Muitas igrejas evangélicas estabeleceram alianças de vida e morte com o bolsonarismo.
Do ICL Notícias:
Tanto nos Estados Unidos presidido por Trump quanto no Brasil presidido por Bolsonaro, o negacionismo científico e a priorização da economia foram feitos com uma linguagem fortemente religiosa. Supostas justificativas teológicas de grupos fundamentalistas evangélicos dando suporte às escolhas de políticas públicas governamentais. Governos e igrejas que encararam a peste como mal (linguagem religiosa) e não como pandemia (linguagem científica). Igrejas mais afeitas à lógica do mercado econômico do que às ações de solidariedade dos grupos humanitários. O não parar a economia se confundiu com os protestos de não fechar os templos temporariamente para evitar as aglomerações em cidades com alto índice de contágios e mortes.
O trauma na Pandemia do Coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais e científicas”.[1] Uma análise psíquica que leva em consideração múltiplas e simultâneas dimensões do fenômeno e que utiliza o conceito epistemológico de complexidade. Diante desse quadro, não estaria faltando uma dimensão fundamental?
Nas alegadas múltiplas dimensões do trauma na pandemia do Coronavírus, Joel Birman, psiquiatra e psicoterapeuta, não aprofunda a dimensão religiosa. Quando cita o contexto religioso brasileiro, destaca o bispo Edir Macedo e o pastor Silas Malafaia. Dignos representantes dos defensores do “isolamento vertical seletivo”, conforme convicta pregação do presidente Bolsonaro. Mais do que defensores do “isolamento vertical seletivo”, opositores ferrenhos a qualquer tipo de barreira às práticas econômicas e comerciais. Os pastores neopentecostais “opuseram-se terminantemente ao dispositivo sanitário, ao discurso científico e à defesa da quarentena”.
O que foge ao escopo do trabalho de Birman é que esse comportamento não ficou restrito aos chamados neopentecostais. Foi o comportamento majoritário entre as igrejas evangélicas, bastante comprometidas como base política do Bolsonaro. As chamadas mega igrejas midiáticas não abdicaram aos cultos presenciais nos templos, ainda que disponham de potentes redes de comunicação. Diante da chave-de-leitura sugerida por Birman, esperávamos que religiosos, entre a bolsa e a vida, optassem pela priorização da vida, colocando-se, assim, em parceria com a ciência. Mas não foi isso que ocorreu. De forma pública e escandalosa, sem qualquer constrangimento, reivindicaram direitos na tradição do liberalismo. Assessorados por autodenominados juristas cristãos, discursaram a favor dos direitos individuais e não cogitaram renúncias pessoais em prol do coletivo. Passaram a largo até da cupidez liberal que propugna ganhos pessoais quando agimos para promover interesses coletivos.
É público e notório: muitas igrejas evangélicas no Brasil estabeleceram alianças de vida e morte com o governo Bolsonaro. Flexibilizaram normas sanitárias assim como flexibilizaram a ética da vida. Priorizaram a ética da bolsa e precisaram flexibilizar os princípios do evangelho. O pragmatismo político suplantou as mensagens do amor e cuidado. Para boa parte da sociedade brasileira, as igrejas midiáticas, cada vez mais esteticamente militarizadas, não são compostas por gente ignorante que se deixa manipular por líderes ambiciosos. Existe hoje a percepção que muitas dessas igrejas são compostas por gente que quer dominar, ocupar espaços, num tipo de redenção que se dá pelas vias política, econômica e cultural. Essa percepção já existia de forma vaga, durante o trauma na pandemia do Coranavírus ela se confirmou para muitos. Hoje o conveniente negacionismo da ciência, amanhã, possivelmente, o negacionismo da democracia.
Muitos evangélicos, absolutamente na contramão desse movimento majoritário, descobriram penosamente na pandemia que permanece a fé, mas foi-se a comunidade cristã. Sentiram-se abandonados, tratados como mercadoria, convidados para desafiar a ciência como se isso fosse demonstração de fé. Enfim, o trauma para alguns evangélicos tem a ver com a perda de vínculo religioso, perda da comunhão comunitária, perda do sentido dos cânticos congregacionais, perda absoluta da necessidade do abraço da morte. Uns esbravejam pelas redes sociais e são severamente repreendidos pelos crentes alinhados. Outros preferiram calar e manter o isolamento social em relação a igreja para além da pandemia.
Seja qual for o cenário, a experiência do desamparo é dolorosa. Não sem dor, alguns evangélicos constataram nesta pandemia que determinados líderes religiosos foram capazes de transformar igrejas em laboratórios para testar a controversa tese de imunidade de rebanho. Provaram que a fidelidade ao governo Bolsonaro, a despeito do que creem e pregam, os levaram a protagonizar atos cruéis de gente perversa. Entre tantos outros fatores, o trauma de parcela dos evangélicos no país tem relação com que suas igrejas fizeram ou deixaram de fazer durante a pandemia do Coronavírus.
[1] BIRMAN, Joel. O trauma na pandemia do Coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.
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