domingo, 29 de dezembro de 2024

E os ricos rentistas improdutivos (como os da Faria Lima e seus banqueiros) peferem o fim do planeta do que o questionamento e/ou mínima perda de seus privilégios...

 

Para escapar da prisão invisível

Em todo o mundo eurocêntrico, a política permanece impotente — porque os muito ricos preferem o fim do planeta ao fim de seus privilégios. O que é preciso para vencê-los? Qual o papel, neste cenário, de um jornalismo de profundidade?


Eleito em meio a esperanças, o governo acabou por ceder aos que capturam, sem nada produzir, a riqueza de um país regredido e extenuado. Por isso, o Parlamento apressou-se a aprovar as novas leis, que reduzem direitos sociais e ampliam a desigualdade. Tramitaram a jato, em violação mal disfarçada à Constituição. Em debate público, houve chantagem explícita dos “mercados”, que investiram contra a moeda nacional. A mídia participou, ao difundir as ideias – evidentemente falsas – de que “as contas públicas não fecham” e “é necessário um ajuste fiscal”.

Os parlamentares da oposição que resistiam foram demovidos pela liberação de bilhões de reais em emendas. Mas ao recompensá-los, o Executivo não ganhou mais liberdade. Ao contrário: pagou para que lhe vestissem uma camisa-de-força. Agora, será ainda mais difícil ampliar os investimentos públicos. Num contexto adverso, enquanto não há força para reformas estruturais, seriam o principal caminho para reduzir a injustiça social. Mas escandalizam o 0,1% que quer o dinheiro do Estado apenas para si.


Ao vencer, este grupo se prepara (e se fortalece) para novas pressões. Não haverá trégua. Foi pouco, dizem os porta-vozes dos rentistas, mal terminadas as votações. O ministro da Fazenda e o novo (?) presidente do Banco Central lhes dão razão: “não existe bala de prata”, disseram há poucos dias, para sugerir que novas maldades virão. Como no filme O Feitiço do Tempo, o “ajuste fiscal” é um pesadelo que nunca termina.

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São bastante conhecidos – e viáveis – os meios para evitar um colapso climático. O uso de combustíveis fósseis precisa ser reduzido, por meio de amplos investimentos em fontes energéticas limpas. Redes de transporte coletivo devem substituir, em larga medida, o automóvel. A construção das infraestruturas necessárias tem um efeito colateral positivo, pois pode gerar milhões de ocupações dignas, num mundo carente de direitos para as maiorias. Reduzir o abismo social importa – pois o 1% mais rico (77 milhões de pessoas) emite, por seu padrão de consumo, tanto CO² quanto os 66% mais pobres (5 bilhões de humanos)… O combate ao consumismo pode ser complementado com medidas específicas, como a restrição à pecuária industrial. Não podem ser mais tolerados processos hoje muito difundidos – como a obsolescência programada e a produção incessante de embalagens descartáveis (especialmente plásticos).

E apesar de estarmos todos cientes dos caminhos, fracassam, uma após a outra, as conferências da ONU convocadas para encarar o problema. Nada indica, por enquanto, que será diferente na COP30, em Belém. Os dois principais motivos são normalmente ocultados, pois apontam para o parasitismo do capital financeirizado. No Ocidente, as corporações agigantaram-se e já não aceitam ser limitadas nem pelas sociedades, nem pelos Estados. Um pequeno tributo internacional sobre as transações financeiras (como a Taxa Tobin), ou sobre a exportação de petróleo e minérios, permitiria financiar a transição energética nos países pobres, hoje sem forças para realizá-la. A construção de grandes redes de ferrovias e metrôs (como se faz na China) faria despencar as viagens unipessoais e a venda de carros. O que impede a adoção de medidas como estas não é sua suposta inviabilidade mas… sua eficácia.

O segundo motivo talvez seja de ordem político-psicanalítica. Como não se cansa de lembrar o economista Ladislau Dowbor, os avanços técnicos das últimas décadas permitiriam assegurar vida digna a todos os seres humanos. A riqueza produzida coletivamente equivale a 3,3 mil dólares por mês (R$ 20 mil) por família de quatro pessoas.

Mas onde há abundância, não há privilégio. É óbvio que o Brasil será um país mais justo e feliz, se o Estado destinar ao SUS, à escola pública de excelência e à despoluição dos rios urbanos os R$ 800 bi que transfere todos os anos aos rentistas. Mas talvez a frase célebre de Mark Fisher (“parece mais fácil acreditar no fim do mundo que no fim do capitalismo”) precise de um complemento. Isso se dá também porque, para o 0,1% que controla o poder, é mais fácil aceitar a extinção do planeta do que o fim de suas regalias…

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Como escapar de uma prisão invisível – ou seja, daquela que, estando inscrita na subjetividade social, é mais eficaz do que qualquer outra? Os privilegiados desejam o fim da Política como potência coletiva (daí seu permanente flerte com o fascismo). Mas por que – sendo tão minoritários – sua ideia de que as mudanças sistêmicas são inviáveis ainda prevalece?

