quarta-feira, 18 de setembro de 2024

BRICS, a ascensão da China e como o Hegemon enterrou o conceito de “segurança”, por Pepe Escobar

 

Na mesa do BRICS, o tema abrangente era como as nações-membro deveriam apoiar umas às outras, apesar de tantos desafios




do Strategic Culture

BRICS, a ascensão da China e como o Hegemon enterrou o conceito de “segurança”

por Pepe Escobar, Analista geopolítico internacional, escritor e jornalista

A primeira reunião de especialistas em segurança/Conselheiros de Segurança Nacional sob o formato expandido BRICS+ no Palácio Konstantinovsky em São Petersburgo revelou algumas pepitas.

Vamos começar com a China. O Ministro das Relações Exteriores Wang Yi propôs quatro iniciativas de segurança centradas no BRICS. Essencialmente, o BRICS+ — e além, considerando uma expansão maior — deve ter como objetivo coexistência pacífica; independência; autonomia; e verdadeiro multilateralismo, o que implica uma rejeição do Excepcionalismo.

Na mesa do BRICS, o tema abrangente era como as nações-membro deveriam apoiar umas às outras, apesar de tantos desafios — a maioria desencadeados por você-sabe-quem.

Sobre a Índia, o Secretário do Conselho de Segurança Russo Sergei Shoigu, reunido com o Conselheiro de Segurança Nacional Indiano Ajit Doval, enfatizou a força da aliança, “resistir confiantemente ao teste do tempo”.

O contexto maior foi de fato oferecido em paralelo, na Suíça, no Centro de Política de Segurança de Genebra, pelo sempre encantador Ministro das Relações Exteriores S. Jaishankar:

“Havia um clube chamado G7, mas você não deixaria ninguém entrar nele — então dissemos, iríamos e formaríamos nosso próprio clube (…) Na verdade, é um grupo muito interessante porque, se você olhar para ele, normalmente qualquer clube ou grupo tem uma contiguidade geográfica ou alguma experiência histórica comum ou uma conexão econômica muito forte.” Mas com o BRICS o que se destaca são “grandes países em ascensão no sistema internacional.”

Corta para o Vice-Ministro das Relações Exteriores Russo Sergey Ryabkov, enfatizando como a Rússia e o Brasil “têm abordagens semelhantes para questões internacionais importantes”, enfatizando como Moscou preza o atual “entendimento mútuo bilateral e interação, inclusive à luz das presidências simultâneas do BRICS e do G20 este ano.”

Em 2024, a Rússia presidirá o BRICS enquanto o Brasil presidirá o G20.

A parceria estratégica Rússia-Irã

O presidente Putin, além de discursar na reunião, teve negociações bilaterais com todos os principais participantes. Putin observou como 34 nações “já expressaram seu desejo de se juntar às atividades de nossa associação de uma forma ou de outra”.

Ao se encontrar com Wang Yi, Putin enfatizou que a parceria estratégica Rússia-China é a favor de uma ordem mundial justa, um princípio apoiado pelo Sul Global. Wang Yi confirmou que o presidente Xi Jinping já aceitou o convite oficial russo para a cúpula do BRICS no mês que vem em Kazan.

Putin também se encontrou com o secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã, Ali Ahmadian. Putin confirmou que está esperando o presidente iraniano Masoud Pezeshkian para outra visita à Rússia, além da cúpula do BRICS, para assinar seu novo acordo de parceria estratégica.

A geoeconomia é fundamental. O desenvolvimento do Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC) foi confirmado como uma das principais prioridades da Rússia e do Irã.

Shoigu, por sua vez, confirmou: “Estamos prontos para expandir a cooperação entre nossos conselhos de segurança”. O acordo será assinado por ambos os presidentes em breve. Além disso, Shoigu acrescentou que a entrada do Irã no BRICS avança a cooperação entre os membros para formar uma “arquitetura comum e indivisível de segurança estratégica e uma ordem mundial policêntrica justa”.

Agora compare com a nova “estratégia” coletiva do Ocidente – adotada pelos EUA, Reino Unido, França e Alemanha: outra onda de sanções contra o Irã relacionada ao caso dos mísseis iranianos transferidos para a Rússia.

Ahmed Bakhshaish Ardestani, membro da Comissão de Segurança Nacional e Política Externa do Parlamento Iraniano, confirmou no início desta semana que o Irã está enviando mísseis e drones para a Rússia como parte de seus acordos de defesa.

Mas o cerne da história é que esses mísseis são russos de qualquer maneira; eles estão apenas sendo produzidos no Irã.

Enquanto a segurança era discutida em São Petersburgo, a China estava sediando o Fórum BRICS sobre Parceria na Nova Revolução Industrial 2024 em Xiamen, na província de Fujian.

Fale sobre a cooperação interligada dos BRICS: assim como o Irã, que está sob sanções até o esquecimento, vem tentando obter acesso a novas tecnologias industriais, a colaboração Irã-China em tudo, desde IA até tecnologias verdes, aumentará ainda mais no futuro.

Uma nova arquitetura de segurança eurasiana

O cerne da questão é o status crescente da China como a principal potência comercial global – à medida que dezenas de nações em todo o Sul Global se adaptam ao fato de que a interação com a China é o vetor privilegiado para melhorar seus próprios padrões de vida domésticos e desenvolvimento socioeconômico. Essa mudança monumental nas relações internacionais está reduzindo o Ocidente coletivo a um bando de galinhas sem cabeça.

O poder crescente da China se reflete em todos os principais movimentos geoeconômicos: da RCEP (Parceria Econômica Abrangente Regional), um mega acordo de livre comércio (FTA) interasiático às inúmeras ramificações dos projetos da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), e todo o caminho até a cooperação BRICS+. O futuro de todas as nações do Sul Global envolvidas significa se aproximar cada vez mais da China.

