Numa porção de terra em que se fala em mutabilidade constitucional, o que se têm são despojos, um verdadeiro butim a ser partilhado entre os vencedores de uma guerra sem quartel, em que o perdedor é o povo.
De PEC em PEC, a galinha da financeirização enche o papo
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva, no GGN
Desde que se criou a perspectiva da PEC 32, também conhecida como PEC dos Precatórios vem-se falando nos malefícios que isso pode ser para o sistema eleitoral, para o relacionamento entre o Executivo e o Legislativo, bem como na armadilha armada para o próximo governante, mesmo que seja o atual. Duas coisas ficam claras. A primeira que a ideia de um teto era mesmo a burrice descrita na matéria anterior. A segunda é que a constituição não vale absolutamente nada para os governantes de 2016 para cá. Na verdade, ela se tem mostrado como um meio de driblar o poder do STF. Basta que seja uma emenda constitucional para que o guardião da Constituição veja-se na obrigação de também a defender, não importando o quão deletéria ela possa ser para a nação. Em outras palavras, sempre que se quer fazer algo claramente contrário à ordem vigente, basta lançar uma nova PEC, “negociar” os votos em ambas as casas, Câmara e Senado, e está tudo certo. O golpe de 2016, com participação clara do STF desorganizou de tal forma a vida institucional do país, que já não dá para chamar o Brasil de país. Numa porção de terra em que se fala em mutabilidade constitucional, entre outras tolices referendadas, o que se têm são despojos, um verdadeiro butim a ser partilhado entre os vencedores de uma guerra sem quartel, em que o perdedor é o povo. É sobre a partilha que se vai discorrer aqui, pela suposição de que os demais aspectos já se tenham suficientemente discutido.
Depois das privatizações mais recentes, da distribuição do pré-sal e do horror demonstrado pelo presidente ao que é do povo; depois da eliminação de direitos sociais, do retorno das escolas específicas para grupos de seres humanos, da vociferação contra tudo e contra todos sob o suposto manto da liberdade de expressão, restam os bens do estado a dividir. A PEC dos precatórios, além de aprofundar a facilidade com que os imóveis públicos possam fazer face ao pagamento de dívidas transitadas em julgado, incluiu os valores mobiliários que são as ações das empresas com participação estatal, bem como suas dívidas colocadas no mercado primário ou secundário. Explicando melhor, precatórios poderão ser pagos com ações da Petrobras, do Banco do Brasil, da Eletrobras ou de qualquer ente jurídico com parcela de seu capital em poder do Estado. É a privatização na surdina, correndo solta pelos labirintos dos tribunais. Igualmente obscura passa a ser a escolha de imóveis a serem postos à venda, portanto, passíveis de serem usados para pagamento de dívidas. A coisa fica ainda mais grave ao se prever a participação de fundos de investimento na quitação de precatórios.
Antes de entrar nos fundos, é preciso entender o escalonamento que o teto de dispêndios com precatórios causará. A emenda prevê que o dispêndio com precatórios seja igual ao de 2016, corrigido pela inflação. O que passar disso será deduzido do ano posterior; se não houver espaço para ele ali, o pagamento fica para dois anos depois e assim sucessivamente, de forma que os créditos contra o Estado, mesmo que reconhecidos em todas as instâncias judiciais, só será pago quando couber no teto, num futuro completamente incerto.
Imagine que uma nova estrada vá passar sobre sua moradia e que você seja desapropriado por – digamos – R$500 mil. Não sendo um valor destinado à sua manutenção pessoal, o que se chamou de precatório alimentício, sua indenização cai na regra acima. Sabe-se lá qual geração depois da sua vai ver a cor desse dinheiro. Os precatórios ficarão parecidos com os TODA (Títulos da Divida Agrária) emitidos na transição do Império para a República, que ainda não foram pagos.
A diferença é que há uma saída, receber um imóvel ou um lote de ações em pagamento. O problema é que um prédio do governo que, doutra forma, seria vendido em leilão, não vale o mesmo que seu precatório, ou seja, no portfólio de ativos postos à disposição para quitação de precatórios, não haverá algo que se encaixe no valor da dívida que o Estado tem com você. A única saída é vender seu precatório, com estrondoso deságio. Na perspectiva de não receber nada, nem para si, nem para seus netos, você topa receber R$150 mil pelo seu precatório. Isso só interessa para quem possa reunir vários deles e compor um lote cuja somatória dos valores de face se assemelhe a um ativo de que o Estado possa lançar mão. Um prédio público pode equivaler a centenas de precatórios. Somente fundos conseguem fazer isso, seja por ter disponibilidade suficiente, seja por contar com advogados capazes de tocar a tramitação. Como o papel foi comprado baratinho e incluso no lote pelo valor de face, é a sopa no mel. No exemplo da desapropriação, o ganho inicial será de R$350 mil para os quotistas do fundo. O mais interessante é que, como os fundos são compostos por quotas, o “dono” do precatório pode não receber em dinheiro, porém, em participação no fundo, na expectativa de obter ganho de capital com um papel que, a rigor, presentemente, não tem valor algum.
Com os valores mobiliários a coisa é um pouco mais complexa porque requer avaliação do ativo. Isso inclui desde ações de estatais a direitos inclusos na dívida ativa da União. Aí entram mais técnicos, mais empresas de auditoria e outros meandros que ensejam algum tipo de corrupção. De qualquer forma, é o patrimônio público, no que tem de mais permanente, que se esvai, indo tudo isso parar nas mãos de fundos de investimento, numa forma canhestra de financeirização da vida pública. Resta saber quanto tempo falta para o presidente ser surpreendido por uma ação de despejo do Palácio do Planalto pelo pagamento de alguns milhares de precatórios inclusos em um nada transparente lote. Para isso acontecer, basta que uma nova PEC levante o tombamento para fins de quitação da dívida pública. Resta esperar para ver. Afinal, com PEC, tudo se resolve.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.
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