Passadas quatro décadas da queda do “socialismo real”, perdura a ausência de um novo horizonte emancipatório. Por não se sentirem ameaçados, os rentistas responderam à crise iniciada em 2008 radicalizando seu projeto e sua cobiça. Os governos ocidentais nunca emitiram tanto dinheiro em favor dos mais ricos, nem atacaram tão ferozmente o Estado de bem-estar social. As megacorporações e fundos serviram-se da tecnologia não para reduzir o tempo de trabalho – mas para torná-lo mas intenso e desprotegido. A periferia foi submersa novamente na condição de semicolônia.

O déficit de projetos e consciência não está apenas no plano teórico. Espraia-se também no terreno da informação. Ao estabelecer uma aliança de facto com o capital financeiro, o governo brasileiro provavelmente ignora as consequências devastadoras deste movimento – e desconhece, em especial, as novas teorias que mostram como seria possível evitá-lo. Quando transferem seus bancos de dados para o Google ou a Meta, as universidades e o Judiciário do país parecem desconhecer que estão oferecendo seu bem mais precioso (conhecimento estratégico) em troca de espelhinhos.

* * *

Outras Palavras empenha-se em nadar contra esta maré – embora com menos recursos do que seria necessário. Nossa seleção de melhores textos de 2024 é um testemunho. Nela estão presentes textos sobre a conjuntura brasileira. Orgulhamo-nos de ter advertido, já em abril de 2023, que o “arcabouço fiscal” e o teto de gastos implícito “apequenarão(iam) o governo Lula”. Mas procuramos ir muito além.

Convidamos nosso público a inteirar-se das reflexões mais atuais sobre a Crise Civilizatória e seu desdobramento – o Colapso Climático. Apresentamos o intenso debate — inclusive teórico — acerca da emergência do rentismo, seus desdobramentos devastadores e as formas de enfrentá-lo. Chamamos atenção para as consequências, num país periférico: o inchaço de setores destrutivos, social e ambientalmente, como o Agronegócio. Suscitamos esperanças – ao evidenciar, por exemplo, a emergência do Sul Global, ou a crise do eurocentrismo.

Abordamos – dos pontos de vista político e científico – o avanço da Inteligência Artificial, suas imensas potencialidades e, em contrapartida, as ameaças que ela representará enquanto permanecer sob controle de megacorporações privadas. Destacamos o SUS e o Comum da Saúde, em contrapartida à medicina de negócios. Investigamos os feminismos, as novas relações afetivas e as identidades antissistêmicas. Seguimos acompanhando e difundindo as reflexões sobre o pós-capitalismo. Há mais. A seleção desdobra-se em 14 temas que julgamos de enorme relevância para compreender o mundo contemporâneo e (em especial) para transformá-lo.

Anos difíceis virão. O avanço da ultradireita continuará presente, enquanto as forças populares não puderem recompor um projeto capaz de empolgar as maiorias e de se reapresentar como o autêntico “antissistema”. Em resposta à sua crise, o Ocidente pode empreender guerras brutais, como o genocídio praticado por Israel em Gaza. Não nos enganemos: tudo isso são sintomas de um declínio. A força do sistema estava em sua capacidade de incorporar as demandas populares e construir hegemonias, nos anos 1940-70. Agora, é época de trevas.

A grande pergunta é: seremos capazes de salvar a humanidade e o planeta, antes que a fúria destrutiva do capital-rentismo os destrua? Ainda é impossível saber. Lutaremos muito – esperamos que com sabedoria – nos próximos anos. Temos o impulso de novos estímulos. O VAT e as ações pela redução da jornada de trabalho demonstram como há espaço para mobilizar as maiorias, quando se está disposto a ouvir e sentir seus dramas. Há alguns meses, a campanha contra o PL dos Estupradores relembrou que é possível e necessário pressionar a institucionalidade – e alcançar vitórias.

Estamos nos despedindo de 2024. Outras Palavras Outra Saúde entrarão em recesso a partir de 22/12. Desejamos festas criativas, descanso regenerador, chances de refletir. Nos reencontraremos em 2025.

Abraço forte da
Redação de Outras Palavras

Natal: seremos julgados por uma criança... Artigo de Leonardo Boff

 

"O presépio com o menino Jesus tiritando de frio nos traz uma lição que quase sempre esquecemos: os pobrezinhos foram os escolhidos para serem os primeiros a acolherem Deus quando Ele quis entrar em nosso mundo."

Do site do Instituto Conhecimento Liberta - ICL:



Não é fácil celebrar o Natal, o nascimento do menino-Deus quando nos deparamos com o genocídio de milhares de crianças na
 Faixa de Gaza, por um Herodes moderno cruel e insensível. Elas bem poderiam ser os parentes deste menino-Deus. E contudo, não podemos deixar de cultivar discreta alegria no Natal em razão da mensagem tão humana e consoladora que ela nos comunica.

Quem viu isto mais e melhor que qualquer pregador ou teólogo foi o poeta português Fernando Pessoa, com conteúdo enternecedor. Escreveu estes versos que nos vão ao profundo da alma:

Ele é a Eterna Criança, o Deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

É por isso que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

É a criança tão humana que é divina.