Em nítido contraste, o Hegemon – e isso é bipartidário, descendo desde a plutocracia rarefeita – simplesmente não consegue contemplar um mundo que não controla. Uma UE propensa à desagregação aguda basicamente “raciocina” da mesma forma. Para todo o Ocidente coletivo, o desejo demente de dupla dificuldade de manter a hegemonia enquanto impede a ascensão da China é insustentável.

Adicione a isso a obsessão louca da atual administração dos EUA em infligir uma “derrota estratégica” à Rússia, já que rejeitou a proposta de Moscou no final de 2021 para uma nova arquitetura de segurança europeia, na verdade uma “indivisibilidade da segurança” referente a toda a Eurásia.

Este novo sistema de segurança pan-eurasiano proposto por Putin foi discutido em detalhes na última cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (SCO). Putin realmente declarou que uma “decisão foi tomada para transformar a estrutura antiterrorista regional da SCO em um centro universal encarregado de responder a toda a gama de ameaças à segurança”.

Tudo começou com o conceito de “Grande Parceria Eurasiana”, que Putin avançou no final de 2015. Isso foi refinado durante seu discurso anual à Assembleia Federal em fevereiro passado. E então, em uma reunião com diplomatas russos importantes em junho, Putin enfatizou que era o momento certo para dar início a uma discussão abrangente sobre garantias bilaterais e multilaterais incorporadas em uma nova visão para a segurança coletiva da Eurásia.

A ideia, desde o início, sempre foi inclusiva. Putin enfatizou a necessidade de criar uma arquitetura de segurança aberta a “todos os países da Eurásia que desejam participar”, incluindo “países europeus e da OTAN”.

Acrescente a isso o impulso para conduzir discussões com todos os tipos de organizações multilaterais em toda a Eurásia, como o Estado da União da Rússia e Bielorrússia, a CSTO, a EAEU, a CEI e a SCO.

Crucialmente, essa nova arquitetura de segurança deve “gradualmente eliminar a presença militar de potências externas na região da Eurásia”. Tradução: OTAN.

E na frente geoeconômica, além de desenvolver uma série de corredores de transporte internacional pela Eurásia, como o INSTC, o novo acordo deve “estabelecer alternativas aos mecanismos econômicos controlados pelo Ocidente”, desde a expansão do uso de moedas nacionais em acordos até o estabelecimento de sistemas de pagamento independentes: duas das principais prioridades do BRICS, que terão destaque na cúpula de Kazan no mês que vem.

Queremos uma guerra de três frentes

Do jeito que está, uma Washington surda, muda e cega continua obcecada com seu objetivo declarado e determinado de infligir uma derrota estratégica à Rússia.

O embaixador russo nos EUA, Anatoly Antonov, vai direto ao ponto: “É impossível negociar com terroristas”, acrescentando que “nenhum esquema ou as chamadas ‘iniciativas de paz’ ​​para cessar fogo na Europa Oriental sem levar em conta os interesses nacionais da Rússia são possíveis. Conferências também não ajudarão, não importa quão lindamente sejam nomeadas. Como nos anos da Grande Guerra Patriótica, o fascismo deve ser erradicado. Metas e objetivos da operação militar especial serão cumpridos. Ninguém deve ter dúvidas de que é exatamente assim que vai ser.”

E isso nos leva à atual conjuntura incandescente. Existem apenas duas opções à frente para a guerra por procuração dos EUA contra a Rússia na Ucrânia: uma rendição incondicional de Kiev ou uma escalada em direção a uma guerra da OTAN contra a Rússia.

Ryabkov não tem ilusões — mesmo quando ele coloca isso de forma bastante diplomática:

“Os sinais e ações que estamos testemunhando hoje visam à escalada. Esta observação não nos forçará a mudar nosso curso, mas criará riscos e perigos adicionais para os Estados Unidos e seus aliados, clientes e satélites, não importa onde estejam.”

Após bombardear o conceito de diplomacia, o Hegemon também bombardeou o conceito de segurança. A demência aguda nos EUA, terra dos Think Tanks, chegou até mesmo ao ponto de sonhar com uma guerra de três frentes. E isso de uma “nação indispensável” cuja poderosa Marinha foi totalmente humilhada pelos Houthis no Mar Vermelho.

É realmente um espetáculo para as eras ver a plutocracia de uma nação selvagem de mais de 200 anos que essencialmente saqueou a maior parte de suas terras de outros que acreditam que pode desafiar simultaneamente os persas, os russos e uma civilização asiática com 5.000 anos de história registrada. Bem, selvagens sempre serão selvagens.

Pepe Escobar – Analista geopolítico independente, escritor e jornalista


terça-feira, 17 de setembro de 2024

Lembrando a ação da mão de Bolsonaro e seus apoiadores do agronegócio nas queimadas e incêndios criminosos e ataques ao meio-ambiente e povos originários

 


    O vídeo à seguir foi originalmente postado por @doantidoto no Instagram:






Apoio internacional, diálogo sobre impunidade e investigação sobre terrorismo ambiental: como o governo enfrentará as queimadas?

 

Uma das suspeitas do núcleo político de Lula é a de que as queimadas resultam de um movimento orquestrado para atingir o governo federal

“No Mato Grosso, em uma região que abrange três biomas: Cerrado, Amazônia e Pantanal, os impactos tem gerado vários processos, como a erosão genética na biodiversidade, a perda de sementes”, enfatiza Fran. Foto: Iberê Périssé/Projeto Solos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reuniu, nesta segunda-feira (16), com ministros para discutir ações para por fim aos incêndios espalhados pelo país. 

O encontro contou ainda com representantes do do ICMBio, do Ibama e de cientistas. A ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, apresentou um mapa com as áreas devastadas, além de ações e estratégias que precisam ser implementadas.

