domingo, 20 de fevereiro de 2011

Cisne Negro: Uma aula cinematográfica de Psicologia Junguiana



Carlos Antonio Fragoso Guimarães


A sombra... elemento fantasmático, região do espaço cuja penumbra é provocada quando a luz é impedida de fluir por um objeto... a sombra possui os contornos do mesmo objeto, sendo sua projeção negativa...

Na psicologia junguiana a sombra é a representação arquetípica de tudo o que temos, potenciais bons e maus, que não reconhecemos como sendo nosso, mas que nos segue onde quer que vamos e que geralmente projetamos em outras pessoas...

O psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) criou alguns dos conceitos de psicologia mais populares (apesar da resistência dos freudianos). Conceitos que passaram a ser utilizadas pelas pessoas, como “complexos”, indivíduos “introvertidos” e “extrovertidos”, "sincronicidade" e “inconsciente coletivo” são de sua lavra. Ele também propôs que o comportamento humano possui linhas de reconhecimento universal e que são transcritas, metaforicamente, nos mitos e contos de todo o mundo, independente de tempo e cultura. A tendência polar que todos temos (bem e mal, sapiência e demência, etc.) são expressas em histórias folclóricas, mitos, sagas religiosas e contos de fada.

Na história de “O Lago dos Cisnes”, que foi musicada e, assim, imortalizada pelo compositor russo Piotr Ilich Tchaikovsky (1840-1893), vemos essa polaridade na presença de Odette, a ingênua e romântica princesa que é transformada em um cisne branco, e Odile, sua irmã gêmea, a maliciosa, sedutora e malvada rainha dos cisnes, e que é o cisne negro. Uma e outra personagem são metáforas das polaridades internas extremas e dos potenciais que todos possuímos, mas que, aqui, se inserem mais na questão do desenvolvimento da psique feminina. A menina sonhadora que desperta para o desejo, à competitividade, ao processo de enfrentar desafios. Quanto mais conscientemente uma dessas polaridades é hipertrofiada, o mesmo ocorre com a outra, mas de modo inconsciente, o que pode causar um conflito psicológico que, em casos extremos, leva ao surto psicótico. Esta ocorrência, que Jung tão bem estudou, foi transposta para as telas em um dos mais notáveis (e raros, dentro do padrão comercial hollywoodiano) filmes dos últimos tempos: Cisne Negro (Black Swan), de Darren Aronofsky, com a esplêndida Natalie Portman no papel da, inicialmente, frágil bailarina Nina.

No filme, Nina é uma bailarina dominada pela mãe frustrada e que faz de tudo para se destacar no corpo de baile. Assim, quando surge a chance de interpretar as gêmeas opostas de “O Lago dos Cisnes”, Nina se entrega totalmente ao projeto. Super controlada pela mãe, insegura, emocionalmente reprimida e sem amigos, Nina dedica-se exclusivamente ao balé, buscando uma perfeição exagerada que se reflete no controle exacerbado da alimentação e do controle do corpo que ela trata como instrumento – a única forma de contato mais íntimo (e já sintoma neurótico da alienação que se estabeleceu entre o desejo consciente de perfeição e repressão dos sentimentos, que tentam gritar a partir do inconsciente) é a auto-mutilação que ela exerce inconscientemente sobre si mesma, por arranhões.

