Um dia, irmão, comemoraremos nossa vitória com um banquete. Todos os que lutaram, ou que só usaram o barrete. E bêbados de nós mesmos, a mesa coberta com os destroços do combate — difícil dizer o que é sangue e o que é molho de tomate —, brindaremos as cadeiras vazias dos que lá não estão. Os fantasmas de uma geração.
Um que morreu no exílio e foi devorado por vermes estrangeiros.
Um que enlouqueceu um pouco e tem delírios passageiros. O que comprou um sítio em Cafundós do Oeste e nos manda fotos tristes dos seus pés em tamancos.
O que nós só vemos na rua, esbaforido, correndo entre dois bancos.
O que era anarquista e acabou na IBM. O que era poeta maldito e acabou na MPM.
O que casou com a Vivinha e dizem que come a sogra.
O que era seminarista e dizem que transa droga.
Um que ia mudar o mundo, e se mudou.
O que ia ser o melhor de nós todos, e vacilou.
Nossa Rosa Luxemburgo, que abriu uma butique.
Nosso quase Che Guevara, que hoje vive de trambique.
Restaremos você e eu, irmão.
E os balões circundarão nossas cabeças como velhos remorsos. E o pianista ruirá sobre as teclas como o Império Bizantino. E os garçons olharão o relógio e desejarão a nossa morte.
Seremos sentimentais e um pouco arrogantes.
Danem-se nossas trapalhadas, estivemos nas barricadas!
Esta civilização nos deve, pelo menos, outra rodada.
Um dia, irmão, um dia.
Você proporá um brinde à razão e nossos copos vazios, com o choque, explodirão. Eu cantarei velhos hinos revolucionários, sob protestos dos vizinhos, certamente reacionários.
Brindaremos à fraternidade universal e à luta antiimperialista e à Nena do Tropical, que dava desconto pra esquerdista.
Choraremos um pouco. E cataremos, entre as migalhas da mesa — como oráculos o futuro nas vísceras de um cágado —, vestígios do nosso passado.
O toco de um Belmonte Liso.
Meu Deus, o meu dente do siso!
Bilhetes de loteria que nunca deram e de namoradas que também não.
A letra semi-apagada de Great Pretender.
Um tostão.
Bêbados de autopiedade, brindaremos esta cidade onde nascemos e morremos mais de uma vez (só eu foram três) mas salvamos do inimigo. Nosso reino, nosso umbigo.
Não temos placas na rua como heróis da Resistência, mas temos a consciência de que os bárbaros não passaram.
Mas sei que no fim desses disse-que-disses os dois prostrados como mães de misses já com aquele olhar do Ulysses você me dirá no nariz, com um bafo que, bem aproveitado, seria uma força motriz:
— Como, heróis? Como, não passaram? Meu querido, não te falaram?
E completará com um gargalo, a caminho do assoalho:
— Os bárbaros ganharam!
Luís Fernando Veríssimo
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