Sobre guerra híbrida, política e cristianismo protestante
Imagem: Reprodução – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Luciano Vasconcelos Jr
Em tempos de grande avanço no campo da tecnologia, as formas como se fazem guerras também sofrem alterações.
Hoje, governos que desejam desestabilizar seus rivais não podem simplesmente sair tacando bomba. Assim, em sua sanha imperialista, desenvolveram a tática da guerra híbrida, que o Andrew Korybko chama também de “revoluções coloridas”.
A guerra híbrida consiste em criar condições para geração de instabilidade e/ou caos em alvos periféricos, porém próximos dos que se desejam atingir. Dessa forma, financiam grupos que irão atuar na forma de protestos, teoricamente “apartidários” e com bandeiras que agregam sentimentos comuns à população, como a luta contra “ditaduras” e/ou o desejo por mais liberdades individuais, como ocorreu com a primavera árabe, ou o combate à corrupção, como ocorreu com o Brasil entre 2013 e 2018.
Outro exemplo disso é o que terminou desembocando na Guerra Civil Líbia em 2011, quando revoltosos foram para as ruas e iniciaram uma onda de protestos populares contra a ditadura de Muammar al-Gaddafi, com reivindicações sociais e políticas.
À época a Líbia tinha o maior PIB da África e estava encaminhando alianças com China e Rússia, calos nos sapatos dos EUA.
Grupos da OTAN deram apoio aos populares contra Gaddafi.
No desenvolvimento das guerras híbridas, todos os fatores que possam gerar desestabilização social são levados em consideração.
E a melhor forma de obtenção dos resultados é levar o conflito para fatores periféricos. Inclusive quanto mais periféricos o forem, melhor.
Analisando a partir daí a campanha presidencial do Brasil de 2018, observamos uma forte presença de elementos da guerra híbrida. A começar pelo fato de que, na campanha do atual presidente Jair Bolsonaro, houve uma atuação do marqueteiro da campanha do presidente dos EUA Donald Trump, o Steve Bannon, hoje condenado pela justiça estadunidense.
A tática utilizada pelo Bannon era a da desinformação. Nutrir as redes de fake news ou de notícias que desviavam o foco do que realmente importava se discutir. Vimos o ódio aos imigrantes ser apresentado como proteção aos norte-americanos, por exemplo.
Aqui no Brasil, o foco da campanha foi direcionado para a criminalização da política, quando se evidenciou no discurso de muitos políticos a ideia de combate à chamada política tradicional ou “velha política”; para a moralidade e para o combate à corrupção. Não que isso não seja importante, porém, consideramos que não era e nunca foi o mais importante a se discutir no Brasil.
Em estados democráticos de direito e laicos, moralidade, principalmente a religiosa, não são e nem devem ser o foco principal das discussões políticas. Tampouco são ou deveriam ser programas de governo de quaisquer políticos.
Entretanto, dada a enxurrada de campanhas de criminalização da política, principalmente a que foi realizada por integrantes da Operação Lava Jato, que hoje sabemos que foi direcionada com muito mais ênfase a um dos lados do espectro político (esquerda), criou-se no imaginário popular a ideia de que a política não serve, hoje evidenciada também pelos altos índices de abstenções em pleitos eleitorais, e que para resolver os graves problemas sociais do país, bastava apenas eleger um candidato “honesto, íntegro e não corrupto”, que tudo se resolveria.
Assim, o discurso do à época deputado Jair Bolsonaro, que se apresentou como um candidato que iria combater a velha política, zelar pela moral cristã e pela família, bem como combater a corrupção, canalizou uma grande quantidade de votos. Bolsonaro foi apresentado como um outsider, mesmo estando envolvido com os grupos mais tradicionais da velha política que ele afirmava que iria combater. Passou 11 anos filiado ao PP, partido considerado o mais corrupto do país e que tinha como um de seus líderes o condenado por corrupção Paulo Maluf.
Porém, um dos fatores que considero mais grave nesse processo, é o fato de que Bolsonaro canalizou uma grande quantidade de votos dos chamados cristãos, apesar de seu discurso de defesa de golpe estado, apoio à tortura e a um torturador, armamento da população, e de minimização de direitos humanos.
Setores conservadores do cristianismo, principalmente o de igrejas com tradição de defesa de padrões morais de conduta pessoal (como as Assembleias de Deus, por exemplo), e de denominações com histórico de apoio à ditadura brasileira (como a Igreja Presbiteriana, por exemplo), viram no discurso de Bolsonaro, a possibilidade de combate contra o maior de todos os inimigos: o “comunismo”.
