sexta-feira, 4 de março de 2022

Xadrez da Rússia com fôlego diante da guerra híbrida da OTAN -EUA e da marcha da insensatez em andamento, por Luis Nassif

 Entenda porque a Rússia não vai levar mate com o cerco financeiro. E quem são os gurus de Putin

 Do Jornal GGN:

O presidente russo Vladimir Putin visitou a casa suburbana de Solzhenitsyn perto de Moscou em setembro de 2000(AFP/Getty)
O presidente russo Vladimir Putin visitou a casa suburbana de Solzhenitsyn perto de Moscou em setembro de 2000(AFP/Getty)

Vladimir Putin planejou o conflito com a Ucrânia por muito tempo e nos mínimos detalhes. Só não contava com a reação do ator e humorista, Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, que não hesitou em expor seu país a um massacre, para não abrir mão do maior papel de sua vida.

Primeiro, vamos entender o que muitos analistas consideravam o xeque mate na Rússia, a exclusão do sistema Swift e o embargo das reservas cambiais russas.

A primeira medida afeta o sistema bancário; a segunda, afeta o próprio Tesouro da Rússia.

Putin se preparou para as duas possibilidades: a expulsão do sistema Swift e a esterilização das suas reservas.

Vamos por partes:

Peça 1 – o sistema Swift

Primeiro, vamos entender melhor a maneira como os bancos trocam reservas entre si, e como Putin montou sua estratégia.

Segundo o próprio Swift, trata-se de 

uma cooperativa de propriedade dos membros que fornece a plataforma de comunicações, produtos e serviços para conectar mais de 10.500 instituições financeiras e corporações em 215 países e territórios. O SWIFT permite que seus usuários troquem informações financeiras automatizadas e padronizadas de forma segura e confiável, reduzindo custos, reduzindo riscos operacionais e eliminando ineficiências operacionais.

Esses sistemas servem para os bancos comunicarem suas trocas de reservas. Por exemplo, o correntista do Banco A faz um pagamento e a outra parte deposita no Banco B. Há uma troca de reservas entre ambos os bancos, através de mensagens que são registradas nesses sistemas.

Já publicamos um fio de Twitter, de autoria de Gustavo Nasa, com boas informações sobre o impacto da saída da Rússia, do sistema Swift.

Em 2014, após ameaça dos EUA de excluí-la do Swift, conta ele, a Rússia lançou o System for Transfer of Financial Messages (SPFS), o seu Swift, ao qual já aderiram bancos alemães e suiços.

O SPFS foi inaugurado em dezembro de 2017. Em março do ano seguinte, o sistema já tinha conquistado a adesão de mais de 400 bancos. No final de 2020, segundo a Wikipedia, havia 23 bancos estrangeiros conectados ao SPFS, de países como a Armênia , Bielorrússia , Alemanha , Cazaquistão , Quirguistão e Suíça.

O sistema contém uma série de aspectos negativos, se for compará-lo com o Swift: o alto custo das mensagens, falta de opção de envio de vários registros como parte de uma mensagem, não funcionamento em fins de semana e feriados. 

No dia 18 de setembro passado, o Parlamento Europeu ameaçou retirar a Rússia do sistema Swift, em caso de invasão da Ucrania, o que provocou protestos do próprio Swift.

Ontem, o Banco Central da Rússia informou que, sendo desconectado do Swift, imediatamente acionará o SPFS, ao qual poderão se acoplar os bancos estrangeiros. Mesmo porque os cartões bancários de sistemas de pagamento internacionais continuam sendo utilizados na Rússia.

Desde 2019, a Rússia já se preparava, com várias negociações procurando integrar o SPFS a outros sistemas, especialmente com o Cross-Border Interbank Payment System (CIPS) – Sistema de Pagamentos Interbancários  Fronteiriços da China. E aqui reside o busílis da questão.