Pressionada por seu coreógrafo e diretor Thomas (Vincent Cassel), Nina será questionada, mais uma vez, a demonstrar suas capacidades, já que sua fragilidade ingênua - que é perfeita para o papel de Odette - comprometeria a interpretação de protagonista de “O Lago dos Cisnes”, pois Nina também deve desempenhar o papel da Rainha dos Cisnes, Odile. Nina, então, é desafiada pela própria vida, pelo seu próprio mundo, a entrar em um acordo com sua psique polarizada entre a "persona" consciente, o papel de menininha da mamãe, e a sua sombra: a mulher sedutora, violenta, que ela reprimie no inconsciente. Nina é a atualização conteporânea da figura mítica de Perséfone: sua mãe é uma Démeter que tenta controlá-la e ver nela a bailaria que não foi e isso impede o desenvolvimento de Nina. Logo ela terá de enfrentar as forças psíquicas represadas em si, seu próprio Hades: precisa integrar, reconhecer-se em sua própria profunidade, sentir seus elementos aparentemente "negativos" se quiser atingir a perfeição (metáfora da individuação). Ela tem de desempenhar simultaneamente o cisne branco (símbolo da pureza e ingenuidade) e o cisne negro (metáfora para a malícia, sensualidade e maldade). Ou seja, Nina teria de unir, na prática, sua própria psique fraturada entre a “menina” meiga e passiva, cujo quarto é cheio de ursinhos de pelúcia, e a mulher que é/foi reprimida pela mãe e por ela mesma, Nina. O desafio da individuação, contudo, não é isento de perigos.

O cisne Negro é, portanto, o desafio do encontro de Nina com sua própria sombra, ou, seja, segundo Jung, com todos os elementos que possuímos mas que são reprimidos, que não reconhecemos como sendo nossos. A questão da projeção interna no meio externo fica sugerida várias vezes pela presença de espelhos sempre presentes ante Nina. Sua maior rival no corpo de baile, a sensual e desinibida Lily, papel desempenhado pela brilhante atriz Mila Kunis, é ao mesmo tempo seu alter-ego, a pessoa que estimula a eclosão do "Cisne Negro" em Nina. Na verdade, as duas belas bailarinas acabam sendo expressões de Odile o Odette ao nível da disputa real, embora, na mente conturbada de Nina, Lily acabe por apresentar traços mais fortes do que realmente possui.

Está claro que Aronofsky em seu filme discorre sobre a fragilidade e o tênue equilíbrio da mente humana, bem como as forças que se desencadeiam no palco psíquico quando uma perturbadora ambição a move em busca de um sonho, mas o faz de uma maneira ao mesmo tempo cruel e poética, o que mexe com a psique da maioria das pessoas que assistem o filme, atingidas, inconscientemente, pelos elementos expostos e que repercutem na própria sombra, na própria polaridade consciente/inconsciente, na dualidade do bem/mal de cada um.

Na busca pela perfeição e na tentativa de provar a Thomas que é capaz de desempenhar o papel (e, inconscientemente, de integrar e expor seu lado mais selvagem), Nina é conduzida de tal forma pelo enredo e pela busca da perfeição que não consegue perceber que isso está liberando todo o seu mundo de elementos reprimidos, que explode de tal modo que ela já não consegue perceber mais os limites entre sonho e realidade. Aos poucos, seu destino se sobrepõe ao enredo de “O Lago Dos Cisnes”. A música de Tchaikovsky, dramática e bela, é quase como uma expressiva contrapartida de sua metamorfose, elemento sonoro envolvente que "narra" e expressa a tempestade íntima de Nina, o que realça de tal modo os sentimentos da personagem que se torna indispensável à trama.

A sombra de Nina, exemplificado pela essência de sua feminilidade, aflora e toma conta de sua personalidade sem que ela consiga controlá-lo. Dá-se inicio a uma metamorfose que expressa aquilo que acontece com muitas pessoas que sucumbem à emergência do material inconsciente pela psicose. No caso de Nina, vemos que tal emergência conduzirá a protagonista a conflitos que a levam a um destino perturbador e extraordinariamente poético, apesar de trágico, numa interpretação arrebatadora de Natalie Portman.

O Filme “Cisne Negro” é uma aula de psicologia e cinema, de poesia dramática e filosofia, indispensável ao estímulo do pensar sobre a vida.

2 comentários:

  1. Carlos Antônio, Fantástica as colocações e percebi um pouco diferente, já que sigo a linha freudiana, no entento, muito elucidativo.
    Meu blog: alicegatodecheshire.blogspot.com
    Abraços.

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  2. Carlos Antônio só hoje tomei conhecimento do seu texto, que é lindo, suas colocações são perfeitas para leigos no assunto como eu mas que admiram a sincronia junguiana com a arte cinematográfica. Eu gostei demais do seu texto e aprendi muito com ele.

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