quarta-feira, 19 de maio de 2021

Do país em que até a morte se compadeceu, por Eduardo Ramos

 

Falou-me a velha senhora sobre os povos inteiros exterminados por nações poderosas e gananciosas, por puro lucro

Do país que até a morte se compadeceu

por Eduardo Ramos

Não sou dado a narrar encontros místicos que tive em minha vida, até pela incredulidade que suscita nos outros, mas essa exceção se faz necessária. É com tristeza e perplexidade que conto meu encontro com ela, a Morte.

Me disse a velha senhora, que pelos milênios no ofício de transportar os vivos para um outro plano, uma casca de frieza quase impenetrável já fazia parte de seu ser. Mas que não era totalmente imune ao sofrimento humano, nem ao que ela chamava de “convites desnecessários e perversos à sua presença” – caso das guerras, dos massacres, das grandes covardias, dos genocídios.

Falou-me a velha senhora sobre os povos inteiros exterminados por nações poderosas e gananciosas, por puro lucro, falou-me do “uso canalha e cínico do nome de variados deuses” por homens e nações que visavam apenas poder e lucro, e por fim olhou-me com seus olhos frios, olhos envelhecidos como a idade do mundo, e declarou de supetão: “mortes às centenas de milhares, evitáveis, desnecessárias, como aqui, há meses e meses, em seu país, o Brasil”.

E como num assomo de tristeza, abaixou a cabeça dona Morte, reflexiva, talvez pensando se deveria ou não me dizer o que pensava. Logo depois continuou o seu monólogo.

“Há uma ordem perfeita no universo. Não vou falar aqui de mistérios ou explicações teológicas, não me é permitido, minha função é essa apenas, transportar os mortos para seu destino final… Mas posso te dizer essa coisa óbvia! pessoas nascem, vivem e morrem… nada mais natural com todos os seres vivos. Mas se tem uma coisa que me irrita é essa hipocrisia de gente cínica ou ignorante que usa o meu nome, a morte, para dizer: “Morreu porque chegou a sua hora!” E falou, furiosa, um palavrão que não ouso repetir no texto.

“…então é culpa minha, se europeus massacraram índios e negros aos milhões por séculos e séculos? é culpa minha o racismo, as guerras, o Holocausto, a Palestina?!? Hipócritas! Fosse minha a decisão eu levaria todos eles antes de se tornarem os monstros que viraram…”

Mais uma pausa, eu perplexo com a perda da frieza tão peculiar à velha senhora, e seu acesso de fúria contra os genocidas de todos os tempos… Termina a Morte sua fala a mim, sem que eu soubesse porque me coube ouvir-lhe o desabafo:

“E agora, no meio de uma pandemia, absolutamente controlável, medidas simples, absurdamente simples, fazendo com que uma pequena parcela das pessoas do seu país morressem, cá estou eu, caminhando para MEIO MILHÃO DE MORTOS! Tolos e cínicos, mais uma vez, falarão em “vontade de Deus”, “chegou a hora desses coitados”, e outras sandices do tipo… Vocês escolheram o processo social e político que trouxe vocês a esse inferno! Vocês escolheram o juiz herói que hoje foge de seu país, o covarde! vocês apoiaram o fim de sua democracia e o fim de tudo o que lhes dava uma mínima e digna base civilizatória! Por fanatismo, ignorância, preconceitos e ódios, vocês fraturaram sua sociedade, e aos poucos, chocaram o ovo da serpente e da besta, e olha quem escolheram para presidente de seu país? Um louco bestial, defensor de tortura, e agora, um GENOCIDA! Cada vez que venho aqui buscar seus mortos, sinto-me acolhendo nos braços uma criança indefesa, que não tem quem a proteja, quem a salve de minha presença…. Até eu, a Morte, me compadeço por um desperdício tão inútil de vidas ainda produtivas, com sonhos e coisas lindas a realizar… Não culpem os deuses, nem o acaso, nem nada! Vocês são os responsáveis por todo o horror, porque vocês colocaram o GENOCIDA no poder e permitem em sua omissão covarde, que lá ele permaneça. Sinto pena de você. E, me perdoe, uma vergonha alheia imensa, imensa…”

Termina meu encontro com a morte. Ela me mostra a gravura que ilustra o que me diz, ela, Morte, com um país vulnerável e desprotegido em seus braços.

Sinto uma dor no peito, e silencio.

Tomado de vergonha e tristeza…

(eduardo ramos)

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