Como bem observado por Gustavo, 

“A integração entre o SPFS e o CIPS é pensada para ser o padrão da nova rota da seda e da economia asiática, atual centro dinâmico do capitalismo mundial e uma tentativa efetiva de ameaçar a hegemonia do dólar. Está dentro do escopo da recente declaração conjunta Rússia-China”. 

E, aí, tem-se faca de dois gumes:

“Excluir a Rússia do SWIFT pode dar certo e quebrar as pernas da economia russa, ou pode ser o empurrão que faltava que Rússia e China precisavam para viabilizar um sistema alternativo de pagamentos desdolarizado, ainda que o dólar continue sendo usado”.

Peça 2 – as trocas de reservas entre países

O segundo suposto xeque mate à Rússia seria na esfera pública.

As reservas cambiais russas são constituídas por uma série de ativos. Levantou-se a possibilidade da Rússia não ter como escapar ao cerco dos bancos centrais de outros países. Aparentemente, há muitas rotas de fuga,

Como explica o economista Gabriel Galípolo:

“Moedas e títulos emitidos por um país constituem um passivo para eles e um ativo para seus detentores. Em 30 de junho do ano passado, 32% das reservas em moeda estrangeira da Rússia eram euros e 16% eram dólares americanos, segundo seu banco central. Cerca de 7% eram libras esterlinas, 13% renminbi chinês e 22% ouro monetário. O restante é mantido em outras moedas”.

Se a União Europeia afirma que as sanções bloqueariam mais da metade das reservas do Banco Central da Rússia, mostra, por exemplo, os limites que encontra para bloquear os chamados ativos tangíveis – como reservas de ouro, ou até mesmo emitidos por países que não aderiram às sanções.

“A complexidade das sanções decorre justamente do êxito da globalização em inserir a economia russa no mercado global”, explica ele. “A dificuldade em circunscrever seus efeitos e implementar medidas chamadas de “cirúrgicas”, é o que tem demandado a análise cuidadosa do ocidente dos impactos de cada sanção”. 

Por exemplo, como proibir negociar rublos (a moeda russa), mas não produtos russos, como o gás, cuja negociação foi mantida? “Me parece uma expressão do reconhecimento da interdependência das economias e da dificuldade dos trade offs”, diz ele.

Trade off é utilizado para o caso em que uma medida, para corrigir um problema, acaba criando outros.

  • Quanto mais efetiva for a sanção, maiores seus impactos no Ocidente;
  • Quanto mais de mitiga o impacto no Ocidente, menor será a eficácia das sanções.

“Congelar ativos guarda potencialmente efeitos semelhantes”, diz ele. “Em momentos de perdas, quando não se pode vender determinados ativos, são vendidos os ativos possíveis de se vender, e é assim que as crises se tornam sistêmicas”. Ou seja, despejam-se os ativos possíveis no mercado, derrubando suas cotações e provocando um efeito cascata.

Peça 3 – o pensamento de Putin

Ainda nos anos 90, Putin tinha como guru Alexander Solzhenitsyn, o dissidente soviético, um crítico dos soviéticos mas, também, da civilização ocidental a quem atribuía falta de coragem, excesso de liberdade da mídia e dos direitos individuais. “Para se defender, é preciso também estar pronto para morrer; há pouca prontidão em uma sociedade criada no culto do bem-estar material”, dizia ele.

Putin foi um seguidor fiel dos ensinamentos de Solzhenitsyn.

Crítico de muitos presidentes russos, pouco antes de sua morte, em 2007, Solzhenitsyn elogiou Putin, dizendo que trouxe “uma restauração lenta e gradual” para a Rússia. 

O guru atual é Alexandr Dugin, defensor da chamada “teoria do mundo multipolar”, que refuta a ideia da subordinação a um único superpoder – no caso, os Estados Unidos. 