Uma das suspeitas levantadas em conversas privadas do núcleo político de Lula é a de que as queimadas resultam de um movimento orquestrado para atingir o governo federal. 

“A gente apaga 10 focos, eles fazem mais 10”, disse um dos ministros à imprensa. 

Nas redes sociais, Lula afirmou que a Polícia Federal está trabalhando para responsabilizar os criminosos que iniciaram os incêndios ou financiaram tais crimes ambientais.  

“O governo federal está atuando junto com o Corpo de Bombeiros do DF para ajudar no combate às chamas. A Polícia Federal tem hoje 52 inquéritos abertos contra os responsáveis por esses crimes contra o nosso país”, escreveu Lula.

Ações intencionais


De acordo com fontes do Palácio do Planalto, a suspeita é a de que pequenos grupos de pessoas cumprem ordens de um grupo de mandantes, que determinam os locais e financiam os crimes à distância.

Apenas em agosto, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 10.328 focos de incêndios florestais, que ganharam mais força devido ao clima seco. 

O total de ocorrências foi o maior da série histórica do INPE, que monitora os focos de incêndio desde 1998.

Apoio internacional

Entre as ações previstas pelo Planalto está o pedido de ajuda para combater as queimadas direcionado para Paraguai, Colômbia, México, Peru, Uruguai, Chile, Canadá e Estados Unidos.

Até o momento, apenas o Uruguai respondeu ao pedido. O país vizinho vai enviar uma aeronave da Força Aérea Uruguaia e 40 mil litros de líquido extintor de incêndio.

O pedido foi feito no início do mês, por Marina Silva, que além de verificar a possibilidade do envio de aeronaves e brigadistas, também sondou as contrapartidas do Brasil para a consolidação do apoio. 

Para por fim às queimadas, o Brasil também enviou ajuda para a Bolívia, a fim de combater os focos de incêndio nas fronteiras.

Penalidade

Lula abordou ainda o  presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luís Roberto Barroso, também nesta segunda-feira. A intenção do presidente foi fazer um apelo para que os crimes ambientais sejam tratados “com a gravidade que eles possuem” pela polícia e pelo Poder Judiciário. 

Isso porque, para o presidente, impera a impunidade em relação a tais crimes. “O próprio presidente da República me telefonou, preocupado com a circunstância de impunidade em a essas queimadas dolosas, de modo que daqui faço já um apelo ao Poder Judiciário, aos juízes, que tratem esse crime com a seriedade que ele merece ser tratado”, afirmou Barroso, durante o discurso de abertura da reunião do Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas (OMA) do Poder Judiciário.

Segundo levantamento do Observatório do Clima, as queimadas recordes na Amazônia resultaram em 31 milhões de toneladas de gás carbônico (CO2) emitidos na atmosfera entre junho e agosto deste ano.

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Cidades administradas por prefeitos latifundiários bolsonaristas retornam a lista de desmatadores

 

Marcelândia e Querência (MT) deixaram lista prioritária do plano para Prevenção e Controle do Desmatamento, mas retornaram


Por Carolina Bataier e Bruno Stankevicius Bassi — De Olho nos Ruralistas

Estabelecida a partir do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), a lista de municípios prioritários teve sua primeira versão publicada em 2008. Desde então, tornou-se um dos principais instrumentos de política pública por trás da redução drástica do desmatamento no bioma. Em 2012, durante o governo Dilma Rousseff (PT), o corte de vegetação atingiu sua mínima histórica, com 4,6 mil km² de perda florestal anual.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, o programa foi paralisado. Uma das poucas atualizações realizadas no período foi a revisão da lista prioritária, publicada em 2021, com 52 municípios. Entre eles, 29 deles pertencem à lista dos cem maiores municípios do país.

Os dados integram o dossiê “Os Gigantes”, publicado no dia 5 pelo De Olho nos Ruralistas. Realizado ao longo de quatro meses, o estudo detalha as políticas ambientais e climáticas dessas cem prefeituras, espalhadas por onze estados e que, juntas, administram uma área equivalente a 37% do território brasileiro.

Oito novos municípios foram incluídos pela primeira vez na lista do PPCDAm, enquanto outros cinco foram devolvidos à condição de prioritários. Entre eles, dois são destaque por integrarem os Gigantes e serem administrados por prefeitos latifundiários: Querência e Marcelândia, ambos no Mato Grosso.

Os dois possuem secretarias de Meio Ambiente unificadas com Agricultura, conforme mostramos em reportagem anterior da série, que detalha os achados do dossiê: “Os Gigantes: 30 municípios têm secretarias de ambiente fundidas com agronegócio, mineração e turismo“.

Prefeito de Marcelândia é sócio de colonizadora ré por desmatamento

O município de Marcelândia é o 97º na lista dos cem maiores do país. Ele deixou a lista do PPCDAm em 2013. A conquista foi fruto de uma bem-sucedida política de controle estabelecida por Adalberto Diamante (PR), prefeito entre 2005 e 2012.

Celso Padovani visita fazenda de soja da Pronorte, em Marcelândia. (Foto: Instagram)

Na administração seguinte, de Arnóbio Vieira de Andrade (PSD), as ações regrediram, levando Marcelândia de volta à relação dos maiores desmatadores da Amazônia, formalizada em portaria de 2018. Sob Arnóbio, a perda florestal anual saltou de 12 km², quando assumiu, para 112 km² em 2020 — posicionando o município entre os vinte maiores desmatadores da Amazônia naquele ano.

Ele foi sucedido por outro pecuarista, Celso Padovani (DEM), que concorreu sozinho ao cargo nas eleições de 2020. Na ocasião, ele declarava um patrimônio de R$ 10,5 milhões, que incluía fazendas, veículos e 1.694 cabeças de gado. Em 2024, ele novamente concorre sozinho. Seu patrimônio aumentou para R$ 16,1 milhões.

