A volta da fome ao Brasil é o legado mais abjeto, devastador e inaceitável do golpe jurídico-midiático-empresarial dado contra a democracia brasileira em 2016
O legado do Golpe: a indecência da fome de volta ao Brasil, por Eliara Santana
Em 16 de setembro de 2014, a FAO, o órgão das Nações Unidas para a Alimentação, declarou que o Brasil saía finalmente do Mapa da Fome da ONU. E isso graças às políticas públicas adotadas desde 2003 pelos governos petistas, sobretudo o Bolsa Família e o Programa Fome Zero.
Em 2021, sete anos depois, os números revelam que o Brasil está miseravelmente voltando para o Mapa da Fome. Uma pesquisa do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) do Ministério da Saúde, que foi obtida pela GloboNews por meio da Lei de Acesso à Informação, revelou que até outubro deste ano, apenas 26% das crianças brasileiras de 2 a 9 anos fazem três refeições por dia. Somente uma em cada quatro crianças brasileiras tem condições de fazer três refeições ao longo do dia – café da manhã, almoço e jantar. O SISVAN monitora a situação alimentar e nutricional das famílias atendidas pelo SUS. Pode-se tentar justificar esses números absurdos em função da pandemia. No entanto, o problema é mais grave e vem se agravando desde o golpe de 2016, como informa a própria reportagem. Vejam o quadro abaixo:
Em 2015, começo do segundo mandato de Dilma Rousseff, 76% das crianças brasileiras faziam pelo menos três refeições por dia. Já em 2016, ano do golpe (Dilma foi afastada da presidência em maio), esse percentual despencou para 42%; volta a subir em 2018, ano eleitoral, e despenca de novo em 2020 e em 2021.
Nutrólogos e pediatras alertam que a falta de alimentação adequada afeta de modo marcante o desenvolvimento infantil, físico e cognitivo. As crianças desnutridas desenvolvem, por exemplo, anemia grave, o que contribui para lesar os neurônios, causando dificuldade no aprendizado. Segundo a nutróloga Virgínia Weffort, ouvida pela reportagem do G1, essa alteração nos neurônios das crianças desnutridas é irreversível, é uma alteração para sempre – o coeficiente intelectual da criança que passou fome e teve anemia nunca será recuperado. Ou seja, essa criança será um adulto, uma adulta, com limitações em sua potência intelectual. Podíamos até entabular, a partir desse dado, uma conversa com os hipócritas defensores da meritocracia. Mas nem cabe diante da gravidade absurda do problema.
Numa conversa com o médico nutrólogo Enio Cardillo, da UFMG, ele me disse que o fato de o Brasil ter saído do Mapa da Fome da ONU o emocionava profundamente, porque significava a possibilidade de desenvolvimento pleno para as crianças. que teriam acesso a uma alimentação adequada.
Ou seja, hoje, em 2021, o que estamos vendo é a realidade de um país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo e onde crianças até os 5 anos não fazem três refeições por dia, e essas crianças que não têm acesso a uma alimentação adequada nunca serão recuperadas em seu potencial intelectual, cognitivo.
Nas décadas de 1980 e 1990 era comum ver crianças nas ruas, crianças pedindo, crianças muito magrinhas, desnutridas. Nos anos 2000, isso se altera drasticamente, e passamos a ver crianças gordinhas nas escolas e nas creches públicas. Não mais nas ruas, não mais desnutridas. Hoje, a realidade novamente é a daqueles piores momentos de convulsão social.
Em 29 de novembro deste ano, reportagem do Uol mostra que pessoas estão desmaiando nas filas dos postos de saúde da cidade mais rica do país, São Paulo. Desmaiando de fome. Adultos jovens, mulheres grávidas, idosos, adolescentes – a fome no Brasil não escolhe faixa etária. As pessoas estão indo às Unidades Básicas de Saúde pedindo comida pelo amor de deus. Uma médica relatou que atendeu uma jovem mulher, grávida, que tremia e tinha os olhos fundos e a pele seca. A médica perguntou se ela usava drogas, e a moça pediu comida e contou que estava sem comer há dois dias. Grávida, sem comer há dois dias.
É um retrato deprimente, arrasador, inaceitável do país que já foi a sexta economia do mundo. Do pais que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. País que já teve programadas de referência no combate à fome e pela segurança alimentar como o Fome Zero, o Bolsa Família, o Restaurante Popular.
É revoltante que crianças não tenham condições de comer pelo menos três vezes ao dia. É aviltante que mulheres grávidas fiquem dois dias sem comer! É desumano que pessoas desmaiem de fome nas filas dos postos de saúde.
A volta da fome ao Brasil é o legado mais abjeto, devastador e inaceitável do golpe jurídico-midiático-empresarial dado contra a democracia brasileira em 2016, golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência da República e que, posteriormente, levou Jair Bolsonaro ao poder. A destruição agora impetrada por Bolsonaro e seu governo demolidor é resultado da mobilização dos patos amarelos, do ódio à política disseminado pela mídia, do ódio a grupos políticos – e da soma de tudo isso surge Jair Bolsonaro, que leva o Brasil de volta ao Mapa da Fome e à fome efetiva de seus cidadãos. Os dados estão aí para mostrar toda a destruição que vem sendo feita desde 2016. Os números são irrefutáveis e escancaram um país adoecido, vilipendiado, um país que tem fome. E esse é o pior dos legados.
Eliara Santana é uma jornalista brasileira e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso. Ela atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa.
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