Miséria da Crítica ao Rentismo
por Fernando Nogueira da Costa
A usura seria a cobrança excessiva de juros. Desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, até se atingir a Era do Capitalismo, houve crítica à remuneração do próprio dinheiro. Chamam-no de rentismo.
Com a Economia Política, ficou clara a cessão de capital próprio para outro lucrar com ele e exigir a remuneração do custo de oportunidade. Este juro significa a compensação pelo uso do dinheiro, em lugar de o próprio possuidor o gastar, seja em consumo, seja em investimento.
Sob a perspectiva etimológica, a palavra usura tem o sentido de cobrança pelo uso das coisas, no caso, do dinheiro de terceiro cedido ao tomador de empréstimo. O devedor solicita o dinheiro de terceiros ao credor (banco) e este tem de remunerar o depositante. É uma “servidão voluntária”, pois, independentemente de obter lucro ou sofrer prejuízo, o devedor sabe de antemão ter de o remunerar.
Caso o empreendedor oferecesse participação acionária no empreendimento, os sócios aí sim compartilhariam eventual lucro ou prejuízo. Mas, em contrato de crédito, voluntariamente assinado, há a exigência de ser pago o juro prefixado de qualquer jeito.
Problemas ocorrem quando, para manter o poder aquisitivo da moeda cedida, ao longo do tempo, há correção monetária, devido à inflação, ou correção cambial, devido à depreciação da moeda nacional, em caso de empréstimos externos. Pior será se a cláusula contratual exigir a repactuação periódica da taxa de juro de acordo com o valor de mercado vigente. Foi o caso do endividamento externo brasileiro durante os choques de petróleo e juros internacionais nos anos 70/80s.
Qual é a motivação para essa servidão voluntária do devedor? É o segredo do negócio capitalista: alavancagem financeira. Significa o uso do capital de terceiros, somado ao capital próprio, propiciar uma rentabilidade patrimonial muito superior à propiciada apenas com o capital particular.
Dá maior escala ao empreendimento, propicia maior contratação de empregados, obtém maior faturamento com a venda massiva de bens. Se o lucro operacional superar a despesa financeira com o empréstimo, compensará a tomada de empréstimo.
Nesse sentido, a avaliação de risco bancário busca a diminuição da assimetria de informações e evitar a seleção adversa de um mau pagador. Se este for contemplado com confiança ou crédito e incorrer em risco moral, isto é, elevar o risco com esse uso de capital de terceiros, a resposta dos bancos será o racionamento do volume de crédito ou a imposição de uma maior taxa de juro de empréstimos para os adimplentes compensarem a perda de capital pelos inadimplentes. “Os justos pagam pelos pecadores”.
Daí voltamos à Suma Teológica no tratamento do juro. Esse “coitado” (sic) sempre foi condenado por todas as religiões. Agora é até pela esquerda materialista, em princípio, ateia. Infelizmente, ela passou a adotar crenças espúrias…
A usura é entendida como a cobrança de remuneração abusiva pelo uso do capital. Seria pecaminoso se a cobrança do empréstimo pecuniário fosse por juro excessivamente alto, antes não compromissado. A priori, o devedor tem de ter consciência do risco de o lucro obtido em seu negócio não conseguir pagar o contrato assinado.
Como a usura teve diversas condenações ao longo dos tempos, sua análise tem de contemplar as circunstâncias de cada época. Na Antiguidade, os filósofos defendiam a moeda cumprir apenas as funções de unidade-de-conta e meio-de-pagamento. Não era vista como reserva-de-valor, transformando-se assim em um dinheiro propriamente dito como em tempos modernos.
Aristóteles, considerado o primeiro economista (“avant la lettre”) da história, condenava a usura por conta do seguinte argumento. “O que há de mais odioso senão o tráfico de dinheiro? Consiste em dar para ter mais e com isso desviar a moeda de sua destinação primitiva. Ela foi inventada para facilitar as trocas. A usura, pelo contrário, faz o dinheiro servir para aumentar a si mesmo”.
O empréstimo a juros era combatido por o dinheiro, hipoteticamente, não visar a obtenção de mais riquezas. O Direito Romano, além de se fixar um limite máximo de remuneração do capital, proibia a agiotagem, bem como o anatocismo: a cobrança de juros sobre juros. Juros compostos, quando verificado, remetia à pena de infâmia.
Na Idade Média, com a ascensão do Direito Canônico, permaneceu a proibição com punição dessa conduta. Para a fundamentar, ela se revestia de uma lógica cristã. Simplesmente, pregava-se a velha Bíblia condenar a usura. Citava-se, em pelos menos quatro passagens bíblicas, haver referência expressa de a usura ser pecado.
Santo Tomás de Aquino achava incontroverso o fato de a usura ser pecado para o Cristianismo, pois se assemelha ao roubo, vai de encontro às leis de natureza divina. A usura estaria ligada, ainda, à avareza e à preguiça, condutas estas, segundo a Bíblia, claramente contrárias ao esperado de um bom cristão.