O político é sócio da Celso Padovani & Cia Ltda., razão social da Pronorte Colonização, uma das principais imobiliárias agrícolas do Mato Grosso. A empresa é ré em uma ação civil pública movida em 2021 pela Força-Tarefa em Defesa da Amazônia (Amazônia Protege). A ação visa a recuperação de 6.117 hectares, desmatados sem autorização no imóvel Projeto Santa Rita, em Marcelândia. A autuação ocorreu em 2007, por fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Segundo o processo, a empresa reincidiu na prática outras duas vezes, entre 2016 e 2018.

A Força-Tarefa solicita a recuperação imediata da área e pede o pagamento de uma multa de R$ 42,3 milhões. A Pronorte, por sua vez, diz que o corte de vegetação foi realizado por arrendatários e compradores dos imóveis do Projeto Santa Rita, e que não é responsável pelo dano ambiental. O processo corre na 1ª Vara Federal Cível e Criminal de Sinop (MT).

Em Querência, Gorgen pagou multa de R$ 1,36 mi por desmatamento

Outro dos Gigantes que voltou para a lista de municípios prioritários do MMA, Querência se alterna entre o domínio de dois fazendeiros. O atual prefeito, Fernando Gorgen (União) está em seu quarto mandato: ele comandou o executivo entre 2005 e 2012 e, após um hiato de quatro anos, voltou em 2016; foi reconduzido em 2020, quando declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) uma fortuna avaliada em R$ 17,3 milhões. Junto dos irmãos, Gorgen comanda um império agropecuário, encabeçado pelas empresas Chapada Água Azul e Javaés.

Um dos integrantes originais da lista de municípios prioritários do MMA, Querência foi reclassificado em 2011, durante a primeira passagem de Gorgen na prefeitura. Nesse período, ele alcançou uma média de 20 km² desmatados ao ano, tirando o município do inglório “top 20” de maiores desmatadores da Amazônia. Seu sucessor, Gilmar Reinoldo Wentz (MDB), manteve a mesma toada, reduzindo a média para 17 km² ao ano — o equivalente a dez Parques do Ibirapuera, em São Paulo.

Quando Gorgen regressou, em 2016, as taxas passaram a subir, chegando ao pico de 69 km² em 2018. No ano passado, o município perdeu 37 km² de floresta. Embora Querência continue distante dos “líderes”, o aumento lhe valeu o retorno ao PPCDAm.

Foi nesse período que Gorgen e sua família tornaram-se alvo da Operação Polygonum, deflagrada em 2018 pelo Ministério Público do Mato Grosso e pela Delegacia de Meio Ambiente. O prefeito, sua ex-esposa Roseli Zang e os sobrinhos Tiago Gorgen, Fernanda Gorgen Cunha e Franciele Gorgen Jacob foram autuados por desmatar uma área de 5.447 hectares.

O caso ganhou repercussão pela suspeita de envolvimento de um superintendente da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT), que teria fraudado as autorizações de desmatamento expedidas em nome dos Gorgen. O processo foi extinto em 2023 após a família assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), onde se comprometeu a reverter o dano ambiental e a pagar uma multa de R$ 1,36 milhão, quitada em março daquele ano.

Nas eleições de 2024, Fernando Gorgen apoia outro representante do agronegócio, Jean do Coutinho (União). Se eleito, ele será o quarto fazendeiro a comandar Querência, o 61º maior do Brasil. Coutinho disputa contra o ex-prefeito Gilmar Ventz e contra a ex-primeira-dama Roseli Zang.

Nova lista prioritária tem 38 gigantes, oito não firmaram compromisso

Em abril, a ministra de Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, lançou o programa União com Municípios pela Redução do Desmatamento e Incêndios Florestais na Amazônia. Pensado como um complemento ao PPCDAm (relançado no ano passado), o novo programa prevê investimentos de R$ 730 milhões em ações de regularização fundiária e ambiental e assistência técnica, visando a ousada meta de zerar o desmatamento na Amazônia até 2030.

Fernando Gorgen (dir.) ao lado do deputado federal José Medeiros e do estadual Gilberto Cattani (com a estampa Agro “Facista”). (Foto: Instagram)

O ato de lançamento em Brasília marcou a divulgação da nova relação de municípios prioritários, que substitui a anterior, de 2021. Agora, são 70 prefeituras listadas, responsáveis por 78,1% do desmatamento na Amazônia entre 2021 e 2022. Dessas, 38 estão na lista dos Gigantes.

Programa União com Municípios amplia para 70 lista de prefeituras prioritárias para ação contra desmatamento e queimadas

Os prefeitos e secretários de Meio Ambiente foram convidados a firmar um convênio com o governo federal para acessar os recursos. Até o momento da publicação deste relatório, 53 municípios haviam aderido ao programa.

Entre os dezessete que não assinaram dentro do prazo inicial, oito integram os Gigantes. Destes, seis possuem secretarias de Meio Ambiente subalternas às pastas de Agricultura e Turismo. São eles: Senador José Porfírio (PA) e os mato-grossenses Apiacás, Colniza, Juína, Paranatinga e Marcelândia, do prefeito “colonizador” Celso Padovani.

Ao longo de quatro meses de pesquisa, De Olho nos Ruralistas tentou contato com as secretarias de Meio Ambiente das cem prefeituras que integram a lista dos Gigantes, solicitando informações sobre a execução do orçamento voltado a ações ambientais e a eficácia dessas políticas. Apenas oito responderam. Uma delas foi Querência, que compartilhou informações sobre as ações ambientais realizadas no município.

Em uma segunda etapa, a equipe de pesquisa enviou perguntas específicas relativas aos casos de irregularidades ambientais apontadas no dossiê, envolvendo catorze prefeitos. Entre eles, os titulares de Marcelândia e Querência. Não houve retorno até o fechamento da reportagem.

