Incentivo à militarização das escolas públicas avança – impossível não ver aí uma tentativa de vigilância semelhante a ocorrida entre 1964 e 1985.
O RETORNO ÀS AULAS no Distrito Federal aconteceu nesta segunda-feira com uma “velha novidade”: militares no comando. Quatro escolas terão gestão compartilhada, num projeto da Secretaria de Educação em parceria com a Polícia Militar. Novo uniforme, regras mais rígidas de horários e comportamento e aulas de civismo estão entre ações do modelo que deve se expandir para outras escolas em breve.
O ministro da Educação, o professor colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, mal havia sentado em sua cadeira, quando se apressou a dizer que as prefeituras que se mostrarem interessadas em militarizar a administração das escolas municipais terão todo o apoio da pasta. O próprio Ministério da Educação já tem a sua parcela de militarização com membros das Forças Armadas e dos Bombeiros em postos chave – o coordenador do Fies e do Fundeb, por exemplo, será o coronel dos bombeiros aposentado Luiz Tadeu Vilela Blumm. O Fundeb repassa recursos para as redes públicas de ensino municipais e estaduais.
Considerando que o novo grupo no comando da nação elegeu o ambiente escolar como um dos principais campos de embates “contra o viés ideológico”, é impossível não enxergar neste incentivo uma tentativa de vigilância de conteúdos e controle muito similares ao ocorrido na ditadura que comandou o país de 1964 a 1985. E é este cenário que enfrentarão os mais de 56 milhões de estudantes do ensino fundamental e do ensino médio na rede pública de todo o país que retornaram às aulas.
Nasci em meio à ditadura e estudei em escola pública do subúrbio carioca até o fim do que hoje é o ensino fundamental. Todos os dias, nossa primeira tarefa ao chegar à escola era fazer uma formação no pátio, cantar o hino nacional e responder em coro a pergunta da diretora: “Quem é o presidente do Brasil?” No caso, tratava-se de Emílio Garrastazu Médici. Todos os dias, sem exceção. Isto não seria nada, se acompanhada da repetição mecânica sobre quem realmente manda na nação não viesse todo um discurso e atitudes legitimando algumas formas de pensamento, como a exclusão de obras da aula e de biblioteca.
Tive a oportunidade de retornar a essa mesma escola no final de 2018, convidada para falar na programação de novembro, mês da consciência negra. No mesmo pátio em que me vi muito pequena repetindo o nome de um ditador, estudantes do grupo Favela Fashion, coordenado por Juliana Henrik, realizaram um desfile surpreendente. Usando vestidos pretos, com saltos altos e maquiadas com marcas pelo corpo, apresentaram em cartazes as tenebrosas estatísticas de feminicídio e de assassinato de jovens negros e negras no Brasil, conscientizando os mais novos e as mais novas da realidade e expressando de forma muito contundente e criativa o desejo de mudança.
Fotos: Arquivo pessoal/Eliana Alves Cruz
Não pude deixar de me admirar com a radical mudança no clima escolar em quatro décadas e me perguntei: “Mesmo em 2018, esse desfile seria possível sob uma administração militar?” A contar com as declarações dos que agora comandam a educação brasileira, não. Na posse do engenheiro Marcus Vinícius Carvalho Rodrigues, no Inep, Velez afirmou: “Nós estamos vivendo um ciclo a partir de 1946 em que alguns momentos são de volta ao esquema centralizador, como é o ciclo de 64-85, que foi querido pela sociedade brasileira”.
Já o engenheiro Marcus Vinícius, indicado por grupo ligado aos militares para o comando do MEC, em seu discurso de posse, chamou atenção por dois fatores: 1) afirmou que irá revisar as provas para detectar “postura ideológica” e 2) errou por duas vezes o plural da palavra “cidadão”. Segundo ele, o Brasil precisa de uma nova escola, uma escola “eficaz para a formação de cidadões (sic)”. O filho do presidente Eduardo Bolsonaro orientou os professores a evitarem “… feminismo, linguagens outras que não a língua portuguesa ou a história conforme a esquerda”. Sua justificativa para tanto é que tais assuntos não serão abordados no Enem.
Em um país que ocupa o posto de 5º do mundo que mais mata mulheres, que tem seu idioma totalmente influenciado pelas línguas indígenas, bantas e iorubás e que tem uma trajetória ainda por ser contada sobre longos períodos apagados da historiografia oficial, as novas posturas e diretrizes para a educação soam para educadores gabaritados de todo o país como excludentes e sem base científica.
A sedução pelo militarismo
Ainda recordando a experiência na escola da minha infância, falei sobre como é ser uma escritora e sobre a importância de buscar saber mais sobre a própria história, valorizá-la e se orgulhar dela. Éramos quatro mulheres falando e uma delas era Anielle Franco, irmã de Marielle.
O olhar de identificação especialmente das meninas com a nossa fala foi algo emocionante, pois nós fomos o que elas hoje são – meninas de periferia –, e nós somos o que elas sonham se tornar – profissionais reconhecidas pelo que produzem, pessoas independentes e que seguem suas vidas buscando a igualdade de oportunidades para todos. Mais uma vez a dúvida me assaltou: “Teríamos a conversa franca e enriquecedora que tivemos sob o olhar de um administrador das forças de segurança?”
No intervalo da nossa conversa na escola, entraram algumas pessoas para fazer propaganda aos alunos de um curso preparatório para escolas militares. Chamou a atenção a argumentação de um deles que disse: “Vocês ganham alguma coisa para estudar aqui? Pois na escola militar vocês ganharão”.
Esse discurso soa sedutor em uma escola onde a maioria vive em comunidades carentes e a única refeição do dia talvez seja a que é oferecida no refeitório abaixo do auditório onde estávamos. O imediato burburinho entre os alunos foi quebrado pelo professor Luiz Espírito Santo, que sentiu-se na obrigação de dizer aos jovens que não deveriam enxergar o ato de estudar como um “bico”, uma chance de ganhar um dinheiro extra, mas como a fonte genuína do conhecimento que dará acesso às carreiras que garantirão um salário, mas também realização e a chance de contribuir com a sociedade em que vivem.
O professor Luiz seguiu em sua argumentação dizendo que a busca pela realização profissional poderá levá-los – por que não? – inclusive a carreiras militares se assim sentissem vontade e vocação. Considerando que o atual governo tanto se preocupa com a doutrinação política e o “viés ideológico”, mais um questionamento me veio à mente: qual dos dois discursos – o dos funcionários do curso ou o do professor – poderíamos considerar “doutrinador”?
O aceno ao militarismo faz da milenar profissão de professor um desafio ainda maior hoje no Brasil. Taxar as informações que desagradam ao atual governo como “doutrinação” ou “marxismo ideológico” é, por si só, uma tentativa de doutrinar, de direcionar. Estas expressões vazias também jogam para confundir e abrem para que se atribua a elas tudo o que não se quer debater.
Não sou mais estudante do ensino médio ou fundamental. Sou mãe de uma aluna da rede pública e exatamente hoje vivi algo muito impactante. Uma criança desmaiou de fome, na formação do pátio de entrada. Pode ser que a criança, teimosa, não tenha se alimentado direito apesar da insistência dos responsáveis a ponto de desmaiar em frente a toda a escola reunida, mas pode ser também que ela não tenha se nutrido de forma adequada porque lhe faltava com o quê se alimentar. Talvez existam coisas mais importantes e vitais com o que se preocupar quando o assunto é a educação no Brasil.
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