terça-feira, 14 de maio de 2019

O falso Messias e a bestialidade humana, por Luccas Eduardo Maldonado



A perda de importância da formação em todas as perspectivas possíveis diante do mero desejo de consumir levou à situação em que estamos hoje.


Enviado por Roberto Bitencourt da Silva

da revista La Onda

A bestialidade humana, por Luccas Eduardo Maldonado

A bestialidade humana: somente essa categoria contempla a atual situação brasileira. Jamais uma geração na história recente do Brasil foi marcada tão explicitamente pelo fracasso. Seriamos o limite do pior possível? Do país que acreditava ser o país do futuro, da representação da igualdade e da cordialidade emergiu Jair Bolsonaro.
A democracia representativa mais de uma vez entrou em crise na contemporaneidade. Não é uma novidade que o liberalismo no século XX, quando confrontado com a redução de taxas de lucros, associou-se a formas de atuação autoritária, renunciando a demandas de direitos civis e a noções de igualdade interestatal. A criar, dessa forma, aberrações éticas das mais variadas. Somente assim se torna factível interpretar a mobilização de forças que levaram personagens como Margaret Thatcher, Adolf Hitler, Ronald Reagan ao poder. Não que sejam a expressão de um único projeto. São essas lideranças resultados de fenômenos semelhantes.
Todavia, não são as ideias em si que criam a perversão. As ideias não existem objetivamente; são abstrações sociais ou construções imagéticas. Ideias pervertidas dependem de pervertidos para serem construídas e conjugadas no real.  É um processo dependente, mas que possui polo dominante nos próprios sujeitos. O que se destaca em um colapso democrático é um duplo processo de transformação de valores. Por um lado, os próceres liberais, em geral as elites econômicas e políticas, renunciam às suas aparentes vestimentas, deixando de argumentar em prol dos fundamentos e ritos da democracia como um predicado para a segurança econômica. Outras alternativas vão sendo primeiramente pautadas e depois praticadas para se manter o status quo. De dentro da própria legalidade arma-se a ruptura da legalidade. Por outro lado, a estrutura de pensamento de uma sociedade, os limites cognitivos sociais, tornam-se cada vez mais restritos, trabalhando frequentemente com oposições. Circunstância que atinge diretamente o jogo democrático, podendo resultar em contradições inconciliáveis para a manutenção do sistema. Ambas as configurações podem coexistir, mas uma frequentemente prevalece em um momento de desmonte.
Tal construção, no entanto, possui mais a ver com o contexto europeu e norte-americano. Na América Latina, a situação se mostra um pouco mais complexa. Os liberais daqui costumam ter suas consignas de liberdade, igualdade e fraternidade extremamente vulneráveis, uma vez que não faz parte da sua tradição defender pautas de isonomia, somente de livre iniciativa. Da mesma forma, a cultura da participação é muito precariamente desenvolvida. É entendida quase exclusivamente como o ato de voto, este o qual mais de uma vez foi negligenciado. A radicalidade liberal somente existiu generalizadamente durante o período de independência. Nos séculos seguintes, ocorreria uma perda dessa conduta. Nessas terras, apresenta-se formas aparentemente confusas de liberalismo, mas que na realidade são a expressão da ética degenerada das elites regionais. Na Constituição Brasileira de 1824, está transcrito grandeloquentemente trechos da Declaração dos Direitos do Homem ao mesmo tempo que se garante o direito de propriedade privada de escravos.