Confira vídeo sobre “Os Gigantes”

O território brasileiro comporta quase todo o continente europeu. Um quinto das Américas. É a maior área continental do hemisfério sul. O Oiapoque, no Amapá, está mais próximo do Canadá do que em relação a Chuí, no extremo sul do país. Entre o litoral paraibano, onde se inicia a Rodovia Transamazônica, e Mâncio Lima, na divisa com o Peru, são 4.326 quilômetros — quase a mesma distância entre Lisboa e Moscou.

Entre esses extremos existem 5.568 municípios. Entre eles, desponta um time seleto cujas proporções são comparáveis a países inteiros: os cem maiores municípios do país. O maior deles, Altamira (PA), é maior que a Grécia. Bem maior que Portugal.

“É uma fatia decisiva e esquecida do Brasil”, aponta o diretor do De Olho nos Ruralistas, Alceu Luís Castilho. “Esses municípios costumam ficar fora da cobertura eleitoral, diante da ênfase nos grandes centros urbanos, mas a importância ambiental deles é gigantesca. O impacto deles é planetário”.

Além do dossiê “Os Gigantes”, o observatório publica uma série de vídeos e reportagens detalhando os principais achados do estudo, que mapeia as políticas ambientais dos cem municípios e conta casos emblemáticos de conflitos de interesses envolvendo prefeitos-fazendeiros e a influência de empresas e sindicatos rurais.

 


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Pedagogia do caos climático, por Isabela Callegari

 

Em quanto é preciso reduzir as emissões de CO2. Por que a saída não é tecnologia e mercados – mas redistribuição de riquezas e desalienação. Como Economia e Ecologia podem andar juntas nesta trilha, se descartarem a Crematística


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Por Isabela Callegari

Título original: A Casa

É comum que a comparação da economia nacional com uma economia doméstica seja utilizada para justificar as políticas de austeridade, nos mais diferentes meios de comunicação. Tal argumentação ignora o fato de que o governo nacional não tem limitação de emissão da sua própria moeda, e que o crescimento econômico, o nível de tributos e a taxa de juros são variáveis dependentes das ações do governo, o que não é uma situação análoga à de uma família. Assim, como muitas vezes já contra-argumentado, a comparação está equivocada no que concerne ao sistema monetário e às variáveis macroeconômicas.

Longe da simples equivalência ou transposição de uma “pequena casa à grande casa”, no entanto, a etimologia da palavra Economia nos mostra que ela de fato significa “Administração da casa” ou “Regras da casa” (do grego, Oikos que é casa, moradia; e Nomos, que é administração, organização, distribuição). Ou seja, em um sentido amplo, estamos falando da administração dessa grande casa comum, considerando suas características específicas – que também se diferenciam daquelas de uma unidade familiar. Assim, a palavra Economia está intimamente ligada ao conhecimento da nossa “casa”, pertinente à Ecologia, bem como, o exercício da Economia suporia o compromisso com a gestão equilibrada da atividade produtiva, dos elementos naturais usados como recursos, da reprodução social e da distribuição dos bens e serviços, tendo consciência do funcionamento da biosfera e dos impactos da ação antrópica.

Isso nos remonta ao fato de que Aristóteles estabeleceu uma diferença crucial entre a Economia e a Crematística, onde a última seria o movimento feito em prol da acumulação do dinheiro por si mesmo. Assim, a Economia trataria da necessária troca monetária, derivada do uso do dinheiro como meio, enquanto a Crematística envolveria as ações e estratégias destinadas ao mero acúmulo financeiro. Fica evidente, portanto, que o que se exerce majoritariamente sob o nome de Economia é na verdade a chamada Crematística, para a satisfação dos objetivos capitalistas, ao passo em que é imprescindível e urgente aderirmos ao verdadeiro significado de Economia, indissociável da Ecologia, inclusive para a nossa sobrevivência e bem-estar.

Atualmente, estamos presenciando uma guinada – tanto alardeada quanto tardia – de discursos oficiais, políticas e financiamento para o enfrentamento das mudanças climáticas, frente à escalada de eventos ambientais extremos vividos pelas populações. No entanto, tais ações seguem ainda balizadas pela crematística, e à revelia das evidências ecológicas. Primeiramente, apenas no que concerne à questão climática, temos que o Holoceno (iniciado cerca de 11,65 mil anos atrás) é a Era geológica caracterizada por uma inédita estabilidade, que possibilitou a agricultura, o sedentarismo e o surgimento de sociedades complexas. Assim, os efeitos que estamos tentando conter envolvem secas sem precedentes, extinções em massa, derretimento das calotas polares e aumento do nível do mar, dentre outros decorrentes desses, e outros ainda não totalmente previsíveis. Colocado de outra forma, buscamos evitar que os seres humanos vivam em um cenário climático que nunca vivenciamos enquanto espécie.

Sá Barreto (2021a; 2021b) nos traz alguns dados de extrema relevância para dimensionarmos o crescimento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, que se dá nos últimos 250 anos. Durante a maior parte do Holoceno, tal concentração esteve em torno de 280 ppm (partes por milhão). Em 2012 atingiu-se o patamar de 439,9 ppm, o valor mais alto em 800 mil anos. Já em 2020, a concentração de CO2 apenas atingiu a marca de 409,9 ppm, algo sem precedentes para os últimos 3 milhões de anos. Além da óbvia coincidência desse aumento exponencial com a forma de produção desencadeada pela Revolução Industrial, a parcela de emissões derivada da atividade humana (emissões antropogênicas) também é verificável por meio da mensuração de diferentes isótopos de carbono.