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro.

Mas vivemos juntos os dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro de tua casa.

Despe meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

Essa eterna Criança não veio para divinizar o ser humano mas para humanizar Deus que ninguém jamais viu, como atestam todas as Escrituras. Mas na realidade deste menino que chora e ri, que molha as fraldas e busca faminto o seio materno Deus mostrou-se a si mesmo. Não como um ancião de barbas e rosto severo como quem perscruta tudo de nossas vidas para nos julgar. O Natal nos assegura: Deus é criança. Que alegria sabermos que seremos julgados e acolhidos por uma criança! Ela não quer julgar ninguém. Ela apenas quer ser amada e acolhida.

Do presépio nos vem uma voz que nos sussurra:

“Oh criatura humana, não tenhas medo de Deus! Não vês que sua mãe enfaixou seu corpinho frágil? Uma criança não ameaça ninguém. Nem condena ninguém. Mais que ajudar, ela precisa ser ajudada e carregada no colo”.

O presépio com o menino Jesus tiritando de frio nos traz uma lição que quase sempre esquecemos: os pobrezinhos foram os escolhidos para serem os primeiros a acolherem Deus quando Ele quis entrar em nosso mundo. Foram os pastores, na época, desprezados e tidos como pobres. Há um privilégio do pobres: Jesus quis ser um deles. Este fato confere uma dignidade única aos pobres. Por isso, Jesus mais tarde irá dizer: “o que fizerdes ou deixastes de fazer a esses meus irmãos e irmãs menores, os famintos, os sedentos, os encarcerados e nus, foi a mim que o fizestes ou deixastes de fazer”. Não há ofensa maior que desprezar um pobre, não ver seus olhos suplicantes de fome e mais de ternura e de dignidade. Lembremos: no momento supremo da história, são eles que nos vão julgar e vão decidir nosso destino.

Portanto, que neste Natal eles estejam presentes em nossa mente, aqueles da Faixa de Gaza, famintos e sedentos não sabendo como se esconder das bombas que tudo destroem e os ameaçados pelos sicários de aluguel na Síria recém-conquistada.

No dia do Natal, olhemos uns para os outros com olhos de bondade e de fraternidade. Olhemos fundo o nosso próximo e lembremo-nos que ele é um irmão de Jesus e um irmão nosso e uma irmã nossa.

Abracemos nossos filhos e filhas como se fôssemos abraçar o menino Jesus.

Depois que Deus se fez um de nós, ninguém tem mais motivos para ficar triste e desesperado. Agora o direito cabe à alegria e ao amor.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Então, é Natal…, por Dora Incontri

 Jesus dialogava com judeus, samaritanos e pagãos e não se fazia impositor de nada, apenas passava pelos caminhos, aberto ao amor

    Jesus Cristo, obra de arte do artista palestino Sliman Mansour


Então, é Natal…

por Dora Incontri, no Jornal GGN

Sempre gostei do Natal e nunca deixo de escrever um poema ou um texto para celebrar a data. Não que me aprazam o comércio, Papai Noel e saber que muitos não terão qualquer presente ou mesmo o que comer. Gosto pela tentativa – muitas vezes frustrada – de união de família, de aconchego dos afetos; gosto do impulso solidário e caritativo que as pessoas tendem a demonstrar nesta data e que bem poderia se estender pelo ano todo e, sobretudo, me conforta a busca minha e de alguns de maior conexão com Jesus.

Não que acredite na historinha da manjedoura, dos reis magos, da estrela de Belém, dos pastores… é um símbolo lindo, cheio de significados, reinventado por Francisquinho de Assis no presépio que montamos por aí. Jesus nasceu em Nazaré, filho carnal de Maria e José, no meio de muitos irmãos, numa família pobre, operária, num lugar pequeno e inexpressivo, mas que ficou marcado na história pela irradiação de sua luz.

E este homem, mestre de fraternidade, profeta do anúncio de um Reino, revolucionário sem armas, humanista pleno, amoroso com toda a humanidade, indignado com aqueles que lhe exploravam a fé e com as injustiças de seu tempo e de sempre, é este homem que celebramos, e que tem inspirado tantos santos, pensadores, ativistas a buscarem o seu Reino na Terra e no além.

Este homem que não foi traído por Judas com uma intencionalidade perversa, e sim por um equívoco de intenção de projetá-lo como messias coroado em Israel. Mas, sim, este homem foi traído ao longo dos séculos até os dias de hoje, por seus próprios seguidores. Por tantos que usam seu nome para matar, perseguir, descriminar, oprimir, explorar. Exatamente o contrário de tudo o que ensinou e exemplificou, este mestre que não aceitava submissão, ao invés, dizia que viera para servir; esse ser humano que se dizia “filho do homem” para afirmar sua humanidade e acolhia a todos, judeus e romanos, homens e mulheres, centuriões e marginalizados, entregando-lhes um amor sem medida.

