sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Beethoven e o testamento de Heilligenstadt


  Aos 24 anos, em 1794, Ludwig van Beethoven (1770-1827) sentiu os primeiros sinais da surdez que lhe iria acompanhar, de modo crescente, pelo resto de sua vida. Músico de talento, virtuose do piano, compositor promissor, tal descoberta o fez isolar-se cade vez mais das pessoas.

  Em 1802, seguindo ordens médicas, ele parte para passar o verão no então pequeno povoado de Heilligenstadt, próximo a Viena (e hoje um bairro da capital austríaca). Era no campo que ele se sentia em paz e onde lhe vinham as idéias musicais que, anotadas, eram posteriormente trabalhadas em Viena, e eram transformadas em sonatas, concertos, sinfonias de profundidade ímpar. Mas neste verão de 1802 a surdez havia progredido e o músico de 31 anos entrou em profunda depressão. Foi neste estado de alma que ele escreveu uma carta a seus dois irmãos, Karl e Johann, mas nunca enviada, e que foi descoberta depois da morte do compositor.

  Transcrevo a seguir o Testamento de Heilligenstadt. Nela podemos ver a dor e a grandeza da alma de Beethoven. A mesma profundidade nobre e heróica de suas composições se deixa notar nestas linhas escritas em desesperto... Se lembrarmos que muitas de suas obras primas, como a quinta, sexta, sétima e nona sinfonias, bem como suas sontas Appassionata, Waldestein e Lesa Adieux, e as opus 109,110 e 111 foram compostas após o agravamente de seu estado clínico, perceberemos o quão forte era o espírito de Beethoven.

  Boa leitura e reflexões,

  Carlos Antonio F. Guimarães



Testamento de Heilligenstadt







Oh homens, que me tendes em conta de rancoroso, insociável e misantrôpo, como sois injustos comigo! Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo.
Meu coração e meu ânimo sentiam-se desde a infância inclinados para o terno sentimento de carinho e sempre estive disposto a realizar generosas ações; porém considerai que, de seis anos para aqui, vivo sujeito a triste enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos. Iludido constantemente, na esperança de uma melhora, fui forçado a enfrentar a realidade da rebeldia desse mal, cuja cura, se não for de todo impossível, durará anos talvez!
Nascido com um temperamento vivo e ardente, sensível mesmo às diversões da sociedade, vi-me obrigado a isolar-me em uma vida solitária. Por vezes, quis colocar-me acima de tudo, mas fui então duramente repelido, ao renovar a triste experiência da minha surdez!
Como confessar esse defeito de um sentido que devia ser, em mim, mais perfeito que nos outros, de um sentido que, em tempos atrás, foi tão perfeito como poucos homens dedicados à mesma arte que eu possuíam! Mas não me era contudo possível dizer aos homens: "-Falai mais alto, gritai, pois eu estou surdo!".
Perdoai-me se me vêdes afastar-me de vós! Minha desgraça é duplamente penosa, pois além do mais faz com que eu seja mal julgado. Para mim, já não há encanto na reunião dos homens, nem nas palestras elevadas, nem nos desabafos íntimos. Só a mais estrita necessidade me arrasta à sociedade. Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo. Mas que grande humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava! Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou! Pareceu-me impossível deixar o mundo antes de haver produzido tudo o que eu sentia me haver sido confiado, e assim prolonguei esta vida infeliz. Paciência é só o que aspiro até que as parcas inclementes cortem o fio de minha triste vida.
Melhorarei, talvez, e talvez não! Mas terei coragem. Na minha idade, já obrigado a filosofar, não é fácil, e mais penoso ainda se torna para o artista. Meu Deus, sobre mim deita teu olhar! Ó homens! Se vos cair isto um dia debaixo dos olhos, vereis que me julgaste mal! O infeliz se consola quando encontra uma desgraça igual à sua. Tudo fiz para merecer um lugar entre os artistas e entre os homens de bem. Peço-vos, meus irmãos (Karl e Johann) assim que eu fechar os olhos, se o professor Schimith ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever minha moléstia e juntai a isto que aqui escrevo para que o mundo, depois de minha morte, se reconcilie comigo. Declaro-vos ambos hedeiros de minha pequena fortuna. Reparti-a honestamente e ajudai-vos um ao outro. O que contra mim fizestes, há muito, bem sabeis, já vos perdoei. A ti, Karl, agradeço as provas que me deeste ultimamente. Meu desejo é que seja a tua vida menos dura que a minha.
Recomendai a vossos filhos a virtude. Só ela poderá dar a felicidade, não o dinheito, digo-vos por experiência própria. Só a virtude me levantou de minha miséria. Só a ela e à minha arte devo não tere terminado em suicídio os meus pobres dias.
Adeus e conservai-me vossa amizade. Minha gratidão a todos os meus amigos. Sentir-me-ei feliz debaixo da terra se ainda vos puder valer.
Recebo com felicidade a morte. Se era vier antes que realize tudo o que me concede minha capacidade artística, apesar do meu destino, virá cedo demais e eu a desejaria mais tarde. Entretanto, sentir-me-ei contente pois ela me libertará de um tormento sem fim. Venha quando quiser, e eu corajosamente a enfrentarei.
Adeus e não vos esqueçais inteiramente de mim na eternidade. Bem o mereço de vós, pois muitas vezes, em vida, preocupei-me convosco, procurando dar-vos a felicidade. 
Sêde felizes!
Heilligenstadt, 6 de outubro de 1802.
Ludwig Van Beethoven











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