Desde 2017 emitimos mais de 50 bilhões de toneladas de CO2 equivalente anualmente. Enquanto isso, estima-se que a vegetação do planeta absorva aproximadamente 5 bilhões de toneladas de CO2 equivalente por ano, de modo que cerca de 3 a 4 ppm se acumulam na atmosfera anualmente. Mesmo na pandemia, onde a atividade econômica diminuiu drasticamente e as emissões tiveram um recuo inédito, a concentração de gases na atmosfera seguiu em ascensão, pois nosso nível de emissões é muito superior do que a vegetação consegue capturar (Sá Barreto, 2021b).

Um problema adicional é que a relação entre a concentração de gases e a elevação da temperatura não é algo estável, como se imaginava anos atrás, uma vez que há pontos críticos e de não-retorno, devido à multiplicidade e complexidade dos fatores biogeofísicos envolvidos. Com isso, a realidade é que a temperatura da Terra já está 1,7 graus acima da média pré-industrial, e a meta mais leniente que temos, estabelecida no Acordo de Paris (2015), de manter essa diferença em no máximo 2 graus Celsius até 2100, será provavelmente descumprida já em 2030 (UOL, 2024). Outras metas, como as de manter a concentração de gases de efeito estufa entre 350 ppm e 550 ppm, ou então, de chegar em 2030 com um nível de emissões anuais de 23,3 bilhões de toneladas de CO2 equivalente, e 2050, com emissões nulas, também são diametralmente opostas à trajetória que estamos seguindo.

Ainda, o clima é apenas um dos 9 limites planetários que estabelecem um espaço seguro para a nossa vida e a de outras espécies, 6 dos quais já foram ultrapassados: (i) mudanças climáticas; (ii) integridade da biosfera; (iii) mudanças no uso da terra (conversão da vegetação natural em outras paisagens); (iv) uso de recursos hídricos; (v) ciclos biogeoquímicos entre seres vivos, atmosfera, solo e água; e (vi) a liberação de novos produtos sintéticos no ambiente (microplásticos, resíduos nucleares, inseticidas etc.) (NEXO, 2024).

No entanto, todas as soluções apresentadas globalmente estão orientadas para o mesmo caminho, apostando na garantia de grandes somas de dinheiro voltadas ao desenvolvimento e implementação de novas tecnologias. O aumento da eficiência está no cerne da hipótese de descolamento (decoupling em inglês), que embasa a agenda da Economia Verde ou crescimento verde. Advoga-se que é possível seguir crescendo e mantendo o modo de consumo atual, ao mesmo tempo em que se diminui o impacto ambiental por meio da maior eficiência tecnológica.

Tal argumento guarda semelhança com a ideia de gotejamento (trickle-down economics, em inglês), de que os trabalhadores eventualmente se beneficiariam da acumulação capitalista, apesar da concentração de renda. As duas ideias se assemelham tanto por legitimarem o estado das coisas, na instância ecológica e social, respectivamente, como por serem dependentes uma da outra nesse momento histórico. Não apenas o padrão de consumo dos capitalistas é completamente desproporcional em termos de impacto ambiental, como é do seu interesse de classe que o mundo busque mimetizar o seu modo de vida, e que o consumo de massa seja impulsionado. Além disso, necessitam manter estratégias de obsolescência programada, de flexibilização ambiental e de expansão territorial, de modo que são convenientes as decisões políticas baseadas na hipótese de que a maior eficiência tecnológica basta. Por sua vez, a população, mesmo sofrendo o caos ambiental e social, acredita que o acúmulo infinito a beneficia, pelo gotejamento, e que, por isso, o único caminho é de fato o descolamento, e não uma reestruturação social profunda.

Parrique et al (2019) compilam evidências de que o foco exclusivo em melhorias técnicas é absolutamente insuficiente para a necessária diminuição na pressão ambiental, o que está relacionado a sete motivos chave. (I) Primeiramente, independente do grau de eficiência, quanto mais os elementos naturais são extraídos, proporcionalmente mais energia e recursos são usados por unidade extraída. (II) Em segundo lugar, a maior eficiência diminui o custo, de forma que o excedente monetário se reverte em aumento de consumo do mesmo bem ou de outros, o que é chamado de efeito rebote. (III) Em terceiro lugar, as melhorias técnicas em uma área tendem a acarretar novos problemas em outra. Como exemplo atual, temos que os produtos menos emissores de gases de efeito estufa utilizam uma quantidade extremamente superior de minerais. (IV) Em nome da hipótese do descolamento, muito se fala na migração para uma economia baseada em serviços. Porém, desconsidera-se que todos os serviços têm um lastro material e uma cadeia produtiva envolvida no seu provimento. (V) O potencial da reciclagem é limitado pela intensidade energética do processo, pela necessidade de adição de materiais novos, e pela menor capacidade de materiais reciclados atenderem às demandas sociais. (VI) Há um direcionamento falho do progresso técnico em si, muitas vezes incompatível com as necessidades ecológicas reais. (VII) E, por fim, muitas das evidências apresentadas em favor da hipótese de descolamento desconsideram que o impacto ambiental não foi diminuído, mas apenas migrou para outro país ou região.

Assim, observa-se que a necessidade de acumulação não apenas impulsiona politicamente a ideia de descolamento para o seu próprio objetivo, como condiciona as respostas ecológicas ao lucro, resultando em novos nichos de mercado igualmente expansivos e ambientalmente danosos, como o de painéis solares, e impedindo o desenvolvimento tecnológico e a viabilidade de outras ações ecologicamente necessárias, porém pouco rentáveis, como a reciclagem de certos materiais e a reestruturação das cidades. A produção de carros elétricos individuais é impulsionada como uma grande solução, mas há ausência de planejamento que diminua em larga escala a necessidade de carros individuais, por exemplo. Nesse sentido, embora o desenvolvimento técnico visando a eficiência seja sempre bem-vindo, a hipótese do descolamento serve para evitar o debate acerca da suficiência.