Porém, Bolsonaro não é um desdobramento histórico dos interesses desses grupos, apenas conserva boa parte de suas formas de pensar. Ele não era o plano primário desses atores quando se lançou à presidência no primeiro semestre de 2018. O apoio que recebeu inicialmente era mais exceção do que regra nesse estrato social – não obstante os que o fizeram pagaram publicidade para sua campanha, crime eleitoral no Brasil. A maior parte do empresariado, do setor bancário e do agronegócio lançava os olhos para presidenciáveis mais moderados como Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Henrique Meireles, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Não que a esquerda com chances reais de eleição, Fernando Haddad do Partido dos Trabalhadores (PT) e Ciro Gomes do Partido Democrático Trabalhista (PDT), fosse uma ameaça para a estrutura capitalista ou mesmo para os investimentos privados. Na verdade, esses costumam ser tão ou mais moderados que boa parte da socialdemocracia da Europa ocidental. É risível perceber que o liberalismo teve seu ápice no Brasil durante a segunda administração de Luiz Inácio Lula da Silva. Aparente confusão capaz de demonstrar que a política se deriva mais do fígado e do coração do que do cérebro.
Diversos estratos das elites econômicas optaram por sustentar Bolsonaro no segundo turno. A defesa de um liberalismo difuso, que se confundia simplesmente com ausência de Estado, e um discurso moralizante e anticomunista em pleno século XXI pareceu agradá-los. No primeiro plano, algo totalmente irreal e impraticável dentro da estrutura econômica brasileira, dependente dos investimentos e iniciativas estatais – não entrando em questões referentes à regulamentação, profundamente necessária em um país onde barragens rompem devido à negligência da iniciativa privada. Para se dar uma dimensão, duas das três mais lucrativas empresas brasileiras, a Vale e a Telefônica Brasil, foram originalmente constituídas pelo Estado e, não obstante mais tarde privatizadas, parte significativa da sua atual receita origina-se de serviços prestado ao ou derivados do Estado. No segundo plano, o desaparecimento da União Soviética pouco importou. O anticomunismo, que na verdade tratava-se de um antipetismo, serviu como uma espécie de leitmotiv da retórica bolsonarista. Toda a corrupção e todos os males do Brasil se derivaram do PT. Nesse sentido, a crise da Venezuela foi especialmente importante, pois o antigo aliado regional da administração Lula foi utilizado como o exemplo do que o Brasil poderia vir a se tornar. A entrada de uma série de imigrantes venezuelanos no país e a constante de notícias publicadas sobre a falta de comida e itens básicos em Caracas escalou ainda mais a situação.
Ser um administrador relativamente bem-sucedido não confere automaticamente alguma forma de ilustração política. Acumular essas habilidades mostra-se um pouco raro nesse país, sendo exemplos remotos como Roberto Simonsen uma pontual exceção. As elites econômicas compraram Bolsonaro como uma alternativa factível, almejando a construção de uma conjuntura favorável aos seus investimentos. O desempregado girando por volta de 10% e as taxas negativas de crescimento industrial desde 2013, alcançando o assustador número de -8,4% em 2015, somaram-se em uma conjuntura a desesperar uma parte expressiva do patronato e uma parte do proletariado.
O que se é entendido por remédio em certa medida é uma construção histórica abstrata. Embora se acreditando fazer bem para o organismo, arsênico e mercúrio já foram receitados como medicamentos. Chega a ser no mínimo curioso que o suposto defensor dos interesses privados tenha, nos primeiros cinco meses do seu governo, visto as taxas de projeção de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) serem reajustadas para baixo. Fala-se atualmente de míseros 1,49% de expansão; se o ritmo de retardo permanecer, será menos que 1% até o final do ano. O desemprego igualmente não teve mudanças positivas, preservando uma taxa de 12,4%, objetivamente 13,1 milhões de pessoas estão sem ofício. Bolsonaro não veio para fazer o capitalismo do Brasil funcionar, ele o emperra. Dificulta o seu desenvolvimento devido aos constantes enfrentamentos e escândalos que produz. Um camelô sabe muito bem que, para se vender um produto, não se deve ofender o cliente. Bolsonaro não tem essa noção básica. Sua política exterior para com Israel e os países árabes é uma representação disso, mais moralista do que mercadológica. Uma das feições virtuosas do fenômeno mercadoria, que é o surgimento de um comprometimento entre as partes no seu desenvolvimento, é simplesmente desconhecida por tal pessoa. Não se comporta como um burguês, mas como um padre, ou melhor, um pastor com surtos de esquizofrenia.
