domingo, 1 de março de 2020

Religiões: entre ilusões que alienam e promessas de esperanças ... Reflexões de Dora Incontri







Muda-se de judaísmo para cristianismo, passa-se pelo islamismo ou pelo confucionismo, adote-se o ateísmo individual ou de Estado, e sempre encontramos o mesmo patriarcado, a mesma opressão, o mesmo autoritarismo narcísico

Religiões – ilusões que alienam ou esperanças que sustentam?

Por Dora Incontri, no GGN

Para o pai da psicanálise, que proibiu sua esposa Martha Freud de praticar a herança judaica de sua família, a religião era uma ilusão – uma espécie de infantilismo psíquico – que desapareceria no futuro. Para Freud, o ser humano estaria projetando seus anseios infantis na ideia de um deus paterno e protetor.
Para Marx, o pai do socialismo científico,  a religião seria uma forma de anestésico popular (mas também o coração substituto de um mundo sem coração), que as classes dominantes usam para manter sob controle as classes dominadas.
Ora, quando vemos hoje tanta gente psiquicamente dependente da imagem de um deus punitivo, com o qual estabelece uma relação de barganha (pago dízimo e deus me recompensa com prosperidade) e de submissão masoquista; quando vemos populações inteiras, manobradas em nome de formatos religiosos fundamentalistas, diante dos quais os direitos individuais, a liberdade, a sexualidade, a ciência, a razão… são massacrados… então somos tentados a dar razão a Freud e Marx. E sim, essas críticas tinham consistência e ainda são historicamente necessárias, para limpar as religiões de seus aspectos psiquicamente doentios e socialmente nocivos.
Mas é preciso dizer que eles próprios, ainda citando Freud e Marx, com todo o seu espírito de ateísmo livre, não escaparam de muitas das contingências negativas que ainda criticamos nas religiões. Estou lendo o livro Madame Freud, de Nicolle Rosen. Estudo há muito a psicanálise e li diversas biografias de Freud e é impressionante o grau de machismo que está presente em suas atitudes pessoais e nas próprias teorias psicanalíticas. Não se pode negar também o grau de autoritarismo com que ele se relacionava com familiares e discípulos. Um narcisista do mais puro sangue. Sem nenhuma religião, agiu como um rabino ou um sheik fundamentalista em relação às mulheres, mantendo por exemplo, relações simultâneas com a esposa e a cunhada, situação a que Martha teve que se sujeitar dentro de seu próprio lar. Claro que se pode dizer que, embora ele fosse um crítico das religiões, ainda estava enraizado na tradição judaica, e não conseguiu se livrar de seu contexto.
O mesmo se pode dizer de Marx, que foi igualmente opressor de sua esposa (a quem traiu também dentro de casa com a empregada e pediu que Engels assumisse o filho desse relacionamento), e com todos os que discordavam de suas teorias, tendo por exemplo, banido da Internacional Operária os anarquistas – eles que haviam começado todo o movimento operário no mundo.
Então, muda-se de judaísmo para cristianismo, passa-se pelo islamismo ou pelo confucionismo, adote-se o ateísmo individual ou de Estado, e sempre encontramos o mesmo patriarcado, a mesma opressão, o mesmo autoritarismo narcísico.
Recomendo também para essa análise o documentário premiado com o Oscar, American Factory, onde se mostra o grau de opressão de uma empresa chinesa, radicada nos EUA. Na cultura chinesa atualmente existe uma esdrúxula mistura de comunismo maoísta, capitalismo selvagem e antigos hábitos da tradição confucionista de submissão absoluta ao clã (que hoje aparece travestido de empresa).
O problema, portanto, não é a religião. A opressão aparece em toda parte. Ela está arraigada nas formas sociais e no psiquismo humano. O problema é como ela também se torna instrumento das formas de patriarcado, autoritarismo e poder na sociedade humana.
Não acho que seja possível, nem mesmo desejável, que se mate a religião na sociedade. Ela pode ser fonte de esperança, resiliência, até de valores como compaixão e fraternidade. Assim como não acho que seja possível, nem mesmo desejável, que se extirpem as contribuições desses gênios autoritários, como Freud e Marx, e nem das propostas socialistas, com seus erros e com seus acertos.
É útil acolhermos o que é bom em cada coisa. O ser humano, na minha visão espírita, tem uma dimensão espiritual, porque é uma alma encarnada. Por isso, por mais que se pretenda extirpar a espiritualidade, ele não desaparece e volta sempre de alguma forma.
Aproveitemos as críticas que os ateus fizeram ao poder opressor das religiões, mas sobretudo, precisamos dar voz às mulheres, com sua espiritualidade, que foi sempre submetida e sufocada. Precisamos desconstruir através de uma educação libertária, as estruturas de submissão, obediência e alienação, que imperam em todos os quadrantes do planeta.
No excelente filme Papa Francisco, um homem de palavra, uma coisa que me incomodou tremendamente é o fato de só vermos homens. O papa, seu colégio cardinalício e todos (ou quase todos) os seus interlocutores religiosos, muçulmanos, judeus, ortodoxos, budistas… todos homens.
Por isso, é verdade, a revolução do mundo será feminista, ou não será. Mas, de preferência, um feminismo que se permita admitir a alma.




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