segunda-feira, 14 de abril de 2025

Réquiem para a América, por Dora Incontri

 

A liberdade anunciada na Constituição já nasceu manchada pela escravidão. A igualdade apregoada pela mesma Constituição até hoje segue negada nos EUA.


Do Jornal GGN:



Antes de fazer um Réquiem – uma prece pelos mortos, e há Réquiens divinos, como o de Mozart ou o de Verdi, por exemplo, e de dezenas de outros compositores desde o Renascimento até o século XXI – tenho que justificar por que falarei de América. América costuma ser um termo usado pelos patriotas dos Estados Unidos da América (nome oficial do país) e criticado por setores da esquerda, porque América é todo o continente, que inclui a América no Norte, a Central e a do Sul. Tomar o todo pela parte já indica uma atitude exclusivista, suprematista, imperialista. Então, é um Réquiem para a América mesmo. Para esse conceito imperialista, que tem oprimido o mundo há mais de 200 anos, começando de leve com as primeiras anexações da Flórida, depois do Texas, o que provocou a Guerra com o México em 1846 … A América se constituiu expansionista, colonizadora, nem bem tinha deixado de ser colônia da Inglaterra.

A “terra dos livres e o lar dos valentes” (“the land of the free and the home of the brave” do hino nacional deles) está deixando de ser livre, ainda que essa liberdade vendida pela propaganda é bem relativa, mas ainda assim um ensaio de uma cultura que buscava ser plural.

A liberdade anunciada na Constituição já nasceu manchada pela escravidão. A igualdade apregoada pela mesma Constituição até hoje segue negada pelo contingente de guetos negros, latinos, imigrantes – todos cidadãos de segunda classe – e mais recentemente por mais de 40 milhões de habitantes em estado de miséria. Um país – que anunciou o “sonho americano”, onde muitos que foram fugidos de guerras, do fascismo, da fome e da falta de oportunidades, fizeram fortuna, fama e deixaram legados culturais inesquecíveis – mas que nunca ofereceu uma segurança social, um sistema de saúde, uma universidade pública…

Mas nesse sistema, meio democrático (como pode uma democracia que não é direta e que só tem dois partidos, mais ou menos iguais?), apesar ou por causa desse universo governado pelo dinheiro, nasceram resistência, arte, pesquisa, valores humanistas. Desde Henry Thoreau e Walt Whitman a Noam Chomsky, desde Sojourner Truth a Angela Davis, Bell Hooks e Maya Angelou (se o leitor não conhece alguns deles, corra para conhecer), desde os movimentos pelos Direitos Civis e antirracistas com Martin Luther King Junior e Malcom X a Woodstock… – são vozes, caminhos e lideranças que marcaram o mundo para direções melhores, enquanto o Império americano distribuía ditaduras, provocava guerras e impunha doutrinação ideológica e colonização religiosa.

E a música? O spiritual, jazz, o blues, os movimentos de rock (que não são minha praia, mas sim, representam contestações e avanços). Scott Joplin, Gershwin, Duke Ellington, Louis Armstrong, Leonard Bernstein… a lista seria infinita.

E as universidades? As grandes universidades, como Harvard, Columbia, Princeton, Stanford e tantas. Lugares de pesquisa, de abertura, onde estudantes e professores do mundo todo se engajavam em projetos tecnológicos e científicos que deram passos importantes e em ideias progressistas, que deram suas contribuições.

Tudo isso está sendo desfeito, reprimido, renegado, com a ascensão de um fascismo explícito, feroz e implacável. Censura às universidades, prisões de estudantes, controle das artes, expulsão de imigrantes e estrangeiros regularizados ou não (de um país que se fez pelos imigrantes), anulação de direitos conquistados pela população negra, LGBTQI+, pelas mulheres. Um retrocesso de décadas.

E acima de tudo, uma ação escancarada, não mais disfarçada em discurso de defesa da democracia, do imperialismo real. E com isso, o perigo de novas guerras e até de uma guerra mundial. A guerra econômica já está posta, com o tarifaço do tirano laranja. A Europa se arma, a Dinamarca convoca mulheres para o exército, a União Europeia divulga kits de sobrevivência.

E tudo isso anuncia na verdade o fim da América. Último estertor do Império, desesperado para reconquistar seu espaço hegemônico, diante da nova reordenação do mundo, com o Brics (de que temos orgulho de ser comandado atualmente pela grande mulher brasileira Dilma Roussef) e sobretudo por um novo Império que avança com seu domínio: a China. A herdeira de Confúcio, Lao-Tsé, Gengis Kahn e Mao Tsé-Tung. Que também tem suas grandes contribuições, mas… é um Império também, que se faz pouco a pouco hegemônico, na tecnologia, nas transações comerciais, na força política e militar. Não confio em nenhum império. Poderíamos pensar na possibilidade de fato de um mundo multipolar, em que todos os povos tivessem voz real, como foi pensada a ONU e nunca se concretizou como tal.

Por enquanto, estamos assistindo ao ocaso da América. Choremos pelos intelectuais, pelos artistas, pelas populações perseguidas e marginalizadas, pela liberdade, que, ainda relativa, está sendo sufocada, pela instalação gradativa de uma teocracia, que estende suas sombras sobre o Brasil. A América está agonizando.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.