gente porque tratado como animal de trabalho.

Você também utiliza o conceito de economia de acumulação primitiva para explicar a manutenção do trabalho escravo. Como essa tese se aplica nas relações de trabalho análogas à escravidão?

A concepção de acumulação primitiva em sido reduzida ao momento da separação histórica entre o trabalhador e seus próprios meios de produção, na agricultura e no artesanato. É quando começa a formação do proletariado para o que é propriamente o capital, isto é, a riqueza como coisa em si. No caso da escravidão contemporânea, o trabalho já está separado das condições de trabalho. No entanto, há nela um desdobramento da acumulação primitiva no fato de que o trabalho passa a ser, também, separado da sobrevivência do trabalhador e de sua família, numa busca perversa do trabalho puro, os ganhos do trabalho aquém das necessidades de inclusão social e de sobrevivência material de quem trabalha.

Em 2007, o relatório da Organização Internacional do Trabalho, denominado Trabalho escravo no Brasil no Século XXI, apontava a Reforma Agrária como instrumento para a diminuição do trabalho escravo no Brasil. Se avançamos pouco na Reforma Agrária, significa que avançamos menos ainda no combate à escravidão contemporânea?

Em princípio, sim. A reforma agrária poderia ter criado condições para o desenvolvimento de uma economia próspera baseada no trabalho familiar, paralela à economia do agronegócio, que criou uma variante do trabalho degradado, que foi o trabalho precário, provisório, temporário e mal-pago do “bóia-fria”, no Sudeste, e do “clandestino”, no Nordeste. Mas teria que ser uma reforma agrária concebida como instrumento de reinserção social produtiva e criativa da família agrícola nas brechas que a economia dominante vem criando, brechas que são o espaço da chamada “exclusão social”.

Assim como ocorreu no combate à escravidão do negro, a luta contemporânea está baseada na libertação das pessoas, mas não na emancipação dessa massa da população?

Os que se inquietam com iniquidades como essa tem uma visão tosca e simplória do que é o capitalismo. Portanto, não conseguem desenvolver senão concepções toscas e simplórias do que são os problemas sociais que decorrem do processo de reprodução ampliada do capital. Os militantes das causas sociais se contentam com interpretações panfletárias desses problemas, interpretações que não levam nem levarão a uma resistência ativa e construtiva às injustiças sociais. Mesmo as igrejas que tem se preocupado com o assunto acabam num questionamento moral do capital, que é necessário mas não é suficiente. Sobretudo porque são elas epidermicamente contra sem saber substantivamente porquê. E, mais ainda, sem ter a menor ideia do que a favor são. Há uma militância contra as injustiças, mas não há práxis, historicamente transformadora e emancipadora. A militância se transformou em refém de um partido ou de uma ideologia e de uma solução mesquinhamente eleitoral dos problemas do país. Basicamente, refém do poder. Ignorou e ignora a historicidade da situação, das mudanças sociais e dos acontecimentos. Não entendeu que para libertar o outro é preciso libertar-se a si mesma das limitações interpretativas, da alienação. Isto é, para transformar-se em agente de emancipação do outro para emancipar a todos. Uma reacionária resistência ideológica ao pensamento sociologicamente crítico privou esses militantes da principal ferramenta de que poderiam dispor para verem-se como agentes do processo histórico e assim poderem ver em perspectiva histórica o outro e sua servidão. Único meio de compreenderem o que é a liberdade como instrumento de emancipação da pessoa não só da pobreza, mas também de suas carências sociais, aí incluída a carência de esperança.

*Guilherme Henrique é jornalista

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