Segundo ele, não há fundamento na teoria da soberania das nações. O sistema internacional é baseado em uma desigualdade fundamental e uma hierarquia entre os estados. “Essa soberania não passa de uma ficção legal”, escreve ele, segundo trabalho de Bruno Pedrosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Há uma notável convergência de ideias com Olavo de Carvalho. Para ele, a hegemonia do Ocidente se baseia em um conjunto de obrigatoriedades. Mas, com a globalização e a integração econômica, haveria diversas civilizações com os Estados próximos tendo cada vez mais consciência de si, identificando valores e interesses comuns distintos do balanço de poderes em escala global. Com isso, diz ele, “cada civilização poderá decidir por si o sistema de valores morais e filosóficos que lhes são mais adequados”.

Por fim, ele diz que um sistema internacional baseado em civilizações é essencial para a superação da modernidade do relacionamento entre as nações. Diz ele que as civilizações não podem ser fixas como os Estados hoje. Cada civilização inclui “somente aqueles países e sociedades que partilhem uma dimensão cultural semelhante bem como o mesmo sistema sociopolítico e raízes históricas”.

É uma versão da guerra cultural da ultra-direita, combatendo o que consideram bases morais do Ocidente.

As semelhanças com Olavo de Carvalho avançam até no ocultismo.

Nos anos 1980, participou do ‘grupo Yuzhinsky’, um grupo dissidente de vanguarda que se interessou pelo satanismo e outras formas do ocultismo e adesão ao nazismo. Adotava o nome de “Hans Siever”,  Wolfram Sievers , um pesquisador nazista do paranormal . 

Assim como Solzhenitsyn, Dugin é contra o liberalismo, o Ocidente e a hegemonia dos EUA . Defende Estado forte, ordem, família, religião e sociedade. E uma mídia que “expresse os interesses nacionais”.

Peça 4 – as cartas na manga de cada jogador 

Desde os anos 90, Putin já era dominado pela ideia do destino manifesto, de reconduzir a Rússia ao status que perdeu nos anos 90, sob o comando de Boris Iésltsin, o mais desastrado político da era moderna.

Por isso mesmo, calculou todos os seus passos.

Como, no limite, explode uma guerra nuclear, imaginava criar a expectativa de conflito, que terminaria ou com um acordo favorável ou até mesmo com a anexação da Ucrânia.

Tinha certeza, por exemplo, de que nenhum país, nem a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ousaria enviar tropas para lá – e acertou. O que facilitaria um acordo rápido, ou a subordinação total da Ucrânia, iniciando a recriação da União das Repúblicas não-mais-Socialistas-Soviéticas.

Onde os cálculos falharam:

  1. De repente, o ator-humorista, presidente da Ucrânia, se viu em um palco global, vivendo o maior papel de sua vida: a do presidente-herói que expõe sua população a um cataclisma e, provavelmente, fugirá antes de ser preso, para gozar da justa popularidade bem longe da guerra. 
  2. O primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz vendo no conflito com a Rússia a grande oportunidade de reativar a União Europeia, profundamente enfraquecida desde o Brexit. E a UE é extensão do poder da Alemanha.
  3. A OTAN e seus principais parceiros – a indústria de armas – vendo no acirramento da nova guerra fria um espaço de fortalecimento político e de negócios.

E tudo isso, tendo na outra ponta, um mandatário alucinado e acuado, mas ainda com gás e visto como única pessoa capaz de manter o poder político na Rússia. Até onde será bancado por seus aliados internos? A concretização da invasão da Ucrânia provocou uma grita geral, inclusive de seu maior aliado, a China.

Foi um gesto desastroso. Mas qual será seu próximo passo?

Hoje, o que se viu, nas assembléias da União Europeia e da ONU, foram chamados insistentes para a guerra. O discurso de Josep Borrell, chefe da Alta Diplomacia da União Europeia, foi uma verdadeira conclamação para a guerra. E saiu aplaudido por seus pares. 

Por outro lado, o presidente da Ucrânia dava sinais nítidos de procurar um acordo.

Onde vai dar, não se sabe. Há uma marcha da insensatez em andamento. 

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