Seguem dois artigos de Luciano Martins Costa, extraídos do Observatório da Imprensa:
O Cenário do Escândalo
A demissão coletiva de diretores da Petrobras, que obriga à substituição urgente da presidente da empresa, é manchete em todos os jornais de circulação nacional nesta quinta-feira (5/2). O noticiário vem recheado de especulações sobre o nome a ser indicado para o lugar de Graça Foster, e essa escolha poderá diminuir o empenho da imprensa em desconstruir a reputação da estatal: um dirigente simpático ao mercado fará concentrar o foco dos jornais exclusivamente no campo político.
A presidente demissionária personificou, nos últimos dias, todos os vícios da empresa, no esforço que faz a mídia tradicional para desviar o dedo da Justiça: pela primeira vez, num escândalo de corrupção, a investigação havia colocado no centro do palco os corruptores, empresários e executivos até então intocáveis. Aos poucos, as evidências de que parte do dinheiro desviado foi destinada ao caixa de partidos, dominaram a cena midiática.
Mas, como observa o colunista Janio de Freitas na Folha de S. Paulo (ver aqui, na versão reproduzida pelo site jornalggn.com.br), há duas versões da Petrobras – a de uma empresa destruída pela incúria e a corrupção, e a de uma empresa vencedora, que bate recordes de produção e produtividade e ganha prêmios pela inovação tecnológica. Os editores escondem que a Petrobras segue operando em plena capacidade, que o grosso dos investimentos para exploração do pré-sal já foi feito, porque sabem que ela aguenta o impacto negativo do noticiário.
Esse noticiário tem outros objetivos, como o de justificar o pedido de impeachment da presidente da República, imaginado na cabeça coroada do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O parecer que insere a tentativa de golpe na agenda política, assinado pelo tributarista Ives Gandra Martins, conselheiro espiritual do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tem o curioso critério de limitar o período de investigação do escândalo da Petrobras ao mandato da atual presidente.
Esse seria seu argumento básico para uma defesa técnica do impedimento da chefe do governo. Outro parecer poderia argumentar que o inquérito intitulado Operação Lava Jato alcança um período maior, mas isso não ajudaria a concentrar o foco na presidente demissionária da Petrobras e, por extensão, na presidente da República.
Os juristas costumam citar o bordão do Direito romano segundo o qual “Quod non est in actis non est in mundo”, ou seja, o que não está nos autos de um processo não está no mundo (jurídico). Ora, o mesmo se pode dizer do noticiário: o que não está na mídia não está na agenda pública.
A imprensa se esforça em manipular essa agenda, se possível tirando de cena, ou colocando em segundo plano, os autores da corrupção, e trazendo para o círculo do holofote a figura da presidente da Petrobras, para, através dela, atingir a presidente da República. A manobra estimula o apetite de aventureiros que ocupam cadeiras do Congresso Nacional, cujas biografias têm como característica comum a facilidade com que trocam de chapéu entre as bandas da situação e da oposição.
A única barreira que impede o ingresso do Parlamento na manobra armada pelo ex-presidente Fernando Henrique é o imenso cacife eleitoral de seu sucessor, o ex-presidente Lula da Silva. Essa circunstância cria um roteiro bizarro: quanto mais a imprensa bate na presidente Dilma Rousseff, mais aumenta o potencial de Lula vir a se eleger em 2018, porque, ao contrário dele, a atual presidente não conta com o apoio incondicional da massa de militantes de seu partido.
Seria necessário sustentar nas manchetes um bombardeio sem tréguas durante quatro anos – ou obter rapidamente o afastamento da presidente da República – para minar esse patrimônio que poderia reconduzir o ex-líder metalúrgico ao Planalto.
A observação dos movimentos da mídia tradicional é facilitada pelo fato de que ela se anima por um único interesse: reverter o modelo que coloca o Estado como condutor e regulador da política econômica – e não apenas como observador das disputas entre as forças do mercado. A Petrobras se tornou símbolo desse modelo, quando trocou o sistema de concessão, criado por Fernando Henrique Cardoso em 1997, pelo sistema de partilha, instituído por Lula em 2009.
As grandes multinacionais do setor petrolífero ficaram sem concessões no principal manancial de óleo do mundo que não está sendo operado em região sob conflito. A imprensa brasileira aplaudiu o fim do monopólio da Petrobras, em 1997, e condenou o modelo do pré-sal em 2009.
Esse é o contexto por trás das manchetes de quinta-feira (5/2), mas não se pode afirmar que se trata de uma conspiração internacional. Trata-se apenas, e vulgarmente, da velha disputa política doméstica.
