quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

No exemplo de Cristo e Gandhi: Cartas sobre não-violência (1), por Dora Incontri



Há urgência em se falar sobre o tema, porque a escalada de violência no Brasil está atingindo níveis alarmantes

Cartas sobre não-violência (1), por Dora Incontri, no GGN

Esta é a primeira de uma série que vou escrever semanalmente e publicar simultaneamente nessa minha coluna de Espiritismo Progressista, replicando em meu blog pessoal e no blog da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
Há urgência em se falar sobre o tema, porque a escalada de violência no Brasil está atingindo níveis alarmantes: milicianos no poder, policiais militares invadindo escolas, chutando grávidas nas ruas, e indígenas, negros e ativistas assassinados… e mais recentemente, também pessoas de esquerda clamando que contra tais violências e contra as violências estruturais, antigas, que nos marcam cotidianamente, é preciso reagir com violência.
Começo dizendo que não-violência não é passividade, submissão, indiferença, conluio com o mais forte, aceitação da injustiça. É simplesmente buscar métodos de resistência, de militância, de mudança estrutural e tomada de consciência, que não passem pela mão armada. Isso, segundo todos os que percorreram esse caminho no século XX e os que o anunciaram ainda no século XIX. Entre os últimos, Henry Thoreau, o autor de Desobediência Civil  e Lev Tolstoi, autor, entre outros, de Escravidão Moderna.  Entre os primeiros, Gandhi e Martin Luther King.
Trata-se de uma esquerda que não quer tomar o poder, mas romper com o poder; não colaborar com ele, não se submeter e achar caminhos de ação, que desmontem justamente a estrutura do poder. Pode-se alegar que tais personalidades conseguiram muito pouco, que tinham também seus problemas pessoais. Não endeusamos ninguém e sempre é possível achar defeitos nos melhores. Mas exaltamos a tentativa, o caminho já experimentado e que pode nos servir de inspiração para trilhar outros e criar alternativas.
A violência todos conhecemos sobejamente. A violência pode ser praticada por puro sadismo, por puro banditismo, por pura vontade de submeter o outro. Mas também pode ser apregoada com inúmeras justificativas e com a intenção de consertar o mundo, de estabelecer a justiça e de criar uma nova ordem social. Pessoalmente não me agrada nenhum resultado do que se alcançou com violência, em termos de revoluções, guerras e golpes. Do terror da guilhotina na França aos milhões exterminados nos Gulags estalinistas, tantas vidas humanas arrasadas, para um resultado pífio de justiça. Do outro lado do pêndulo de esquerda/direita, não se pode deixar de mencionar as violências das ditaduras latino-americanas, desumanizantes, absurdas. E ainda todas as intervenções militares do Império Norte-americano, para supostamente promover a democracia – aquela que se move como marionete dos interesses do capital.
As nossas relações humanas, de pais para filhos, de homem para mulher, de heteronormativos para homoafetivos, de brancos para negros, de impérios para nações periféricas – todas passam por extrema violência, em que a integridade da vida humana e sua dignidade são a cada segundo atacadas e pisadas. 
Mas… como combater tanta violência? A violência é estrutural do psiquismo humano e por isso não haverá esperança de se superá-la enquanto espécie? Para a psicanálise freudiana, a pulsão de tânatos faz parte de nossa estrutura psíquica e não pode ser arrancada de nós. No máximo, com muita sorte, podemos criar arte e elementos civilizatórios, sublimando nossas pulsões. Mas, no final da vida, bastante pessimista, Freud duvidava se a humanidade conseguiria sobreviver a si mesma – e isso mesmo ele não tendo chegado a testemunhar os horrores do nazismo e da bomba atômica.
Entretanto, é aí que somente uma visão de espiritualidade pode nos acenar com alguma esperança. Para Victor Frankl, que começou como discípulo de Freud, e depois desenvolveu sua própria proposta da Logoterapia – há em todo ser humano, sempre uma dimensão intocada, que não adoece, que é uma espécie de divindade escondida e que pode ser atingida. Essa era também a ideia do maior filósofo de todos os tempos, Sócrates, que pretendia extrair de dentro ser humano essa luz interna, através de seu processo maiêutico, uma espécie de parto espiritual. 
Como se vê, são dois pressupostos diferentes a respeito da natureza humana: para uns, não há como o ser humano vencer definitivamente esse primitivismo violento; para outros, há uma garantia, ou pelo menos uma esperança de superação, pela presença do sagrado em nós.
Para terminar essa primeira carta sobre esse tema, quero lembrar de Jesus. Em nome dele, se pratica muita violência, muita opressão, muito desrespeito à liberdade de consciência. Mas ele foi o exemplo do amor. Pagar o mal com o bem, oferecer a outra face, perdoar setenta vezes sete, amar os próprios inimigos… Esse mestre esteve bem longe do conluio com os poderosos, de fazer compromissos com os ricos, com as hierarquias religiosas, com os homens predadores. Foi duro e corajoso contra os que oprimiam e exploravam o povo. Mas também não se uniu aos zelotes numa revolução armada. Se quisesse, poderia se autoproclamar o messias esperado pelos judeus de então, pois muitos deles acreditavam que esse messias viria para os libertá-los dos romanos. Ao invés, sofreu tortura e martírio e mostrou compaixão por aqueles mesmos que o matavam. 
Seria essa solução de perdão, entrega, compaixão com os próprios inimigos uma solução viável, eficaz num mundo complexo e violento como o nosso? 
Meditemos nisso, até a próxima semana. 

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