quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Não existe combate à corrupção com tribunal fechado, por Leandro Mitidieri, Procurador da República e Coordenador do Núcleo de Combate à corrupção da Procuradoria da República do Rio de Janeiro



    "Há um certo padrão nas rupturas autoritárias de regimes ocorridas no Brasil, que vieram quase todas com essa pitada da questão da corrupção. Assim é que, para citar alguns exemplos, o tema da corrupção foi invocado por Getúlio para derrubar a Velha República, norteou a campanha de Carlos Lacerda que culminou na tentativa de impeachment do mesmo Getúlio e fundamentou o pedido de sequestro dos bens de João Goulart e Juscelino Kubitschek, na ditadura militar."


Não existe combate à corrupção com tribunal fechado

Segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Não existe combate à corrupção com tribunal fechado


Arte: Caroline Oliveira
É grave não perceber que a ausência de instituições fortes e de imprensa livre são justamente as causas para eventual sensação artificial de menos corrupção em ditaduras
Seja com base na sua primeira sistematização feita por Heródoto ou na fé de Hegel de que ela é governada pela razão, é impressionante constatar que, sim, a história se repete. Há um certo padrão nas rupturas de regimes ocorridas no Brasil, que vieram quase todas com essa pitada da questão da corrupção. Assim é que, para citar alguns exemplos, o tema da corrupção foi invocado por Getúlio para derrubar a Velha República, norteou a campanha de Carlos Lacerda que culminou na tentativa de impeachment do mesmo Getúlio e fundamentou o pedido de sequestro dos bens de João Goulart e Juscelino Kubitschek, na ditadura militar.
A relação entre democracia e corrupção é amplamente estudada no mundo. Um dos maiores nomes da literatura internacional sobre corrupção, Susan Rose-Ackerman, aponta que o ambiente mais propício para o abuso do “poder confiado” aos governantes para ganhos privados seria um Estado fraco ou autocrático[1].
No Brasil, essa relação vem sustentada desde os clássicos sobre o tema. “Os donos do poder” de Raymundo Faoro discorre sobre o caráter patrimonialista do Estado e, por extensão, de toda a sociedade brasileira, consistente no particularismo, nos privilégios e justamente na falta de democracia, que sempre teriam marcado o exercício do poder político no Brasil.
A ideia por detrás da democracia mitigando a corrupção começa na crença de que a submissão ao crivo popular por meio de eleições periódicas restringiria a ganância dos políticos. A proteção das liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, contribuiria para processos eleitorais mais legítimos e para um governo mais controlado. Em contraste, Estados não democráticos seriam mais suscetíveis à corrupção naturalmente pela ausência de efetivos controles (freios e contrapesos).
A segurança excessiva do governante de que se manterá no poder tende a torná-lo mais corrupto. Deve haver a chance de manutenção do poder, mas não absoluta, de forma a funcionarem os efeitos controladores dos políticos e partidos de oposição, podendo a questão da corrupção ser determinante na campanha eleitoral.
Não se trata da mera realização de eleições, como já demonstrava “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Vitor Nunes Leal, em que um sistema corrupto se mantinha por meio do “voto de cabresto”. Ora, a própria máfia italiana, após devidamente instalada no Sul e comumente aceita, espalhou-se por aquele país e pelo governo por meio de eleições.
Trata-se da efetivação da democracia por meio da participação e das instituições. Michael Johnston fala em profunda democratização (“deep democratization”), que quer dizer não apenas eleições competitivas ou esquemas de transparência, apesar de valiosos, mas sim possibilitar que os cidadãos busquem e defendam efetivamente seus valores e interesses e se estabeleçam em adequadas instituições e práticas de uso de riqueza e poder[2]. Nesse tocante, há teses que ganharam ainda mais notabilidade, como a de Acemoglu e Robinson em “Por que as nações fracassam”. Para eles, as nações fracassariam por possuírem instituições “extrativas”, em que um pequeno grupo de indivíduos explora o resto, ao contrário de “inclusivas”, em que muitas pessoas são incluídas no processo de governar, atenuando ou eliminando a exploração[3].
A questão é bem complexa, mas parece ficar claro que combate à corrupção se dá pela via democrática. Rupturas são verdadeiros atalhos desastrosos, que acabam funcionando mesmo como uso da lei para fins políticos, ou seja, o chamado “lawfare”. É o que se extrai de qualquer ranking de corrupção, em que os países com menor corrupção (países escandinavos, Nova Zelândia, Austrália e Canadá) são todos democracias.
As experiências tão difundidas e estudadas do pós Operação Mão Limpas na Itália deveriam servir como alerta para essa armadilha: condições democráticas permitem a efetiva persecução da grande corrupção, mas, quanto mais contundentes seus resultados, maior é o risco para uma guinada autoritária.
É grave não perceber que a ausência de instituições fortes e de imprensa livre são justamente as causas para eventual sensação artificial de menos corrupção em ditaduras, sensação esta desmentida por qualquer análise um pouco mais profunda. Assim, quem nutre algum tipo de nostalgia em relação a regimes ditatoriais ou aprecia bravatas de “fechar o STF” pode estar veiculando diversas bandeiras, mas não a do efetivo combate à corrupção.

Leandro Mitidieri é Procurador da República, Coordenador do GT Olimpíadas do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no RJ, ex-Professor da UFF, Mestre em Direito Constitucional pela UFF e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa.
 [1] ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and government: causes, consequences, and reform. New York: Cambridge University Press, 2016, versão digital, posição 489 e 10887.
[2] JOHNSTON, Michael. Syndromes of corruption. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 218.
[3] ACEMOGLU, Daron. ROBINSON, James A. Why nations fail: the origins of power, prosperity and poverty. Crown Business, 2012, p. 77.

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