quinta-feira, 21 de maio de 2015

O avanço da alienação fundamentalista e o fim das melhores e tradicionais rádios: o (O)caso da Rádio Eldorado, repassada ao pastor R.R. Soares




"A transferência da Rádio Eldorado para um grupo religioso carrega uma simbologia fúnebre."

Texto de Luciano Martins Costa, extraído do Observatório da Imprensa

PROGRAMA Nº 2610
RÁDIO ELDORADO, RIP

Um piano ao cair da tarde


Por Luciano Martins Costa em 20/05/2015



Notícia publicada na quarta-feira (20/5) pelo Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo informa: a tradicional Rádio Eldorado, que pontuou durante décadas a programação mais qualificada na chamada linguagem culta, encerra sua agonia oficialmente na segunda-feira (25/5). A frequência dos 700 KHz em Amplitude Modulada será preenchida com a música gospel e as mensagens religiosas da Igreja Internacional da Graça de Deus. A partir da semana que vem, será parte da rede Nossa Rádio, propriedade do empresário religioso Romildo Ribeiro Soares, conhecido como missionário RR Soares.

A Eldorado nasceu em 1958, por concessão do então presidente Juscelino Kubitschek à família Mesquita, proprietária do jornal O Estado de S. Paulo. Teve seu auge entre as décadas de 1970 e 1980, tornando-se referência em jornalismo e música de qualidade.

A decadência se deveu, segundo analistas do setor, a erros estratégicos, gestão irresponsável e falta de investimento. Algumas tentativas recentes de lhe dar alguma sobrevida com parcerias levaram a mudanças no nome: a emissora passou a se chamar Eldorado/ESPN, depois Rádio Estadão/ESPN, e finalmente Rádio Estadão.

Romildo Soares, ex-membro fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, foi apontado em 2013 pela revista Forbes como o quarto líder religioso mais rico do Brasil, dono de uma fortuna calculada em US$ 125 milhões. Sua rede conta com mais de 2 mil templos por todo o país, mas sua atuação se dá principalmente no campo das comunicações.

Apostando inicialmente no rádio, Soares se tornou figura constante em muitas emissoras, primeiro alugando horários e mais tarde construindo sua própria rede, e hoje ocupa mais de 100 horas semanais de televisão.

O fim da Eldorado AM, depois de sua progressiva deterioração, era um fato há muito esperado no mercado. O que surpreende, a se levar em conta a reação de analistas especializados que comentam notícias sobre a mídia brasileira, é a cessão da tradicional banda AM 700 para uma organização religiosa.

Cortejo fúnebre

A família Mesquita não comentou oficialmente a negociação. Apenas emitiu uma nota, que carrega o estilo lacônico do diretor de Conteúdo do grupo, Ricardo Gandour. O texto diz resumidamente que “a Rede Nossa Rádio, que pertence à Igreja Internacional da Graça de Deus, assume a programação”, ressalvando que a empresa Rádio Eldorado Ltda., do Grupo Estado, “continuará como titular e responsável pela operação”. A empresa mantém a banda de Frequência Modulada. A declaração acrescenta que “o Grupo Estado tem priorizado investimentos em conteúdos e plataformas digitais destinados a públicos de qualificação diferenciada ou de interesse específico”.

O negócio deveria estimular um debate sobre a questão do controle dos meios de comunicação, mas isso não vai acontecer. Não fosse o aspecto irônico de a emissora ter passado para as mãos de um grupo “diferenciado” no universo do segmento religioso neopentecostal, esse seria apenas mais um capítulo no processo de decadência da mais antiga e tradicional entre as grandes empresas brasileiras de comunicação.

Após ter falhado em suas tentativas de obter uma concessão de televisão, entre os anos 1980 e 1990, o Grupo Estado viu esfumaçar-se o antigo domínio dos anúncios classificados com o advento da Internet e enfrenta as consequências de um longo processo de endividamento.

Consultores que atuaram recentemente num programa de ajuste das contas da empresa confidenciam que a marca O Estado de S.Paulo perdeu mais de 60% de seu valor nos últimos cinco anos e que seu principal patrimônio se resume ao imóvel que a empresa ocupa na zona Norte da capital paulista. O parque gráfico, planejado para a configuração específica do jornal, não pode ser desmembrado e suas unidades se depreciam progressivamente, passando a valer praticamente o que pesam suas peças.

Nesse trajeto descendente, as sucessivas administrações do grupo puseram a perder não apenas a qualidade do jornalismo praticado por seus veículos. Também enterraram o Jornal da Tarde, que marcou época com textos e edições marcantes, destruíram a memória das primeiras experiências da emissão de notícias pela internet – inclusive a primeira reportagem com imagens em movimento transmitida por linha discada no Brasil, no começo dos anos 1990 – e transformaram em tiras de papel trinta anos de pesquisa sobre o comportamento social e de consumo da mulher brasileira, trabalho da socióloga Célia Belém.

Com esse histórico de dissipações, a transferência da Rádio Eldorado para um grupo religioso carrega uma simbologia fúnebre.

Que descanse em paz.

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