Não Jesus como um salvador-Deus, que morreu pelos nossos pecados, mas como um irmão de caminhada, que abriu as trilhas para o mundo, da possibilidade de um amor universal, de uma reconciliação com adversários, de um perdão inédito na história e, sobretudo, pela utopia de um Reino de justiça e igualdade, que seus seguidores sinceros têm lutado por construir entre nós.

Também não, um Jesus de supremacia colonial, de imposição de fé, de chefe de igrejas dogmáticas e hierarquizadas – embora dentro de todas haja pessoas de boa vontade e que ensaiam comunhão com os seus ensinos. Mas um Jesus que dialoga com Buda e com Maomé, com Confúcio e com Lao-Tsé, com os Orixás e com os Xamãs. Pois em seu tempo, ele dialogava com judeus, samaritanos e pagãos e não se fazia impositor de nada, apenas passava pelos caminhos, aberto ao amor para com todos e todas.  

É esse Jesus que amo, que me inspira e que desejo seguir. Estou convencida de que sua mensagem de paz, solidariedade e esperança pode semear por nossas mãos, um novo mundo. E neste Natal, que para mim está entristecido por lutos pessoais, e que sempre me leva à compaixão e ao lamento pelos males sem conta deste planeta, de tanta violência, exploração, de tantas feridas pessoais e coletivas, neste Natal ainda e sempre, lembremos do aniversariante! Procuremos uma sintonia fina com sua presença amorosa, que nos conforta e nos atrai para destinos mais felizes! Façamos de seu exemplo um roteiro de vida e de suas palavras um refrigério de paz e uma possiblidade de esperança. Feliz Natal para todos e todas, que se sentem identificados com essa incomparável figura história, mas também para aqueles que se sentem traumatizados pelo que fizeram em seu nome! Feliz Natal, na medida do possível, nesta virada de um ano que se anuncia com muitos desafios, mas que haveremos de enfrentar com força e coragem! Amém, assim seja!

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.


Amém, Axé, Saravá: o significado do Natal para diferentes religiões no Brasil

 

Em entrevista ao ICL Notícias, lideranças do Candomblé, da Umbanda, do Catolicismo e de Igrejas Evangélicas fazem uma reflexão sobre a data



Por Amanda Prado

É Natal, uma das principais datas comemorativas do calendário ocidental, período marcado por celebrações entre os dias 24 e 25 de dezembro. Na cultura cristã, a festa relembra o nascimento de Jesus Cristo em Belém, atual Cisjordânia, território palestino ocupado por Israel. A palavra Natal tem origem no idioma latino e faz referência à palavra “natalis”, que significa “nascer”.

É difícil estabelecer a origem exata do Natal devido à falta de fontes documentais precisas. A teoria mais aceita é a de que o Natal surgiu em festas pagãs da Roma antiga, em meados de dezembro. Enquanto festa cristã, entende-se que a cerimônia surgiu em algum momento entre o século II d.C. e IV d.C. Não se sabia exatamente o dia do nascimento de Cristo.

As celebrações romanas tinham relação direta com o solstício de inverno (no caso do hemisfério norte), um fenômeno astronômico caracterizado por iniciar a nova estação. Nesse período, costumava-se realizar grandes festas para atrair fertilidade e celebrar o “renascimento” do sol, já que o solstício de inverno é o dia de sol mais curto do ano. Vários povos festejavam essa época. Ao longo do tempo, o culto do sol passou a ser associado ao nascimento de Jesus de Nazaré – ou seja, “a luz do mundo”.

Em terras brasileiras, o sincretismo religioso associa Jesus Cristo a Oxalá. Nos terreiros de Umbanda, por exemplo, há imagens de Jesus e de Nossa Senhora nos congás, e também aparece o nome de Jesus em vários pontos cantados. Na cultura iorubá, Oxalá é uma das divindades mais antigas, Orixá responsável pela vida e pela criação dos seres humanos. O poder de Oxalá está simbolizado em suas vestes brancas, representando seu alto nível de moralidade e ética.

No Brasil, um território tão vasto e plural, o Natal é parte de celebrações sociais e culturais, indo muito além do sentido religioso. Nesta reportagem, o ICL Notícias ouviu lideranças do Candomblé, da Umbanda, do Catolicismo e de Igrejas Evangélicas para uma reflexão sobre o tema. Embora existam realidades semelhantes, as práticas são individuais de cada terreiro, de cada igreja, de cada templo. Não é possível generalizar. Em linhas gerais, a mensagem é de união e fortalecimento, na fé de Jesus Cristo e de Oxalá, tudo com respeito.

A relação do Natal com o Candomblé

Em entrevista, o Babalawô Ivanir dos Santos, pesquisador e coordenador de área de pesquisa no Laboratório de História das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ) e também colunista do ICL Notícias, falou sobre o Natal na perspectiva da sua religião.