Juro, então, é prática repudiada, religiosamente, por causa de uma noção antiga, pregada por esse Santo, de “preço ideal ou justo”. Para ele, a usura só diferiria da cobrança de juros através da estipulação do chamado preço justo. Este se remete a um limite legal fixado pelo homem. Seria a “legalização” da definição da usura.
Ele creditava ao dinheiro um aspecto estéril, razão pela qual não poderia gerar nenhum fruto. Sem manter essa virgindade, ele se desvirtuaria. Só podia cumprir sua função nas trocas através do seu poder de compra intrínseco, não podendo, então, ser cedido de forma própria a outrem para fazer bom uso em expansão de renda e riqueza.
Segundo os dogmas do Islamismo, a usura não é nem comércio nem lucro. Por nele se basear o capitalismo moderno, é amaldiçoado quem cobra juros, quem os paga, quem redige o contrato e quem testemunha a transação. O livro sagrado do Alcorão rechaça a prática da usura. Mas as Finanças Islâmicas deram “um jeitinho” os travestindo em remuneração por associações a projetos, compartilhamento de sucessos ou fracassos.
No Renascimento, após meados do século XIV, surgiram os tão condenados banqueiros. Os Médicis eram negociantes de moedas estrangeiras: membros da Arte de Câmbio, ou seja, a guilda dos Cambistas. Eles se tornaram conhecidos como banqueiros (banchieri) porque, como os judeus de Veneza, negociavam literalmente sentados em bancos atrás de mesas colocadas na rua.
A partir de 1385, em Roma, construíram sua reputação como negociante de moedas estrangeiras. O papado era o cliente ideal, graças ao número de moedas diferentes a entrar e sair dos cofres do Vaticano. É antiga a relação papal com banco.
Só com a Revolução Financeira, na Holanda do século XVII, no século anterior à Revolução Industrial, quando se criou sociedade por ações e Banco Central, aceitou-se “a moeda tornar a trazer moeda”. Superou-se, finalmente, a ideia aristotélica de ser um “gênero de ganho totalmente contrário à Natureza”.
Tornou-se da natureza do capitalismo. É um sistema complexo com múltiplos componentes interativos. Foi reduzido didaticamente por Karl Marx a um modo de produção, cuja relação se daria entre o capital-dinheiro, acumulado previamente, e a força do trabalho despossuída da escravidão ou livre da servidão.
A questão contemporânea, com a evolução das forças produtivas, é se o capitalismo ainda pode ser visto como um modo-de-produção industrial, explorador da força do trabalho empregada. O sistema não está se transformando em um novo modo-de-vida?
O método científico obriga a testar hipótese. Levantei a minha para provocar o debate: o Papa Francisco se tornou um ludista ao denunciar o capitalismo pelo avanço do capital? O termo “ludismo”(de Ned Ludd) se refere a uma reação ao progresso técnico, à industrialização, à automação, à informatização ou a novas tecnologias em geral.
Em transição da Era do Petróleo para a Era da Economia Digital, como em todas as Revoluções Tecnológicas, o temor do futuro inspira voltar ao passado. Mas é impossível a regressão no tempo. Voltar à exploração alienante do capitalismo industrial, cruz credo! As conquistas sociais progressivas provocaram mudanças sistêmicas, por exemplo, sem a superexploração das longas jornadas de trabalho do passado.
Hoje, a possibilidade de associação tanto de trabalhadores bem remunerados, quanto de investidores institucionais, entre os quais fundos de pensão trabalhistas, às Big Techs, por exemplo, com compra de suas ações, não é salutar para o avanço sistêmico? A elevação da escala de produção, devido à alavancagem financeira, não traz como contrapartida o aumento da produtividade do trabalho propiciado pela automação e/ou robotização?
Nesse sentido de evolução sistêmica, a esquerda, em lugar da recorrente pregação religiosa, condenatória da “financeirização”, rentismo ou usura, não deveria dirigir seus esforços para repartição da maior produtividade através da diminuição da jornada de trabalho semanal com manutenção ou aumento dos salários dos capacitados digitalmente e pagamento de RBC (Renda Básica da Cidadania) para os excluídos?
A fonte tributária dessa RBC deveria ser, justamente, a tributação progressiva dos lucros e dividendos, além das grandes fortunas, quase todas multiplicadas pelo ganho de capital no mercado secundário de ações.
Bem diz meu estimado Professor Belluzzo no livro “A Escassez na Abundância”, escrito em parceria com Gabriel Galípolo: “a financeirização não é uma deformação do capitalismo, mas um ‘aperfeiçoamento’ de sua natureza”. Cabe-nos a luta social pela mudança de sua natureza com o avanço sistêmico em direção a um novo modo-de-vida com maior bem-estar social.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Bancos e Banquetas: Evolução do Sistema Bancário com Inovações Tecnológicas e Financeiras” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.