segunda-feira, 14 de abril de 2025

Intervalos bíblicos em escolas são preocupantes!, por Dora Incontri

 

O fundamentalismo a que estamos assistindo envolve governos, partidos políticos, multidões e está chegando aos pátios das escolas públicas.

Do Jornal CGN:

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Entre as notícias inquietantes das últimas semanas, publicadas em jornais de esquerda e de direita, estão os chamados “devocionais” ou “intervalos bíblicos”, que se multiplicam Brasil afora, em escolas públicas e particulares. O assunto me toca especialmente e já escrevi sobre as relações entre educação e religião aqui mesmo nesta coluna, um ano atrás. Ver link: https://jornalggn.com.br/cidadania/religiao-e-educacao-problemas-e-solucoes-por-dora-incontri/

Tenho diversos livros e artigos sobre essa questão e organizei dois congressos sobre Educação e Espiritualidade, no Centro de Convenções Rebouças, através da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, com o apoio da Universidade Santa Cecília de Santos.

Resumindo de início a posição necessária sobre esse espinhoso tema: ou não se fala de jeito nenhum em religião na escola ou se fala de maneira garantidamente plural. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê o ensino religioso nas escolas. Mas reza acertadamente a Base Nacional Comum Curricular que: “Cabe ao Ensino Religioso tratar os conhecimentos religiosos a partir de pressupostos éticos e científicos, sem privilégio de nenhuma crença ou convicção. Isso implica abordar esses conhecimentos com base nas diversas culturas e tradições religiosas, sem desconsiderar a existência de filosofias seculares de vida.”

São quase 30 páginas na BNCC que tratam minuciosamente do Ensino Religioso no Ensino Fundamental e tratam de maneira muito plural, muito acertada, muito inclusiva. A religião é vista como um ramo de conhecimento e experiência humana e que deve ser estudada na escola, com critérios históricos, científicos e filosóficos. Ou seja, trata-se de um projeto pedagógico, que precisa ser aplicado por professores preparados e não um espontaneísmo devocional e proselitista de alguma tendência religiosa em particular. É claro que as escolas confessionais particulares têm o direito de ensinar a sua religião específica. Mesmo assim – e nesse campo, muitas católicas costumam ser mais progressistas – é muito recomendável que todas as escolas, sejam assumidamente confessionais ou não, pratiquem as diretrizes da BNCC, porque nenhuma terá apenas alunos de uma determinada religião. E o ensino deve ser inclusivo e respeitoso com todos os sujeitos envolvidos.

Ocorre que a avalanche de fundamentalismo, a que estamos assistindo, envolvendo governos, partidos políticos, multidões no mundo todo, está chegando aos pátios de nossas escolas públicas.

Longe de mim considerar o ato de rezar um ato de fanatismo. Quando trabalhei na década de 90 em escolas particulares em São Paulo, fiz uma experiência muito interessante neste sentido. Os alunos do Ensino Fundamental sugeriram que gostariam de orar em conjunto. Instituímos então um encontro semanal num intervalo, para uma oração inter-religiosa. Quem quisesse podia participar trazendo alguma prece de sua tradição espiritual ou fazer uma oração espontânea. Naquela época, os evangélicos mais fundamentalistas não estavam tão multiplicados e militantes e tudo transcorreu na melhor harmonia e respeito. Uma aprendizagem de convivência e espiritualidade fraterna.

Em Bragança Paulista, quando apliquei um projeto semelhante numa escola pública, promovi um encontro inter-religioso entre os alunos, com a presença de pais e professores e cada qual trouxe suas preces e cantamos algumas músicas religiosas de diversas tradições. Na época também, e já lá vão 20 anos, apenas três ou quatro alunos da escola toda foram proibidos pelos pais de participarem. Já eram os fundamentalistas evangélicos.

Quando vemos o presidente dos Estados Unidos assinando um decreto contra “preconceitos anticristãos”, quando temos no Brasil um Frei Gilson dizendo que as mulheres nasceram para “serem auxiliares dos homens”, e quando tomamos conhecimento sobre a chamada “teologia do domínio”, que é claramente um projeto de retrocesso à Idade Média teocrática, então devemos nos preocupar muito com intervalos bíblicos nas escolas.

Vi algumas cenas, com centenas de alunos, muitos aos prantos, fanatizados, com uma relação acrítica em relação à religião, à Bíblia, que é um livro que pode ter seu valor histórico, mas está longe de poder servir de parâmetro para enfrentarmos os desafios do mundo. Aliás, o que há de melhor na Bíblia, que são os ensinos de Jesus, de fraternidade universal, amor ao próximo, inclusão de todos e todas – esses não fazem quase nunca parte da cartilha ideológica dessas teologias tortas e dessas práticas fanáticas.

Li também que pastores e influencers estão mobilizando e se fazendo presentes nesses encontros escolares, ferindo diretamente a laicidade da escola.

E então… vamos assistir de braços cruzados ao avanço de uma cooptação em massa de nossos jovens, que estão sendo arrastados para um campo de fanatismo acrítico, para depois serem usados por políticos de extrema direita? Vamos deixar que o mundo regrida séculos, em pautas machistas, xenófobas, homofóbicas? Vamos nos calar diante de governos, congressos, políticos que usam a religião como arma de hipnose das massas, para manobrá-las para seus interesses?

Nossos jovens estão adoecidos psiquicamente por inúmeras causas nesse mundo caótico. É preciso ampará-los, com afeto, terapias, presença, escuta e, sem dúvida, com espiritualidade. Mas uma espiritualidade crítica, aberta, plural e emancipatória e não com uma espiritualidade submissa, fanatizada, histérica e repressora.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

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