“No Candomblé, na visão iorubá, de origem africana, a ritualística não tem a ver com o Cristianismo. Orixá é força da natureza. Sem natureza não tem Orixá. Sem folha não tem Orixá. Isso tudo é anterior a Jesus Cristo. Se fôssemos seguir o calendário iorubá, por exemplo, o ano novo nasce no primeiro domingo de junho. Mas a realidade é que estamos no Brasil, e naturalmente vivenciamos um candomblé construído no nosso território. Uma coisa é a tradição milenar que cultuamos: sagrado é a terra, a água, o ar e o fogo. Isso não tem sentido cristão. Mas precisamos lembrar que nos séculos 18 e 19, aqui no nosso país, a Igreja era o Estado e a data era feriado. Essa é uma representação de poder porque se trata de uma questão colonial. Nesse momento, os escravizados faziam suas reverências. Uma coisa dialoga com a outra. Era a licença que se tinha para dizer que Iansã é Santa Bárbara, mas Iansã é muito anterior. Uma coisa não tem a ver com a outra”, explica Ivanir.

Segundo o babalawô, levando em conta que o Candomblé é uma tradição afro-brasileira, a religião se configura em diálogo com a Igreja Católica, por isso o Natal é comemorado como uma forma de confraternização entre as pessoas, mas sem significado dentro do culto religioso.

“Temos nossas várias festas, como a festa do Boi de Oxóssi, a Fogueira de Xangô, o Balaio de Oxum, de Iemanjá, etc… mas o Natal em si remete mais a uma reunião familiar. Somos brasileiros, as famílias são muito plurais, isso está na nossa cultura, dizemos ‘Feliz Natal’ como uma saudação normal. É um momento de felicidade e solidariedade, mas apenas pela lógica cultural. Quando vira o ano, para ritualizar a passagem, fazemos o que chamamos de Osé da casa, que significa lavar a nossa casa, lavar o nosso terreiro para começar o ano bem”.

Feliz Natal

Foto: Agência Brasil

O Natal na visão dos umbandistas

Na Bahia, na cidade de Juazeiro, Tata Edson do Congá do Seu Zé explica que sua prática se baseia nas tradições africanas, especialmente na tradição bantu – povos que chegaram ao Brasil entre os séculos 16 e 17. Conforme a filosofia bantu, os ciclos são extremamente importantes para a vida. Há o entendimento de que é preciso crescer, construir comunidade, realizar objetivos pessoais em conexão com o coletivo e estar em harmonia com os ancestrais. “Não seguimos o calendário cristão e não comemoramos o Natal. No entanto, no final do ano, realizamos uma série de ritos porque entendemos que a virada de um ano para o outro é virada de um ciclo de vida”, diz.

“Para que o novo ciclo inicie de maneira positiva, com todo mudo bem de saúde, forte espiritualmente e em harmonia com os ancestrais, a gente cumpre um rito de fim de ano. Nos reunimos para rever o caminho percorrido até aqui e ter algum vislumbre do que precisa mudar. Realizamos consultas com os filhos da casa, limpezas espirituais, descarrego. Depois vem a conversa geral, com Seu Zé Pelintra, que fala com todos sobre o que precisa melhorar, como foi o ano, como cada um precisa trabalhar para se fortalecer e enfrentar os desafios. Depois do período de preceito, temos a nossa confraternização. E encerramos com o banho da virada, que é o banho de folhas que a gente prepara pro último dia do ano e pra virada também”, diz.

Além desses rituais, Tata Edson explica que, segundo a tradição africana bantu, o ano precisa fechar com o trabalho de Exus, Pombagiras, Pretos e Pretas Velhas. “Eles encerram os ciclos na nossa casa. Exus e Pombagiras fecham demandas de conflitos, de caminhos e de questões materiais; Pretos Velhos e Pretas Velhas fecham ciclos de demandas espirituais e afetivas.” No caso do início do ano, 2025 vai começar com a licença dos caboclos, conhecidos como “ancestrais da terra”. “Antes de qualquer coisa, os primeiros trabalhos do ano no nosso terreiro de Umbanda são em homenagem aos caboclos”, diz o Tata.

Ou seja, os rituais estão mais relacionados ao fim e ao início do ano, à transição, não ao dia do Natal em si. “A nossa sociedade vai parando, vai entrando em período de recesso, é feriado… então nos juntamos a esse calendário porque as pessoas vivem nessa lógica mesmo, precisam descansar, têm folga do trabalho… mas não nos apegamos ao sentido religioso da data. O que fazemos em seguida são oferendas a Oxóssi — para que o ano seja farto e próspero.”

Feliz Natal

Filhos do Congá do Seu Zé, terreiro de umbanda localizado em Juazeiro, na Bahia

No Rio de Janeiro, Paulo Júnior, Babalorixá do T.E.U. Choupana de Oxóssi, descreve como são feitos os trabalhos no terreiro nessa época do ano. “A nossa Umbanda tem Jesus como guia e o seu evangelho como instrumento de formação de caráter. Nesse momento, religiões cristãs festejam o Natal, a data da encarnação de Jesus. O período culmina também com o final de ano e o réveillon. Temos um recesso, mas não por causa do Natal, e sim pelo período de descanso e festividades. O nosso terreiro trabalha o ano inteiro com consultas, passes, projetos de assistência à comunidade, solidariedade aos irmãos em situação de vulnerabilidade… mas nesse período de fim de ano a gente faz uma pausa para os médiuns organizarem suas vidas, festejarem com suas famílias, descansarmos um pouquinho”, diz.

