Bertolt Brecht (1898-1956) não foi apenas um grande escritor e poeta, mas um dos maiores pensadores políticos do séc. XX. Muitas das suas reflexões sobre o fascismo e como resistir a ele continuam atuais, quando não adquirem uma atualidade inesperada.
Traduzimos aqui um breve texto escrito em novembro de 1937 no exílio dinamarquês. Esse discurso provavelmente nunca foi proferido. Foi publicado postumamente. Seu tema foi tratado por Brecht também na sua peça “A vida de Galileu” e em “Terror e miséria do Terceiro Reich”.
por Carlos Ferreira de Araújo
para Luiz Inácio Lula da Silva,
pelo seu 73º aniversário
em 27 de outubro de 2018
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DISCURSO SOBRE A CAPACIDADE DE RESISTÊNCIA DA RAZÃO
Bertolt Brecht
Diante das medidas extremamente rigorosas tomadas contra a razão nos Estados fascistas da atualidade, diante dessas medidas tão metódicas quão violentas, é lícito perguntar se a razão humana poderá resistir genericamente a esse formidável ataque. Naturalmente asseverações otimistas, vazadas em termos tão genéricos, como “no fim a razão sempre vence” ou “o espírito nunca se desenvolve com maior liberdade do que nos momentos nos quais sofre violência”, não levam a nada. Tais asseverações são, elas mesmas, pouco racionais.’
Com efeito, a faculdade humana de raciocinar pode sofrer danos espantosos. Isso vale tanto para a racionalidade dos indivíduos quanto para a de classes e até mesmo de povos inteiros. A história da faculdade humana de raciocínio apresenta grandes períodos de esterilidade parcial ou total, exemplos de involuções e atrofias assustadoras. Com meios adequados, a estupidez pode ser organizada em larga escala. Dependendo das circunstâncias, o ser humano poderá aprender igualmente bem que dois vezes dois são cinco ou quatro. Já no século. XVII, o filósofo inglês Hobbes afirmava: “Se o teorema que estabelece que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos estivesse em contradição com os interesses dos comerciantes, estes mandariam de pronto queimar todos os manuais de geometria.”
Temos de supor que os povos individuais nunca produzem mais racionalidade do que aquela que podem aproveitar (se alguma vez se produzisse mais, ela não seria assimilada), mas amiúde menos. Assim, se não pudermos indicar um uso bem determinado da razão - uma necessidade momentânea bem determinada para a manutenção do estado vigente -, não teremos condição de afirmar que a razão atravessará incólume o período atual de pesada perseguição.
Se digo aqui que a racionalidade deve ser necessária para a manutenção do estado vigente, para que se lhe possa dar algumas oportunidades, digo isso depois de refletir bem. Por bons motivos não digo que a racionalidade deveria ser necessária para a reconfiguração do estado vigente, pois, na minha opinião não podemos esperar que ela seja mobilizada apenas por ser necessária para melhorar esse péssimo estado vigente. Um estado vigente ruim pode perdurar por períodos incrivelmente longos. É mais plausível dizer que quanto pior o estado vigente, tanto menor será a racionalidade, do que quanto pior o estado vigente, mais se produz racionalidade.
No entanto, creio, como já disse, que se produz tanta racionalidade quanto necessário para a manutenção do estado vigente. Surge assim a pergunta sobre a quantidade de racionalidade, pois, uma vez mais: se perguntarmos quanta racionalidade será produzida nos próximos tempos, deveremos indagar qual quantidade de racionalidade será necessária para manter o estado vigente.
É praticamente inquestionável que a situação nos países fascistas é péssima. Neles, o padrão de vida está caindo, e todos carecem de guerras para que se possam manter. Não podemos, porém, supor que a manutenção de uma situação tão péssima exija uma quantidade especialmente reduzida de racionalidade. A racionalidade, que deve ser aplicada aqui, que deve ser produzida constantemente e que não pode ser estrangulada por muito tempo, não é reduzida, embora tenha uma natureza específica.
