"Projeto anticrime" do ex-juiz inclui mudanças defendidas pelo presidente durante a campanha que afrouxam regras contra abusos de autoridade.
O ministro da Justiça, Sergio Moro, parece ter se rendido ao radicalismo do chefe ao apresentar projeto de lei anticrimes. Foto dePedro Ladeira/Folhapress
Do The Intercept Brasil:
EM NOVEMBRO, QUANDO se colocou diante de um batalhão de jornalistas para uma entrevista coletiva, o ainda juiz Sergio Moro – que havia então acabado de aceitar ser ministro de Jair Bolsonaro – deixou claro: “Ele [Bolsonaro] dá a última palavra. Sou uma pessoa disposta a ouvir e eventualmente mudar meus posicionamentos. Tenho bem presente que há uma relação de subordinação.”
Foi difícil não lembrar daquelas palavras hoje, quando o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado por Moro, colocou no ar um documento curiosamente intitulado “Memórias de Curitiba“, que o ex-juiz apresentara havia instantes a governadores como um “projeto de lei anticrime”.
Moro, que chegou a ser visto como uma garantia de moderação do governo Bolsonaro, aparentemente não conseguiu – ou sequer achou necessário – se opor ao radicalismo de extrema direita do presidente. Seu “projeto anticrime” saiu às feições do que deseja o ex-militar e cria condições para que tenhamos uma polícia (ainda) mais violenta e impune.
Para começar, o texto elaborado pelo ex-juiz mexe no artigo 23 do Código Penal, que trata das exclusões de ilicitude – isto é, as condições em que uma pessoa não é punida mesmo cometendo um crime.
O artigo frisa que eventuais excessos na legítima defesa serão punidos. É aí que entra a caneta de Moro, que quer acrescentar o seguinte parágrafo: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Na prática, todo esse palavrório aumenta as chances de qualquer pessoa – inclusive, obviamente, policiais – escapar de punição ao reagir com violência desmedida a crimes. Trata-se de um desejo antigo e conhecido de Bolsonaro.
Outros pontos do pacote legislativo do ex-juiz vão no mesmo caminho. Moro deseja que passe a ser tratado como caso de legítima defesa o “[d]o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem.”
Por fim, o projeto de Moro faz do Código de Processo Penal propõe que quem comete ato criminoso numa situação de exclusão de ilicitude não seja preso. Novamente, a regra também valeria para policiais.
‘Como definir o que é ‘escusável medo, surpresa ou violenta emoção’?’
Numa entrevista coletiva que concedeu nesta segunda-feira, em Brasília, logo após a reunião com os governadores, Moro tentou afastar a ideia de que esteja distribuindo licenças para policiais matarem suspeitos. “Não existe nenhuma licença para matar. Quem afirma isso está equivocado, não leu o projeto”, afirmou.
O sociólogo Pedro Bodê, coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná, leu o trecho do projeto que mexe na exclusão de ilicitude a meu pedido. E se disse estarrecido com o que viu.
“Como definir o que é ‘escusável medo, surpresa ou violenta emoção’? É muito subjetivo. É claro que um policial sob fogo de fuzil está em uma situação extremamente desvantajosa. Mas também é claro que isso será invocado a toda hora quando houver denúncias de excessos. A defesa dos policiais da Vila 29 de Março, por exemplo, poderia alegar que eles estavam sob violenta emoção por causa da morte do colega e agiram em função dela, por exemplo”, ele criticou.
“É como se [o projeto de lei] oferecesse uma compensação para as péssimas condições de trabalho do policial, alterando a legislação para criar condições de que o agente possa ter uma atitude mais violenta, letal. E já falamos de uma das polícias mais letais do mundo”, lembrou Bodê.
Logo após o anúncio das medidas de Moro, a Ordem dos Advogados do Brasil montou um grupo de trabalho para estudar o projeto de lei, que será coordenado pelo advogado criminalista Juliano Breda, que já se confrontou com o ex-juiz em processos da operação Lava Jato.
‘A interferência policial é bem-sucedida quando ninguém morre’.
O grupo ainda dá os primeiros passos de um trabalho previsto para terminar em 30 dias. me disse que, da forma como foi redigido, o projeto de Moro é um convite ao aumento da letalidade policial e uma promessa de impunidade para casos de abuso de poder.
“O texto contém propostas que a OAB já considerou inconstitucionais”, disse Breda, citando o cumprimento de penas após condenação em segunda instância e a instalação de escutas para monitorar conversas entre detentos e seus advogados. “E também sugere que haverá aumento no encarceramento em massa. O Supremo Tribunal Federal já disse considerar que nosso sistema carcerário vive um estado de coisas inconstitucional, com violações aos direitos humanos e individuais dos cidadãos presos.”
O grupo de trabalho deverá produzir um documento com o qual a OAB espera pautar o debate público a respeito do projeto.
Na sua primeira entrevista coletiva em novembro, o ainda juiz Sergio Moro disse não ver o bangue-bangue como forma bem sucedida de combate ao crime – ao contrário do que acredita seu chefe. “O confronto tem de ser evitado. A interferência policial é bem-sucedida quando ninguém morre, quando o criminoso vai preso e policial volta para casa seguro. Temos estatísticas terríveis de assassinatos de policiais absolutamente intoleráveis. O confronto até pode acontecer, mas é sempre indesejável.”
Perguntei, à assessoria de Moro, o que mudou de lá para cá na visão dele a respeito do assunto. E, também, como e a quem caberá definir o que é “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Se vierem, as respostas serão acrescidas a este texto.
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