O terreiro ritualiza esse período com a última gira do ano. “É um momento de reflexão, de comunhão, de amizade e de amor, como é Jesus. É um momento de confraternização. Dentro da nossa liturgia, a gente faz a canjica de Oxalá ou, como alternativa à canjica, temos também o pão, o peixe e o vinho, simbolizando a Santa Ceia, que está no evangelho. São alimentos que fortalecem a nossa comunidade, junto das reflexões, com as palavras dentro do terreiro e um sentimento de muito amor”, relata o babalorixá.

“O encerramento é uma homenagem ao governador do nosso planeta, o Cristo Jesus, reavivando os seus ensinamentos, refletindo sobre como a gente pode por em prática tudo isso. É preciso destacar que, dentro da nossa fé umbandista, nós entendemos Jesus como um espírito de enorme evolução”, explica o babalorixá. E acrescenta que, mesmo para quem não tem religião, a história de Jesus é um grande manual de fraternidade. “Quando a gente diz que Jesus é a salvação, é a sua palavra que é a salvação, é o norte para todos nós encarnados aqui nessa terra. Porque a grande mensagem que ele deixou é de amizade, de perdão. A mensagem de que a única lei que deveria reger o nosso planeta é a lei do amor. Devemos caminhar para isso”.

Feliz Natal

Filhos da Choupana de Oxóssi, terreiro de umbanda na Zona Norte do Rio de Janeiro, na última gira do ano

O período do Natal nas igrejas evangélicas

Em Maceió, no estado de Alagoas, a pastora Odja Barros é a liderança à frente da Igreja Batista do Pinheiro há mais de 30 anos. Segundo ela, o evento natalino, assim como a Páscoa, é similar em todas as correntes cristãs. Cada igreja celebra de maneiras próprias, mas não há muito como divergir do sentido principal. “Nesse momento em que se celebra o Natal, dentro da tradição chamada cristã, há um encontro. A mensagem do Natal atravessa todos os fieis do Cristianismo. Natal é o momento em que Deus abraça a humanidade, se faz gente, criança, chega na história, se humaniza”, relata.

“Falando em nome da Igreja Batista ou dos protestantes e evangélicos, compreendemos um Deus que encarna numa criança vulnerabilizada na periferia do mundo. É um Natal vivido pelas mulheres através de uma jovem também periférica de Nazaré da Galileia, evocando a escolha de Deus de nascer no corpo de uma mulher, numa cultura muito pior do que a nossa. Esse corpo feminino gesta o Salvador por uma visitação divina. Isso é muito ainda para a nossa cultura, imagine para aquela época. Deus não nasceu de um imperador ou um rei. Ele nasceu no seio dos humanos mais massacrados pelas estruturas de poder e carrega uma mensagem não só política — mas de fé transformadora pra esse mundo”.

feliz natal

Culto de Natal na Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió, Alagoas

A igreja que Odja lidera se junta ecumenicamente no Natal para celebrar a data com protestantes e católicos. As cerimônias começam quatro semanas antes do Natal, no período chamado de “advento” (do primeiro domingo de novembro ao último), uma preparação ritualística que significa a espera da chegada da criança que vai nascer. Os fiéis se reúnem para cultos, leituras bíblicas e meditações, revivendo a cena do Natal na narrativa dos evangelhos.

“Isso é muito importante para nós. Buscamos não deixar jamais de viver a mensagem principal do Natal: esperança em um tempo difícil. Está na Bíblia, em Isaías 9:2: ‘o povo que andava em trevas viu uma grande luz’. A grande luz é a chegada de Jesus – iluminadora do mundo. Quem de nós não precisa esperançar a alma e o coração sempre? O Natal nos traz de novo essa luz que volta a brilhar dentro da gente, mesmo nas coisas mais simples. Ninguém sabia que aquela criança pobre se tornaria o Cristo. Precisamos diminuir o valor que damos ao consumo, aos presentes, e olhar mais pra mensagem que sinaliza: olha, tá escuro, tá nublado, tá difícil, mas o Natal nos lembra que há luz”, diz Odja.

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Foto: Agência Brasil

No Rio de Janeiro, o pastor Valdemar Figueredo e também colunista do ICL Notícias destaca que as igrejas evangélicas têm múltiplas expressões. Em sua pregação de Natal em duas Igrejas Batistas diferentes, ele ressaltou a mensagem de que a vida vale mais do que as coisas. “Seguindo o exemplo de Jesus, devemos usar coisas e amar pessoas — não o contrário”, diz. O pastor citou referências ao despojamento de Jesus com exemplos de passagens da Bíblia — criando uma reflexão sobre um espírito de Natal que possa ir além de dezembro e do discurso religioso.

