terça-feira, 21 de novembro de 2023

A noite que não acaba: o relato de uma criança palestina sob os bombardeios de Israel. Reportagem de Dimas Roque

 

O som das bombas se aproxima cada vez mais da minha casa. Tem dias que já não consigo dormir direito. A cada noite o medo toma conta de mim.


Uma menina palestina reage após os ataques israelenses, em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, 14 de outubro.

Uma menina palestina reage após os ataques israelenses, em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, 14 de outubro. (Foto: REUTERS/Ibraheem Abu Mustafa)

Não sei se vou sobreviver a mais uma noite. As bombas não param de cair sobre a minha rua, a minha casa, a minha vida. A cada explosão, eu sinto que o meu coração vai parar de bater. Eu me encolho no canto da sala, abraçada ao meu irmãozinho, o único amigo que me resta. Eu tento fechar os olhos e os ouvidos, mas não adianta. Eu vejo e ouço o inferno que se instalou na Faixa de Gaza. 

A escuridão toma conta de todas as casas da Rua onde moro aqui na Faixa de Gaza. Aqui perto fica o hospital Al-Shifa, para onde são levados corpos de crianças mutilados pelos bombardeios, homens feridos e mulheres que dão à luz a bebes em meio a dezenas de feridos. Um sacrilégio em meio ao caos. 

Eu moro aqui desde que nasci, há 13 anos. Eu nunca conheci outro lugar, outra realidade. Eu sempre vivi sob a ocupação israelense, sob o bloqueio econômico, sob a violência constante. Eu sempre tive medo de sair de casa, de ir à escola, de brincar na rua. Eu sempre soube que a qualquer momento eu poderia ser atingida por uma bala, por um foguete, por uma bomba. Mas eu nunca imaginei que seria tão horrível, tão cruel, tão injusto. 

O som das bombas se aproxima cada vez mais da minha casa. Tem dias que já não consigo dormir direito. A cada noite o medo toma conta de mim. Meu corpo treme e parece que não vai mais parar. Duas noites atrás, eu simplesmente desmaiei e só retornei minutos depois que a poeira tomava conta da sala de casa. Percebi que pessoas corriam nas ruas gritando com medo. Uma bomba tinha caído bem perto de nossa casa. 

Há algumas semanas, o Hamas, o grupo que controla Gaza, começou a atacar Israel. Israel reagiu com uma ofensiva aérea e terrestre sem precedentes, dizendo que queria acabar com o Hamas e proteger os seus cidadãos. Mas quem está sofrendo somos nós, os palestinos, meu pai, minha mãe, minha família, as crianças de toda a Faixa de Gaza. Nós somos os alvos, os inimigos, os culpados. Nós somos os que morrem aos milhares, os que perdem tudo, os que não têm direito à vida.  

Eu já não sei o que devemos fazer quando começam os bombardeios. Meu pai disse que devemos permanecer dentro de casa durante a noite. Muitos dos nossos amigos e vizinhos fazem o mesmo, muitos deles já foram mortos sem que tenham tido uma chance de se refugiarem para que não fossem assassinados. 

Eu tenho 13 anos agora e tem momentos que me pergunto, “o que nós fizemos de tão ruim para merecermos isto?” 

Eu já perdi muitas pessoas que eu amava. Meus avós, meus tios, meus primos, meus amigos. Todos eles foram mortos pelos ataques israelenses, que não poupam ninguém. Eles dizem que só atacam os terroristas, mas eu sei que isso é mentira. Eles atacam as casas, as escolas, os hospitais, as mesquitas, as igrejas. Eles atacam as crianças, as mulheres, os idosos, os doentes. Eles atacam a mim. 

Eu vi coisas que nenhuma criança deveria ver. Eu vi corpos despedaçados, sangue espalhado, fogo consumindo. Eu vi um pai carregando os pedaços da sua filha nos braços, chorando como um louco. Eu vi duas irmãs que eram minhas colegas de classe sendo enterradas sob os escombros da sua casa. Eu vi a morte de perto, e ela me assombra todos os dias. 

Minha mãe vive encostada no canto da parede com os olhos paralisados. Eu não gosto de ver. Ela sempre foi uma voz ativa dentro de casa, agora parece que simplesmente desistiu da vida e espera ser a próxima a ser atingida por uma bomba e dar um fim ao seu sofrimento. 

Meu pai, sempre foi uma pessoa carinhosa com ela, está perdendo a paciência. Ele ontem gritou. Pedia para ela se levantar e reagir a situação. Mas minha mãe continua paralisada. Quase nunca se move dentro de casa. O medo está nos paralisando e não estamos sabendo como reagir a situação. 

Caiu uma chuva de papeis por toda a extensão da rua onde moro. Me lembrei do natal e da neve. Mas não era neve, era um comunicado de que devíamos deixar nossa casa e partir para o Sul da Palestina. Meu pai até pensou em obedecer ao ultimato, mas correu a notícia de que pessoas estão sendo mortas nas ruas e nas estradas pelas forças de ocupação de Israel em plena luz do dia. Estão nos levando para sermos abatidos como o gado que vai para o matadouro. 

Eu não sei o que vai ser de mim, da minha família, do meu povo. Eu não sei se alguém no mundo se importa com o que está acontecendo aqui. Eu não sei se algum país vai intervir para acabar com essa guerra. Eu não sei se algum dia eu vou ter paz, liberdade, justiça. Eu não sei se algum dia eu vou ter infância, futuro, esperança. 

O dia está amanhecendo e o barulho das bombas vão ficando espaços. Mas eles ainda assim acontecem. As sirenes das ambulâncias vão ocupando o espaço. Não há um só minuto de silêncio por aqui. Gritos de desesperos de pais e mães que perderam seus filhos e parentes, bombas caindo, sirenes de ambulâncias, carros e motos, indo e vindo. O medo já é parte do meu dia-a-dia. Eu ainda não aprendi a conviver com ele. 

Eu só sei que eu tenho medo. Muito medo. E que eu não quero morrer. 

Dimas Roque

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