Poderíamos expressar isso nos seguintes termos: a racionalidade deve ser aleijada. Deve ser uma razão regulável, que possa ser aumentada ou diminuída de modo mais ou menos mecânico. Ela deve poder correr longas distâncias e com rapidez, mas deve poder ser chamada de volta com um apito. Deve ser capaz de chamar-se de volta com um apito, de enfrentar a si mesma, de destruir-se.
Examinemos o tipo de racionalidade aqui necessária. O físico deve estar em condições de construir aparelhos óticos para a guerra, que possibilitem uma visão a grande distância; mas ao mesmo tempo deve estar em condições de não ver acontecimentos no seu entorno imediato, digamos, na sua universidade, que lhe são extremamente perigosos. Precisa construir dispositivos de proteção contra os ataques de nações estrangeiras, mas não deve pensar sobre o que deve ser feito contra os ataques que lhe são movidos pelos órgãos públicos do seu próprio país. Na sua clínica, o médico procura um remédio contra o câncer que ameaça o seu paciente, mas não pode ir atrás do remédio contra o gás mostarda e as bombas lançadas de aviões, que ameaçam a sua própria pessoa na sua clínica, pois o único meio contra um ataque de gás mostarda seria um meio que impedisse a guerra. Os trabalhadores intelectuais precisam desenvolver constantemente suas habilidades lógicas, para que possam trabalhar nas suas áreas de especialização, mas devem ser capazes de não aproximar demais essas habilidades das áreas de central importância. Precisam tomar providências para que a guerra seja terrível, mas precisam deixar a decisão sobre guerra ou paz aos cuidados de pessoas de inteligência claramente pequena. Nessas áreas de central importância eles percebem em ação os métodos e teorias, que, aplicadas às suas áreas de especialização, como a Medicina ou a Física, lhes pareceriam medievais.
A quantidade de racionalidade, de que as camadas dominantes carecem para tocar os negócios correntes, não depende da sua livre decisão; num Estado moderno ela é considerável, e ela torna-se mais considerável quando tais negócios precisam ser continuados com outros meios, a saber, com a guerra. A guerra moderna devora quantidades enormes de racionalidade.
A introdução da escola fundamental moderna não se deu porque as camadas então dominantes queriam prestar um serviço à razão, movidas por razões idealistas, mas porque foi necessário elevar a inteligência das camadas mais amplas da população, para que a indústria moderna pudesse ser servida. Se a inteligência dos trabalhadores tivesse sido reduzida em excesso nesse momento, a indústria não poderia ser mantida. Por conseguinte, a inteligência dos trabalhadores não pode ser reduzida demais, não importa quão desejável isso possa parecer às classes dominantes por determinadas razões. Não se pode conduzir uma guerra com analfabetos.
Se, portanto, a quantidade da racionalidade necessária não depende da decisão das camadas dominantes, tal quantidade exigida e com isso pelo menos assegurada, também não pode ser produzida sem mais nem menos na qualidade que seria agradável às classes dominantes.
Já a formidável difusão da racionalidade por meio de sua introdução nas escolas fundamentais trouxe também, além do crescimento da indústria, um aumento extraordinário das exigências das camadas mais amplas da população, cuja pretensão à dominação ganhou assim um sólido fundamento. Podemos aqui formular um teorema: para os fins da opressão e exploração das grandes massas: as classes dominantes carecem de quantidades tão grandes de racionalidade em qualidade tão elevada nessas massas, que a opressão e exploração se veem ameaçadas com isso. Reflexões frias desse tipo podem levar-nos à conclusão de que os ataques à razão, conduzidos pelos governos fascistas, um dia ainda provarão ser aventuras quixotescas. Os governos fascistas são forçados a permitir a subsistência de, e até a criar, eles próprios, grandes quantidades de racionalidade. Podem insultar a razão o quanto quiserem. Podem representá-la como uma doença, podem denunciar o intelecto como algo de bestial, mas mesmo para tais discursos eles necessitam de aparelhos de rádio, que devem sua existência apenas à razão. Junto às massas, os governos fascistas necessitam para a manutenção da sua dominação da mesma quantidade de racionalidade, que seria necessária para a eliminação dessa mesma dominação.
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