“O que foi emprestado a Jesus? A manjedoura em que Maria e José colocaram o bebê foi emprestada (Lucas 2.7). O pote para tirar água do fundo do poço para o sedento andarilho foi emprestado pela mulher samaritana (João 4.11). Os pães e peixes que multiplicou para alimentar a multidão foram emprestados por um menino (João 6.9). O barco que lhe serviu de plataforma para ensinar as multidões e fazer pequenas travessias foi emprestado pelo pescador Simão (Lucas 5.3).

Na sua entrada triunfal em Jerusalém, montava num jumentinho emprestado por um amigo oculto (Lucas 19.30, 31). O cenáculo onde comeu a última ceia de Páscoa com os seus amigos foi emprestado, pois ele não era proprietário, não tinha onde reclinar a cabeça (Lucas 22.10-12). O túmulo onde foi sepultado foi emprestado por José de Arimatéia (Lucas 23.50-53). Quando nasceu, não havia lugar para sua família na hospedaria. Maria o enfaixou, provavelmente, com panos improvisados e não mantas do enxoval de bebê (Lucas 2.7).

Quando morreu, o seu corpo foi tirado da cruz e envolto num lençol de linho. Na verdade, o último empréstimo de José de Arimatéia (Lucas 23.50-53). Maria Madalena e outras amigas foram ao túmulo para perfumar o lugar com aromas que haviam preparado. Perplexas, se deram conta de que a pedra que tampava o túmulo fora removida e não havia corpo morto para perfumar. Nada viram senão o lençol de linho (Lucas 24.1-12)”.

Valdemar busca mostrar que, quando nasceu, Jesus não tinha berço e quando morreu não tinha onde cair morto. “Que em 2025 desfrutemos experiências com o divino ao assumirmos a coragem de ser humanos, demasiadamente humanos. Que busquemos um fiapo dessa esperança que nasce num tempo de enorme fastio em que pessoas são coisificadas e patrimônios são cultuados”, finalizou.

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Foto: Agência Brasil

O Natal para os católicos

Frei David dos Santos, franciscano, fundador da rede de cursinhos Educafro, conversou com a nossa equipe sobre a representação da data. “O Natal representa o ponto mais alto do projeto de Deus através de Jesus. Ele carrega uma potência de ensinamentos para quem quer se sentir na missão de fazer o melhor para o mundo. É essa potente energia, que brotou em Luther King, Irmã Dulce e tantas outras pessoas extraordinárias, que passaram pelas mesmas realidades que passamos e tiraram o máximo de si para fazer acontecer o natal para muita gente”, descreve.

Para ele, a Igreja Católica está em crise. “O Natal se reduziu só a um ritual bonito, correndo o perigo de ser uma ofensa ao menino Deus do presépio. A igreja não atrai mais as crianças e a juventude. Já perdeu, há um bom tempo, o povo afro-brasileiro, por insistir em fazer e definir uma missa eurocêntrica, marginalizando culturas indígenas e afro-brasileiras”, diz. “O Natal é a concretização do máximo que a compreensão de doação existencial pelo outro pode chegar. Pena que a perversidade do capitalismo, para ganhar dinheiro, quebrou com o espírito do Natal. Precisamos criar, urgente, um capitalismo humano, um novo sistema mundial onde o social seja o centro ou iremos deixar a força perversa do capital destruir a humanidade”, finaliza.


Ainda há lugar para a esperança em um mundo insanamente explorado? Texto de Leonardo Boff

 

Agora a crise é planetária. Estamos profundamente metidos na extinção em massa de organismos vivos, nós incluídos.


Do Jornal GGN:



Ainda há lugar para a esperança?

por Leonardo Boff

Considerando os pronunciamentos do Secretário Geral da ONU, António Gutérrez, percebemos que em todos os grandes encontros com autoridades estatais e empresários, está mais e mais agravando os tons sombrios de suas advertências: chama atenção de que ou assumimos todos a nossa responsabilidade comum, face à degradação ecológica do planeta, ou então conheceremos um suicídio coletivo.

Suas palavras carregam especial peso pois, por sua função diante de um organismo mundial, acompanha o dia a dia do curso do mundo e a gravidade dos problemas. Dá-se conta, com clara consciência, de que não estamos, como coletividade, fazendo o suficiente e o necessário para enfrentarmos as mudanças que estão ocorrendo no planeta Terra. Como nunca antes na história, o destino está em nossas mãos. Não que a Terra vai acabar. Poderá acabar ou ser letalmente afetado o milagre maior da evolução, a vida em sua imensa diversidade, a nossa incluída. A vida visível, assim como a conhecemos, corre risco de desaparecer, à semelhança das grandes dizimações do passado quando entre 75-90% da carga biótica desapareceu. Mas nós não estávamos lá. Somente milhões de anos após entramos no cenário da história evolutiva. Agora a crise é planetária. Estamos profundamente metidos na extinção em massa de organismos vivos, nós incluídos. Fala-se de uma nova era geológica, a do antropoceno, do necroceno e, por fim, do piroceno.