Embora a maior base de apoio “cristão” tenha vindo de grupos neopentecostais e pentecostais, que possuem maior acesso às camadas mais populares, grupos advindos de igrejas protestantes históricas (Batista, presbiteriana, anglicana e luterana) passaram a dar grande apoio ao Bolsonaro.
Assim, partidos de esquerda foram rotulados nas congregações como os piores inimigos a serem combatidos. Aqui em Recife, sendo cristão anglicano mas com grande trânsito em demais denominações protestantes históricas e pentecostais, cansamos de visitar igrejas, onde pastores faziam propagandas abertas pedindo votos para o Bolsonaro e chamando os progressistas de libertinos, defensores do aborto e da “homossexualização” da sociedade.
Retirando assim o foco da pregação do evangelho para combate às mazelas e desigualdades da sociedade, da “proteção do pobre, do órfão e das viúvas” e jogando o foco para o combate a uma imaginária e fictícia “doutrinação comunista” nas escolas, que, segundo esses mesmos líderes religiosos, estariam introduzindo livros que ensinavam as crianças a se transformarem em libertinos e/ou em homossexuais. O chamados Kits gay, que, como professor de redes públicas de ensino, nunca vi chegar para as bibliotecas das escolas mais quais trabalhamos.
Esse discurso moralista e moralizante ganhou a defesa de muitos líderes cristãos protestantes. também nas redes sociais. Pastores de viés progressista passaram a ser duramente acusados de comunistas e, ao se tratar o comunismo como uma ideologia atéia e anti-cristã, passaram a ser rotulados de hereges. Muitos líderes passaram a fazer uma defesa aberta e escancarada do candidato Bolsonaro antes das eleições, dentre os quais podemos apontar o que, talvez, fosse a ainda o é, seu mais fervoroso defensor: Silas Malafaia.
Vale enfatizar aqui que a crítica nesse artigo vai para o Bolsonaro, por ter sido ele o canalizador do apoio desses grupos, mas poderia ser direcionada a qualquer outro que estivesse sido escolhido nas mesmas condições. E que essa escolha fala muito mais sobre como se encontra o pensamento desses líderes e grupos cristãos protestantes do que do atual mandatário da presidência do Brasil.
Pastores publicaram em suas redes sociais textos, com trechos bíblicos e argumentação teológica, inclusive, defendendo o voto no Jair Bolsonaro. Relativizando inclusive as falas do mesmo sobre ser favorável à tortura e sobre outras práticas que os evangelhos, por meio das falas do Cristo ou pela escrita dos apóstolos, condenam.
Muitas das vezes, bastava-se um texto defendendo questões como justiça social, combate ao racismo e proteção maior às mulheres, para que fosse realizado nas redes sociais o linchamento dos pastores que levantavam essas bandeiras. E se fosse condenando homofobia, o linchamento era ainda maior.
Antonio Carlos Costa, pastor com um trabalho social muito ativo por meio da ONG Rio de Paz, e por meio de incursões no interior do Nordeste brasileiro, foi um desses que vivenciou forte linchamento nas redes sociais e foi violentamente acusado de ser comunista.
Recentemente, o pastor Ed Renê Kivtiz, da Igreja Batista Água Branca, teve uma de suas mensagens (Cartas vivas contra letras mortas, pregada em 25 de outubro) desvirtuada do sentido que utilizou ao pregá-la e, ao falar sobre a necessidade de contextualização da mensagem dos evangelhos para a sociedade atual, clamando por combate a racismo, machismo e homofobia, foi duramente condenado de herege e de comunista.
Assim, me parece que, se utilizando de uma pauta periférica (moralidade), o meio protestante é um dos setores da sociedade do Brasil que tem servido para utilização de práticas de guerra híbrida para tirar do foco do que realmente importa (justiça social, igualdade entre as pessoas, antirracismo, fim das desigualdades sociais) e gerar conflitos periféricos que impedem (mesmo que momentaneamente) de mirar nesses alvos.
Segmentos e líderes de igrejas protestantes históricas adotaram o bolsonarismo, atacando o periférico, mirando na moralidade, e usando isso como forma de segregação dos diferentes, que por não seguirem essa cartilha que adotaram, ganham status de inimigos do cristianismo, e por tabela, inimigos do Brasil. Apontam para o desenvolvimento de uma espécie de cristofascismo ou necrocalvinismo, que não apenas se distancia dos ensinamentos dos Evangelhos de Cristo, mas contribui para uma divisão entre os adeptos da própria fé cristã.
Vale a pena ligar o alerta. Deve-se organizar o combate.
Luciano Vasconcelos Jr é graduado em História e mestre em educação pela UFPE. Cristão anglicano e professor das redes municipais de Recife e Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Professor
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