sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Religiões, abusos, violências e explorações da fé, por Dora Incontri





O caminho sincero da espiritualidade é autêntico, humano, gradativo, sem ostentação de falsa santidade, sem pretensão de súbita iluminação

Religiões, abusos, violências e explorações da fé

por Dora Incontri (retirado do GGN)

É um pressuposto de qualquer pessoa de fé sincera, que as religiões deveriam melhorar o ser humano, promover o amor, a compaixão, a bondade e a paz. Entretanto, desde sempre, as religiões – e não há nenhuma exceção – têm feito o contrário. Feito o comércio deslavado da fé, da venda das indulgências católicas medievais às vassouras abençoadas dos pentecostais brasileiros. Têm sido o cenário de abusos de toda espécie, sexual, de poder, de opressão. Têm abençoado canhões e provocado guerras, das Cruzadas aos fundamentalistas islâmicos e israelenses. 
Ora, por quê? Jesus não ensinou a amar o próximo? Buda não recomendou compaixão? Os Vedas e o Bhagavad Gita não pregam a ação desinteressada em favor do bem? O Alcorão não se refere a Deus como o Todo-misericordioso? E acima de tudo, as religiões em sua maioria, não nos ensinam a transcendência e, portanto, o desprendimento, ou pelo menos a moderação, diante das ilusões do poder, do luxo e dos prazeres sensuais?
O que se dá então? Muita gente, perplexa com isso, afasta-se de qualquer denominação religiosa ou qualquer forma de espiritualidade, mesmo livre, pelo horror da hipocrisia, dos abusos e da lama histórica que envolve todas as tradições conhecidas.
Entretanto, não se pode jogar tudo na mesma vala. As grandes inspirações religiosas do planeta, como Jesus, Buda, Confúcio, Francisco de Assis, Gandhi, apenas para citar alguns – foram de fato pessoas que vivenciaram uma espiritualidade limpa, elevada, honesta, pacífica, compassiva e continuam contagiando milhões de almas com suas vidas.
Entre as muitas pessoas com quem possamos cruzar em nossas jornadas, em qualquer cultura, país ou religião, encontramos aquelas que irradiam paz, sabedoria, trabalho engajado por um mundo melhor, a partir da inspiração de valores espirituais. Tantas pessoas anônimas, simples, sem projeção social, que são exemplos de fé sincera.
Mas é verdade que na religião, muitas vezes se abrigam celerados da pior espécie, se escondem as taras mais predatórias e as violências mais impiedosas.
Basta ver recentemente as repugnantes denúncias de João de Deus (que de Deus nada tem) e as monstruosas notícias de padres católicos, na Itália e na Argentina que durante mais de 40 anos abusaram de crianças surdas, deixando um rastro de traumas, suicídios e vergonha…
Gosto sempre de lembrar que a única vez em que Jesus foi duro com alguém em sua vida, foi justamente com os fariseus e saduceus – sacerdotes do judaísmo antigo – de duas correntes distintas. A eles, Jesus dirigiu palavras extremas, chamando-os de hipócritas e sepulcros caiados, brancos por fora, mas cheios de podridão por dentro.
O problema é justamente esse. Como a religião propõem um ideal de padrão moral elevado, seja de santidade, dentro do catolicismo; de evolução espiritual, dentro do espiritismo; de iluminação, dentro do budismo – eis que se aproximam pessoas sedentas mais de poder do que santidade, mais de tesão pervertido do que de elevação do espírito, mais de trevas do que de luz e adotam a capa farisaica da bondade artificial.
Criam hierarquias, estabelecem regras, montam estruturas de poder, arvoram-se em gurus, em sacerdotes, em médiuns em estrelato espetacular e sacralizam sua ação, submetem os incautos, abusam dos fieis e são tudo, menos religiosos de fato.
Isso nos leva a uma questão crucial: enquanto as religiões forem encaradas como caminhos de elevação pessoal, autônoma, que podem ser trilhados em comunidades horizontais, não hierarquizadas e não submetidas a nenhuma autoridade – é mais seguro que elas possam de fato contribuir para melhorar o ser humano. Mas quando a instituição se torna mais importante que os seres humanos, as hierarquias mais sólidas que as virtudes, o poder mais atraente do que o serviço ao próximo, então entramos na história repetida de séculos.
Na história do cristianismo, por exemplo, tão largamente estudada, sabemos que enquanto Jesus e um punhado de pescadores andavam pela Palestina e ainda nos primeiros momentos, em que apóstolos devotados percorriam o mundo livremente para divulgar a Boa Nova, havia fraternidade, comunhão, partilha. Mas no decorrer dos séculos, conforme foi se solidificando o sacerdócio, até chegar ao papado lá pelo século V, o cristianismo foi ganhando em ouro e perdendo em amor, foi crescendo em perseguição aos que pensavam diferente e abandonando princípios de compaixão para com todos.
Talvez tudo isso se deva também ao fato das pessoas se aproximarem das religiões, querendo uma santidade forçada, uma iluminação rápida, adotando uma capa para soterrar seu lado sombrio e os impulsos do inconsciente. A moral imposta, que se veste como uma armadura, para conter as pulsões humanas e não para usá-las, e quando necessário transformá-las, de maneira saudável e produtiva, acaba gerando uma legião de pessoas com voz adocicada e veneno no coração.
O caminho sincero da espiritualidade é autêntico, humano, gradativo, sem ostentação de falsa santidade, sem pretensão de súbita iluminação.
Kardec recomendava sermos homens (e mulheres) de bem. Integridade, sinceridade, respeito ao próximo, fraternidade… qualidades que podem ser cultivadas com cuidado, com paciência e sem exibicionismo. O que significa que o ser humano de bem é o que é, e não se esconde atrás de uma falsa imagem de si mesmo. E esse esconderijo pode ser uma inocente simulação de mansuetude, enquanto a pessoa está internamente espumando de raiva ou o extremo de uma vida de crimes hediondos por trás de uma batina ou de uma mediunidade.  
Outro aspecto importante é que em todas as tradições coexistem duas posturas diversas para a melhoria do ser humano. Há o caminho repressor, punitivo – aquele que enfatiza o ser como um pecador, caído, que precisa ser contido. E há o caminho que reconhece a divindade que mora em todos os seres e faz o trabalho de despertar a consciência, fazer jorrar algo de bom que ilumine e não trancafie o que é sombra – que necessariamente vai explodir mais à frente. A luz que habita em nós, se desenterrada, se parida, fulgura e dissolve a nossa própria sombra e se irradia pelo mundo. Lembrando Jesus: “Vós sois a luz do mundo!”
Dentro dessa perspectiva, mesmo os mais celerados e sombrios, o pior abusador ou o pior inquisidor, também podem ser acordados em sua consciência e fazerem nascer sua luz interior. Para visões reencarnacionistas, como a espírita, isso se fará no tempo das múltiplas vidas, mas se fará. Na visão da eternidade, o bem sempre vence e a luz sempre brilha acima.







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