Mesmo dentro de um paradigma reformista, o Estado deve exercer o papel de desafiar a acumulação se quisermos de fato lidar com a crise climática. Vultuosos investimentos seguem sendo necessários, mas muitos serão incompatíveis com o lucro ou ainda, podem influenciar negativamente o lucro de ramos estabelecidos. Determinados produtos e setores teriam que ser descontinuados e deve haver planejamento para a realocação de trabalhadores, bem como um forte sistema de proteção social prévio.

O planejamento estatal deve também guiar a reorientação produtiva e possíveis reconversões industriais, bem como as empresas devem estar sujeitas a regras mais rigorosas de logística reversa de seus produtos. Por fim, em termos de cooperação internacional, é urgente que sejam banidas estratégias voltadas à obsolescência programada, e que os países periféricos tenham suas dívidas externas perdoadas e processos de dolarização revertidos, uma vez que a necessidade de atrair capital externo tende a impulsionar o extrativismo e a flexibilização ecológica.

Esses são apenas alguns exemplos de medidas voltadas à suficiência e à diminuição do uso de recursos de forma absoluta, que não dependem de grandes avanços tecnológicos, mas sim, requerem embates políticos que contrariam grandes interesses, e no limite, a própria lógica capitalista. E se por um lado, tais ações parecem politicamente irreais ou utópicas, por outro, são apenas consequências da análise concreta e das evidências. A urgência da suficiência deriva da realidade ecológica da nossa casa comum e não deveria haver nada de ambicioso em estabelecer regras para a nossa própria sobrevivência. Se isso nos parece impossível, não resta alternativa que não seja tornar possível o impossível.

Referências

NEXO. O que são limites planetários. E quais já foram cruzados. Nexo Jornal, maio de 2024. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/05/25/limites-planetarios-o-que-sao.

PARRIQUE, T.; BARTH, J., BRIENS, F.; KERSCHNER, C.; KRAUS-POLK, A.; KUOKKANEN, A.; SPANGENBERG, J. H. Decoupling debunked: Evidence and arguments against green growth as a sole strategy for sustainability. European Environmental Bureau, 2019.

SÁ BARRETO, E. O Capital na Estufa. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.

SÁ BARRETO, E. Panorâmica sobre mudanças climáticas. Locução de Eduardo Sá Barreto. Podcast Ecologia Marxista, janeiro de 2021.

SÁ BARRETO, E. Política Climática. Locução de Eduardo Sá Barreto. Podcast Ecologia Marxista, janeiro de 2021.

UOL. Meta de aquecimento global para 2100 será descumprida em 6 anos, já em 2030. Meio Ambiente. São Paulo: Uol, fevereiro de 2024.

*Isabela é mestra em Teoria Econômica pela Unicamp, pesquisadora do Instituto Eqüit – Gênero, Economia e Cidadania Global, membro do Grupo de Estudos em Macroeconomia Ecológica (GEMAECO), membro do Instituto Justiça Fiscal (IJF), membro fundadora do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD) e parte do Conselho Técnico-Científico da mesma instituição.

Por conta da ganância destrutiva do capitalismo, a Era da Água Escassa chegou. Artigo de Mariana Mazzucato,Ngozi Okonjo-Iweala, Johan Rockström, e Tharman Shanmugaratnam

 

Mazzucato: a Era da Água Escassa chegou

Ataques à Natureza perturbam o ciclo das chuvas no mundo todo, provocando crises inéditas. Há caminhos para enfrentá-las. Exigem considerar a água um Comum, multiplicar investimento público e adotar feixe de saídas pós-capitalistas

Rio Negro, o 7º mais caudaloso do mundo, com seu leito dramaticamente diminuído, em razão da seca de 2024

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Por Mariana MazzucatoNgozi Okonjo-IwealaJohan Rockström, e Tharman Shanmugaratnam, em Project Syndicate. Tradução de Glauco Faria

No que diz respeito à água, o mundo enfrenta uma situação insustentável. No entanto, resolver o problema está a nosso alcance; e é o resultado mais fácil de se obter, porque permite lidar com as mudanças climáticas e gerar empregos e crescimento.

A crise da água é evidente. Ano após ano, em uma região após a outra, ondas de calor e secas recordes são seguidas por tempestades e inundações destrutivas. Os sistemas alimentares estão secando e as cidades estão afundando à medida que atingimos os limites de extração de água da terra. Mais de 1.000 crianças menores de cinco anos morrem a cada dia em decorrência de doenças causadas por água potável insegura e falta de saneamento. Centenas de milhões de mulheres passam horas todos os dias coletando e transportando água.

Esta é uma crise criada pelo ser humano, e pode e deve ser resolvida por meio de intervenções humanas. Mas para alcançar equidade e sustentabilidade em todos os lugares, precisaremos de novas formas de governo da água; de uma onda de investimentos muito maiores que os atuais; de inovação em escala e capacitação. Os custos dessas ações são insignificantes em comparação aos danos econômicos e humanitários que serão infligidos se a falta de ação continuar

O primeiro passo é reconhecer que os problemas que enfrentamos não são meramente tragédias locais. Todos os cantos do mundo estão sendo afetados, e cada vez mais, por m ciclo de água desestabilizado. As abordagens atuais tendem a lidar com a água que podemos ver – a “água azul” em nossos rios, lagos e aquíferos – e assumem que o suprimento de água é estável ano após ano. Mas isso não é mais verdade, pois as mudanças no uso da terra, as mudanças climáticas e um ciclo de água fora de controle estão afetando os padrões de chuva.

O pensamento convencional ignora, com frequência, um outro recurso crítico de água doce — a “água verde” que aparece em nossas florestas, plantas e solo; que transpira e é reciclada pela atmosfera. A água verde gera cerca de metade da precipitação que cai na terra, a própria fonte de toda a nossa água doce. E os países não estão conectados apenas por meio de fluxos de água azul (como rios), mas — o que é mais importante — por meio de fluxos atmosféricos de umidade. Como um componente essencial do ciclo global da água, a água verde precisa urgentemente ser melhor gerenciada.

