quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Decolonizar, queimando livros?, por Dora Incontri

 



O avanço do pensamento decolonial, para Boaventura Santos, não deve ser apenas uma releitura da história,mas uma própria mudança na área do conhecimento, do que consideramos válido como conhecimento.

Foto: Luiz Guajajara

Decolonizar, queimando livros?

por Dora Incontri

Este é um artigo que terá mais perguntas e perplexidades do que respostas prontas, embora aponte algumas proposições. Essas reflexões surgem num momento delicado e necessário da história do Brasil e da história ocidental. Estou lendo o brilhante e indispensável livro de Boaventura Santos, O Fim do Império Cognitivo – A Afirmação das Epistemologias do Sul – e ao mesmo tempo estamos assistindo à derrubada de estátuas de reis e colonizadores, à queima de livros (esses dias, no Canadá, quadrinhos de Asterix e Tintim foram queimados, por terem falas ofensivas às culturas indígenas).

Estamos vendo também emocionados às belíssimas manifestações dos nossos indígenas em Brasília, por causa da votação no STF sobre o Marco Temporal. Esses povos nossos originários mostram sua força, sua conexão com a terra e resistem ao extermínio sistemático de suas vidas há 500 anos.

O avanço do pensamento decolonial, para Boaventura Santos, não deve ser apenas uma releitura da história, a partir da perspectiva dos povos colonizados e destituídos de seu direito de fala, numa ação de resistência, mas uma própria mudança na área do conhecimento, do que consideramos válido como conhecimento. Ele aponta que a dominação da cultura ocidental europeia se dá também pela imposição de uma forma de ver o mundo, científica-tecnológica, à qual há tantas leituras críticas, inclusive pelo fato de que esse jeito de estar no mundo implica, ou pelo menos anda junto com, toda a agressão à mãe-terra, toda a exploração e extermínio de povos inteiros e de culturas silenciadas, toda a desigualdade planetária. Entretanto, ele vai mais além da crítica marxista tradicional, em relação às estruturas perversas do capitalismo, para reivindicar a incorporação de novas epistemologias (ou formas de conhecer), que venham de culturas ancestrais, de comunidades que estão na resistência e na luta para a própria sobrevivência, a partir dessas mesmas culturas, desprezadas e oprimidas pelo projeto colonialista. Projeto, aliás, que não arrefeceu no século XXI. No Brasil, ele acontece ainda internamente, como vemos nas lutas de indígenas e negros, até hoje submetidos à morte e à discriminação. E externamente também: agora mesmo, aprofundamos no Brasil nosso status de colônia dos EUA.

Voltando ao pensamento decolonial e ao revisionismo histórico, que estamos vendo ser reivindicado por povos e por setores da sociedade, dá-se uma desconstrução de todas as narrativas do homem branco, do patriarcado, da visão eurocêntrica… e isso afeta estátuas, livros literários e filosóficos, poemas, canções. Sendo o racismo, o machismo e outros maléficos “ismos” estruturais, eles perpassam produções culturais várias, paisagens diversas, que fazem parte de tradições milenares ocidentais, que apesar de terem sido impostas, têm seu valor tanto quanto as que foram silenciadas nas Américas, na África e na Ásia. E essas que foram silenciadas, não se pode idealizá-las tampouco, porque nelas também há opressões, patriarcados e outros ismos.

Vamos tomar alguns exemplos mais longínquos e outros mais próximos. Pode parecer que temos de abdicar de toda a tradição filosófica grega, de toda raiz de valores cristãos (refiro-me aos legítimos valores propostos por Jesus, de fraternidade e amor e não às suas apropriações inquisitoriais, colonialistas, opressoras). Pode parecer que temos de renunciar a uma parte da história, para incorporar a que foi negada. Pode parecer que temos de recusar autores e obras, que tiveram seu valor estético e filosófico, mas estavam naturalmente contaminados por preconceitos étnicos, homofóbicos ou machistas, dos contextos de suas épocas.

Isso desencadeia uma verdadeira crise de tirar o chão, para quem foi estruturado nessa cultura. Não que não possamos e até devamos nos desconstruir, repensando-nos e reinventando-nos.

O que venho refletindo é que a revisão histórica, o movimento decolonial, as justíssimas reivindicações de povos e grupos, a inclusão das vozes epistemológicas do Sul, como quer Boaventura – tudo isso é uma necessidade, um clamor imprescindível. Inclusive com naturais manifestações de queimar estátuas. Mas e… livros? Já os livros a mim, me chocam. Por mais que tenha absoluta repulsa por um pensamento como o de Hitler, jamais queimaria Mein Kampf, porque precisamos guardar a obra como registro histórico, nem que seja como objeto de estudo psiquiátrico.

Então, isso se aplica aos livros de Monteiro Lobato, aos quadrinhos de Asterix e de Tintim ou a qualquer samba machista ou racista (e há muitos…). Revolução cultural que signifique destruição pura e simples do que estava dado não é inteligente, não é humano e empobrece a história e a cultura. É preciso ensinar e construir novas narrativas e leituras críticas, preservando algo do que constituiu o passado e integrando os avanços presentes.

Mesmo porque todo esse processo é dialético. Há muito de elaboração sociológica e filosófica europeia no próprio clamor decolonialista. Intelectuais do Norte e do Sul, homens e mulheres, brancos, negros e indígenas estão escrevendo, militando e lutando de forma colaborativa nesse sentido. O próprio livro de Boaventura é uma prova disto.

Mergulhando no plano pessoal e trazendo minha visão espírita kardecista, quero concluir, dizendo o seguinte: Como sou reencarnacionista e evolucionista, tenho convicção de que já fui colonizador branco e mulher negra, já vivi na Grécia e na África, no Oriente e no Ocidente e tenho aprendido, como toda a humanidade tem de aprender, que somos essencialmente iguais e que nossas diferenças são preciosas. Para que possamos de fato avançar nesse quesito, temos que promover uma consciência planetária que inclua a todos e todas e não exclua nem os que foram excluídos já, nem os que promoveram a exclusão.

Claro que não vamos homenagear estupradores e canalhas, mas entenderemos que mesmo os bem-intencionados, artistas e filósofos, podem ter tido natural influência do meio. Como nos julgará o futuro? Não teremos aspectos de nosso pensar e agir, que poderão ser considerados inaceitáveis por nossos netos e bisnetos?

Alguns poderão objetar que eu, na condição de branca, adepta de uma filosofia que veio de uma França colonialista, esteja tendendo a “passar pano” para brancos colonizadores e que não há salvação possível para um discurso que venha desse “lugar de fala”. O que sugerem então? A eliminação pura e simples dessa vertente, junto com seus defensores? Ao contrário, penso que é possível a reinvenção das influências francesas e iluministas, no caso espíritas, ao influxo dos avanços decolonialistas do século XXI. Mas isso é assunto para outro artigo ou mesmo para um livro.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.


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