terça-feira, 3 de setembro de 2024

Dora Incontri sobre a série de televisão The Chosen: um Jesus revisitado ou porta-voz da continuidade tradicional das instituições religiosas?

 

Trata-se de um roteiro que, embora liberto de aspectos sisudos e fechados do tradicional, não se afasta dos dogmas do cristianismo ortodoxo



The Chosen – um Jesus revisitado ou tradicional?

por Dora Incontri, no Jornao GGN

Segundo notícias colhidas na rede, mais de 200 milhões de pessoas, entre as quais me incluo, já assistiram à série The Chosen (Os escolhidos), que ainda terá mais 3 temporadas pela frente, além das 4 já exibidas. Algumas particularidades: produção milionária, com financiamento coletivo; um diretor protestante, Dallas Jenkins e um ator católico fervoroso no papel de Jesus, Jonathan Roumie (que esteve até com o Papa Francisco, pedindo conselhos); atores internacionais, como a brasileira Lara Silva, no papel de esposa de Pedro ou o indiano Paras Patel, que interpreta um Mateus autista e nem todos os envolvidos, necessariamente cristãos.

Durante anos, desde minha adolescência, fui fã do Jesus de Nazaré (1977) de Franco Zeffirelli, com um plácido ator britânico, uma plêiade de intérpretes célebres e uma direção que lembrava cada cena um quadro renascentista italiano. Acompanhava Zeffirelli com ardor, por suas direções de ópera, por que sou apaixonada, e por sua autobiografia, em que narra sua participação na resistência antifascista na Itália e seu relacionamento amoroso com seu mestre Luchino Visconti. No final de sua vida, tive de amargar a sua virada à direita, como senador do partido de Silvio Berlusconi.

E eis que surge agora uma releitura muito melhor da vida de Jesus, com a série The Chosen. Primeiro, um Jesus que não é loiro de olhos azuis, mas tem um rosto mais próximo do Oriente médio e fala com um sotaque um tanto árabe; um Jesus que dança, canta, faz piada, abraça as pessoas efusivamente e não deixa que elas se joguem a seus pés. Um Jesus que demonstra seu luto com a morte de João Batista e de Lázaro, que diz suas frustrações e até fica de mau humor. Um Jesus simpático, humanizado, amoroso e vital.

Ao mesmo tempo, a grande sacada do roteiro é dar protagonismo e emprestar histórias verossímeis às personagens do entorno de Jesus, seus discípulos, os familiares destes, seus seguidores e simpatizantes, e então alguns tabus são quebrados. As mulheres também o seguem (e não apenas os 12 apóstolos). Isso está na Bíblia, mas ninguém conta. Maria aparece sempre com ele e é uma senhora simpática, ativa, participante, com ideias próprias e não a personagem quieta, recolhida e submissa de Zeffirelli. Madalena não é prostituta, como a própria Igreja Católica hoje reconhece. Há discípulos e seguidores negros e o próprio José, pai de Jesus, também.

Em meio a tudo isso, a mensagem arrebatadora, profunda, transformadora de Jesus: sua doçura com todos, seus ensinos inéditos de perdão e amor, numa civilização violenta como a romana e numa cultura em que valia o olho por olho e o dente por dente, como a judaica. Sua crítica virulenta contra a hipocrisia farisaica, até hoje tão válida e necessária para desmascarar os que usam a religião para dominar os povos. Suas curas, feitas de ternura e compaixão pelas dores humanas. Sua atitude livre e libertária, que não se submetia à tradição e às convenções. Esse é o Mestre que ainda toca as multidões e nos comove através dos tempos.

Entretanto, trata-se de um roteiro que, embora liberto de aspectos sisudos e fechados da interpretação tradicional, não se desgarra um milímetro dos dogmas do cristianismo ortodoxo: a virgindade de Maria, a concepção pelo Espírito Santo, a ideia de que Jesus era a encarnação de Deus – tudo isso é explicitamente respeitado e declarado e, portanto, é uma imagem de Jesus no máximo ecumênica – quer dizer, das religiões que se afirmam fieis a uma dada tradição cristã, que inclui as igrejas ortodoxas grega e russa, as igrejas protestantes e a católica apostólica romana. Muçulmanos, por exemplo, aceitam Jesus e o honram, mas como um profeta. Espíritas kardecistas e umbandistas (em sua maioria) também falam de Jesus, mas como um mestre superior, um irmão mais evoluído na escala da vida. Filósofos e livre pensadores consideram Jesus um personagem histórico inspirador, mas desataviado de mitificações e dogmas. E há também inúmeras contribuições históricas de pesquisadores sérios, como Bart Ehrman, que relativizam a literalidade das narrativas do Evangelho (no caso de Ehrman, até demasiadamente).

E então algo preocupante surge no cenário: parece que a série está levantando uma adesão – diria – carola, exaltada, de cristãos de todos os lados. Vi cenas de Jonathan Roumie, que se tornou um militante ativo no mundo cristão, falando para milhares de pessoas sobre temas como eucaristia… algo profundamente católico e arraigado na tradição.

Parece então, que esse Jesus renovado e humanizado pode se aproximar de todos, com sua mensagem de uma ética universal e transformadora, mas ainda e sempre pode servir de mote para movimentos muito fincados aos dogmas e aos rituais das igrejas – justamente aquilo que Jesus combateu nos fariseus. Como se nutrir dessa espiritualidade calmante, inspiradora e ao mesmo tempo ativa, que Jesus propõe, e escapar das grades de instituições, dogmas e hierarquias? Como manter a conexão com esse mestre e não se deixar anestesiar por uma teologia aparentemente neutra, mas que carrega consigo séculos de construção complexa, que necessariamente não têm sempre coerência com a mensagem límpida e cristalina de Jesus?

Um desafio constante para alcançarmos uma espiritualidade livre e crítica – sem perda da conexão com o sagrado, com o próximo e dos afetos que a religiosidade implica – passa por uma conscientização das massas de que as religiões trazem muitos traços de opressão. The Chosen mostra isso na atitude dos fariseus, que representam na época, essa tendência preponderante. E Jesus se opôs a esse modelo e sua rebeldia é captada pela série.  Ele pode muito bem ser visto – e na maioria das vezes não é – como alguém que não se adequou à religião e à política dominante, mas abriu trilhas libertadoras, cheias de compaixão e coragem, pagando alto preço por isso – a tortura e a morte. 

Veremos como essa série vai mostrar esse trecho final de sua caminhada!

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

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