O mais perigoso é que as interrupções no ciclo da água estão profundamente interligadas com o aquecimento global e o declínio da biodiversidade planetário, sendo que fenômeno reforça o outro. Um suprimento estável de água verde no solo é fundamental para sustentar os sistemas naturais terrestres que absorvem de 25% a 30% do dióxido de carbono emitido pela combustão de combustíveis fósseis.

Esse processo representa um dos aportes naturais mais significativos para a economia global. No entanto, a perda de áreas úmidas e da umidade do solo, juntamente com o desmatamento, está esgotando as maiores reservas de carbono do planeta, com consequências que podem tornar insuportável o ritmo do aquecimento global. O aumento das temperaturas desencadeia ondas de calor extremas e aumenta a demanda de evaporação na atmosfera, o que seca severamente as paisagens e aumenta o risco de incêndios florestais.

Portanto, a crise hídrica afeta praticamente todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e ameaça as pessoas em todos os lugares. A insuficiência de alimentos para uma população mundial crescente, a disseminação acelerada de doenças e o aumento da migração forçada e dos conflitos entre fronteiras são apenas alguns dos resultados previsíveis.

Missão H2O

Um problema coletivo e sistêmico de tão grande escala só pode ser resolvido com uma ação conjunta em todos os países e por meio da colaboração entre fronteiras e culturas. É fundamental que haja um entendimento compartilhado do Comum. Caso contrário, o que pode parecer bom para um país hoje pode facilmente criar problemas para esse mesmo país amanhã, bem como para outros em todo o mundo.

A situação exige não apenas maior ambição, mas também uma abordagem da água voltada para a missão. Uma abordagem que abranja vários setores e se concentre em todos os níveis, desde o gerenciamento de bacias hidrográficas locais até ao estabelecimento de uma cooperação multilateral. Podemos e devemos ter sucesso nas missões hídricas mais importantes do mundo:

  • Lançar uma nova Revolução Verde nos sistemas alimentares para reduzir o uso da água e, ao mesmo tempo, aumentar a produção agrícola para atender às necessidades nutricionais de uma população crescente.
  • Conservar e restaurar os habitats naturais que são essenciais para proteger os recursos hídricos verdes.
  • Estabelecer uma economia de água “circular” em todos os setores.
  • E garantir que todas as comunidades vulneráveis tenham serviços adequados de água limpa e segura e saneamento até 2030.

Embora essas missões devam impulsionar mudanças nas políticas, alinhar os setores público e privado e estimular a inovação, elas também exigem novas formas de governar. A formulação de políticas deve se tornar mais colaborativa, responsável e inclusiva de todas as vozes, especialmente as dos jovens, das mulheres, das comunidades marginalizadas e dos povos indígenas que estão na linha de frente da conservação da água.

A mudança política mais fundamental está na valorização adequada da água para refletir sua escassez, bem como seu papel fundamental na sustentação dos ecossistemas naturais dos quais toda sociedade depende. Precisamos acabar com a subvalorização da água em toda a economia e com os subsídios agrícolas prejudiciais que impulsionam o uso insustentável e degradam a terra. O redirecionamento desses fundos para a promoção de soluções de economia de água e o fornecimento de suporte direcionado para os pobres e vulneráveis seriam de grande ajuda.

Para corrigir o subinvestimento crônico em água, precisamos redefinir a prioridade da infraestrutura hídrica nas finanças públicas, onde ela é estranhamente negligenciada na maioria dos países. Os formuladores de políticas podem se basear nas melhores práticas de parcerias público-privadas para oferecer incentivos justos para compromissos de longo prazo e, ao mesmo tempo, atender aos interesses do público, especialmente das comunidades carentes.

Dada a natureza coletiva do desafio da água, devemos garantir fluxos financeiros maiores e mais confiáveis para ajudar os países de renda baixa e média-baixa a investir na resiliência da água. Os bancos multilaterais de desenvolvimento, as instituições financeiras de desenvolvimento e os bancos públicos de desenvolvimento precisarão trabalhar em estreita colaboração com os governos para apoiar as missões nacionais de água que refletem as necessidades locais e as condições ecológicas. Os acordos comerciais internacionais também oferecem possíveis alavancas para promover o uso eficiente da água, pois podem ajudar a garantir que a “água virtual” incorporada aos produtos comercializados não agrave a escassez em regiões com estresse hídrico.

Assim como estamos fazendo em relação às emissões, devemos compilar dados de alta integridade sobre as pegadas hídricas corporativas e criar estruturas para a divulgação do uso da água. Também precisamos desenvolver sistemas para avaliar a água como parte do capital natural. A fixação de um preço para esse recurso fundamental poderia gerar dividendos significativos para os países ao longo do tempo.

Em resumo, precisamos moldar os mercados em nossas economias – da agricultura e mineração à energia e semicondutores – para que se tornem radicalmente mais eficientes, equitativos e sustentáveis no uso da água.

O relatório preliminar de 2023 da Comissão Global sobre a Economia da Água apresentou os argumentos para buscar uma mudança fundamental na forma como o mundo gerencia a água. Nosso relatório final em outubro deste ano mostrará como podemos fazer isso por meio de uma ação coletiva transformadora.

Estamos apenas em 2024. Se não enfrentarmos esses problemas, os incêndios florestais, as inundações e outros eventos extremos causados pela água e pelo clima se tornarão mais intensos e mortais nos próximos anos. Promover a agenda de segurança hídrica pode parecer mais difícil em meio às crescentes tensões geopolíticas, mas apresenta uma oportunidade de provar que a colaboração pode beneficiar todos os países e possibilitar um futuro justo e habitável para todos. Não podemos fugir desse desafio.