A mim impressionam os testemunhos de duas figuras da maior seriedade científica. O primeiro é de Max Weber (1864-1920) pouco tempo antes de sua morte. Exímio conhecedor de como funcionam as sociedades, por fim, ao confrontar-se com o conjunto de sua obra e com algumas intuições do marxismo (em fim), nos advertiu:

O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua (Le Savant et le Politique, Paris 1990, p. 194). Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele está encerrado numa ”jaula de ferro”(Stahlhartes Gehäuse) que ele mesmo não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe (cf.a pertinente análise de M.Löwy, La jaula de hierro: Max Weber y el marxismo weberiana, México 2017).

O outro testemunho nos vem de um dos maiores historiadores do século XX, Eric Hobsbawn (1917-2012) em seu conhecido livro-síntese “A Era dos Extremos”(1994). Concluindo suas reflexões pondera:

O futuro não pode ser a continuação do passado… Nosso mundo corre o risco de explosão e implosão… Não sabemos para onde estamos indo. Contudo uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro que vale a pena, não pode ser pelo prolongmento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio sobre esta base, vamos fracassar. E o preço do fracasso ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão”(p.562). Não estamos operando nenhuma mudança paradigmática da sociedade. Por isso vivemos sob riscos.

Convenhamos: tais juízos de pessoas altamente responsáveis devem ser ouvidas. Com acerto asseverou Papa Francisco em sua encíclica dirigida a toda a humanidade e não só aos cristãos, Sobre o cuidado  da Casa Comum (2015): ”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas gerações, poderemos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo… nosso estilo de vida atual, por ser insustentável, pode desembocar em catástrofes”(n.161). Na encíclica Fratelli tutti (2020) radicaliza sua advertêcia ao afirmar: ”estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”(n.34). E não há um barco paralelo para o qual pular e nos salvar.

Neste contexto sinistro foram elaborados, entre outros menores, três documentos que procuram, no meio da obscuridade, nos infundir uma luz de esperança: a Carta da Terra (2000), as encíclicas do Papa Francisco Sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a outra Fratelli tutti  (2020).

Carta da Terra, fruto de uma ampla consulta mundial, sobre valores e princípios, capazes de nos garantir a vida no futuro, afirma com esperança: ”Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções includentes (Preâmbulo d). E aponta caminhos e meios de salvamento. A encíclica Sobre o cuidado da Casa Comum o Papa nos lembra que somos Terra (n.2), com o imperativo ético de ouvir simultanemente o grito da Terra e o grito do pobre (n.49); nossa obrigação é  comprometermo-nos na preservação e na regenaração do planeta, pois “tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa que nos une também com terna afeição ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à Mãe Terra”(n,92). Nossa missão é guardar e cuidar desta herança sagrada, hoje ameaçada.

Na encíclica Fratelli tutti confronta dois paradigmas, o do dominus (dono) com o do frater (irmão/irmã). Pelo dominus, o ser humano, se entende fora e acima da natureza, como senhor e dono dela; usando o poder da tecno-ciência tornou mais confortável a vida, mas ao mesmo tempo, levou à atual crise devastadora dos ecossistemas e ao princípio de autodestruição com armas, capazes de liquidar a vida na Terra. A este paradigma o Papa apresenta na encíclica Fratelli tutti,  o da fraternidade universal: com todos os seres da natureza, criados pela Mãe Terra e entre nós seres humanos, irmãos e irmãs junto com  os da natureza e no meio dela, cuidando-a e garantindo sua regeneração e perpetuidade em benefício das presentes e futuras gerações. Essa fraternidade universal se constrói de forma sustentável a partir do território (bioregionalismo), portanto, de baixo para cima, garantindo algo novo e alternativo ao sistema dominante que, a partir de cima, impõe uma dupla injustiça, contra a natureza devastando-a e contra os seres humanos, relegando-os em sua grande maioria na pobreza e na miséria.

Isso garante um lugar para a esperança? É o que cremos e esperamos. Mas o fato doloroso é que, como dizia Hegel (1770-1831), aprendemos da história que não aprendemos nada da história, mas aprendemos tudo do sofrimento. Prefiro a sabedoria do africano Santo Agostinho (354-430): a vida nos dá duas lições: uma severa, do sofrimento e outra agraciada, do amor que nos leva fazer atos criativos e inusitados. Provavelmente iremos aprender do sofrimento que virá, mas muito mais do amor que “move o céu e todas as estrelas” (Dante Alignieri) e nossos corações. É dele também a frase inspiradora: “Temos a fé, o amor e a esperança. Se perdermos a fé, continuamos a viver. Se perdemos o amor encontramos um outro. O que não podemos é perder a esperança, porque a alternativa à esperança é o suicídio. A esperança, no entanto, possui duas formas irmãs: a indignação contra todo o mal existente  e a coragem que nos leva  a mudar esse mal e realidade boa”. Temos, atualmente, que nos enamorar destas duas formosas irmãs, indignarmo-nos contra o tipo de mundo que temos e termos a coragem  para superá-lo.

 Por fim, a esperança não nos defraudará, assim nos prometeu São Paulo (Rom 5,5).

Leonardo Boff escreveu Habitar a Terra, Vozes 2023; O doloroso parto da Mãe Terra, Vozes 2021.

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