O que se destaca nesse processo não é ausência de conhecimentos de Bolsonaro a respeito da realidade brasileira, porém a mediocridade intelectual tão generalizada na população que o fez ser votado em número suficiente para ser eleito – quase 58 milhões de pessoas. A retórica fraca pouco importou, aliás foi entendido como virtude por uma parcela. O candidato não consegue desenvolver frases complexas e quando as intenta frequentemente recorre a silogismos absurdos. A maior parte do que propõe carece de sentido, apelando muitas vezes para a mentira ou a pura invenção. Chega a ser assustador que uma das questões do período eleitoral tenha sido a suposta distribuição de mamadeiras com bico de pênis pela administração petista. Uma besteira que repetida e espalhada insistentemente por meios eletrônicos ajudou a definir os rumos eleitorais. Nunca foi tão verdadeiro o ditado popular que uma mentira dita muitas vezes torna-se verdade. Desde a eleição de Donald Trump em 2016, os usos políticos dos meios eletrônicos vêm se tornando cada vez mais significativos, mostrando-se inclusive capazes de definir pleitos. Entendê-los e legislá-los mostra-se então fundamental. Em certa medida, tal processo faz rememorar certas dimensões dos regimes totalitários do século passado. Esses souberam articular o cinema, uma invenção relativamente nova na época, como uma forma de intervenção política. Os filmes O Triunfo da Vontade no caso alemão e A Queda de Berlim no caso soviético são dois exemplos.
A progressiva diluição da importância da cultura letrada no país é mero reflexo dessa tendência. Jornais que quase não dão lucro. Seus jornalistas em geral são incapazes de fazer análises substanciais ou agem abertamente com má-intenção. A perda de importância da figura do intelectual público é outra consequência desse processo. No seu lugar, emergiram alguns professores iconizados que oferecem, em vez de interpretações e críticas, um discurso de autoajuda gourtmetizado com algumas referências filosóficas ou humanísticas. Entre eles e Allan Percy, autor de um deprimente livro como Nietzsche para estressados, não existe muita diferença. Não almejam incomodar, mas agradar. São inofensivos. São quase como garçons, mas o seu ofício é desonesto. Enquanto esses nos entorpecem com vinho, que é muito mais agradável; estes nos entorpecem com mansas fábulas adocicadas.
Bolsonaro não é o resultado de um pacto negociado entre as elites como foram outros mandatários do Brasil. Bolsonaro é resultado do fracasso da instituição escolar, da cultura política, da vocação estratégica da burguesia, de um judiciário correto e da própria democracia representativa no Brasil; além disso, do fracasso da própria esquerda, incapaz de se contrapor ao processo de crise que se armava. Sendo explícito, Bolsonaro é a exata representação de um dos maiores medos de Aristóteles: a democracia como perversão. Bolsonaro é a ditadura da maioria incapaz de lidar com o dissenso. Foi eleito pelo povo e comprado pelas endinheirados.
Do subterrâneo do Congresso, onde permaneceu 26 anos aprovando unicamente dois projetos, emergiu como presidenciável de fôlego em uma conjuntura na qual a formação humana desfalece diante da exacerbação dos valores de consumo. A perda de importância da formação em todas as perspectivas possíveis diante do mero desejo de consumir levou à situação em que estamos hoje. Foi terreno fértil para todas as outras adversidades. O anti-intelectualismo do presidente e de seus ministros emerge exatamente dessa condição. Odeia o que não consegue entender. Por isso, não fechará o Congresso ou atacará a democracia, mas tolherá todos os espaços onde exista alguma forma de dissenso. Toda construção dos direitos políticos do liberalismo desaba em uma configuração na qual o lucro, no lado favorecido, e o desejo, no lado desfavorecido, compõem um sistema que desfalece a reflexão e o fazer político. Todavia, essa oposição não passará de uma mentira para aqueles que mantêm alguma fé em Bolsonaro, pois o desemprego não cairá e o PIB não aumentará. Permanecendo a mera pobreza intelectual e material.
Luccas Eduardo Maldonado – mestrando em História na Universidade de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.