A Matriz de Todos os Escândalos
Texto de
Luciano Martins Costa
O noticiário de sexta-feira (6/2) marca a culminância da escalada de denúncias no escândalo da Petrobras. O ponto alto é a declaração de um dos acusadores, o ex-gerente executivo Pedro Barusco, segundo o qual o Partido dos Trabalhadores recebeu, ao longo de dez anos, um total que pode chegar a US$ 200 milhões de empresas que detinham os maiores contratos com a estatal. A denúncia produz o fenômeno das manchetes trigêmeas, que já se tornou rotina na imprensa brasileira.
Como basicamente tudo que se tem publicado até aqui tem a mesma fonte, ou seja, confissões feitas por operadores do esquema que negociam penas mais brandas, a verdade aparente é apenas aquela que os jornais definem como tal. No entanto, o cruzamento das denúncias permite prever uma mudança importante na direção do escândalo, pelo simples fato de que a pista que leva ao tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, também conduz à direção do PSDB.
Entre as confissões de Barusco, cujo ponto central, na escolha dos editores, é sua suposta relação com o tesoureiro do PT, oculta-se uma informação crucial para colocar em novo contexto o escândalo da Petrobras: o autor da delação premiada informa que o esquema de desvios começou em 1997, o ano em que o monopólio da Petrobras, instituído por Getúlio Vargas em 1953, foi revogado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. O esquema que agora sitia a presidente Dilma Rousseff foi consolidado e institucionalizado na empresa no ano 2000, segundo o denunciante.
O que não está dito nas reportagens é que o governo do PSDB havia se empenhado durante anos em desmontar a estrutura de poder da Petrobras, acusada publicamente pelo falecido ministro das Comunicações, Sérgio Motta, de ser “o último esqueleto da República”, que precisaria ser desmontado “osso a osso”. Ele se referia à estrutura de mando da estatal, que se mantinha fechada em um complexo sistema corporativo virtualmente impermeável à ação do Estado.
O esquema de corrupção nasceu associado ao processo de desmanche do corporativismo, consolidou-se com o fim do monopólio e, pelo que revela a “Operação Lava Jato”, já dominava a empresa no ano 2000. Mas a imprensa determinou que só é importante descobrir o que aconteceu a partir de 2003.
Vazamentos seletivos
O único dos três grandes diários de circulação nacional que dá algum destaque a esse “pormenor” das confissões de Pedro Barusco é a Folha de S.Paulo, em reportagem com o seguinte título: “Ex-gerente diz que começou a receber propina na era FHC”. O Globo faz apenas uma breve referência, num perfil do acusado, e o Estado de S.Paulo ignora a informação.
O critério da Folha aponta para a conveniência de determinar o ponto inicial do esquema de corrupção, mas os outros jornais não consideram isso importante. Se tivesse o interesse autêntico de investigar com profundidade e revelar a extensão do escândalo que abala a Petrobras, a imprensa teria mergulhado há muito tempo no histórico da empresa a partir do fim do monopólio, fato que marca a tomada do controle por agentes públicos.
Desde o final dos anos 1990, a estatal viveu fracionada entre dois mundos: o dos gerentes executivos formados na empresa e o dos executivos impostos pelo sistema de partilha de cargos que sustenta o poder de Brasília. Pelo que se pode depreender das denúncias, a corrupção se instalou quando os dois grupos se entenderam.
Como no caso chamado de “mensalão”, o sistema foi montado sob os governos do PSDB e passado aos sucessores em praticamente todos os escalões da República. Mas, como na Ação Penal 470, há um recorte seleto em tudo que vaza ou, do que vaza, em tudo que se publica. Uma evidência desse cuidado seletivo é o fato de que a declaração publicada nas edições de sexta-feira (6/2) foi feita no dia 20 de novembro do ano passado.
Apesar de a maior parte do noticiário ter como origem declarações de réus que fazem denúncias em troca de benefícios da Justiça, e a despeito das muitas contradições quanto aos valores que teriam sido desviados nos acordos com grandes empreiteiras, é incontestável que a corrupção se tornou endêmica, como declarou o denunciante que ganhou as manchetes na sexta-feira (6).
O interesse do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em apontar o dedo para a presidente Dilma Rousseff, com sua tentativa de inspirar um processo de impeachment, pode esconder uma manobra para impedir que a investigação coloque uma lente na biografia de seu antigo ministro das Comunicações.
Só se vai chegar ao esclarecimento completo do escândalo da Petrobras se a Justiça e a imprensa vasculharem suas origens.
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