sábado, 25 de julho de 2015

Laudato Si’: a visão sistêmica de Francisco que atualiza o debate ambiental

   Pensar em sistema permite entender que “a Terra ferida e os pobres despossuídos são protagonistas de processos de luta e de transformação”, diz a antropóloga Moema Miranda, do Ibase - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, sobre a encíclica do Papa Francisco.


Imagem: grupomagister.com.br
Extraído do Luis Nassif Online
Pensar em sistema permite entender que “a Terra ferida e os pobres despossuídos são protagonistas de processos de luta e de transformação”, diz a antropóloga
Moema Miranda, diretora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, se debruçou sobre a Encíclica Laudato Si’ e, depois de participar de encontro no Vaticano, comemora: “após dois mil anos de dualismo, pela primeira vez uma perspectiva sistêmica e integrada é afirmada com tanta clareza em um documento da Igreja”. Para ela, essa é a grande novidade do documento apostólico. É como abrir uma janela para oxigenar não só o debate de causas ambientais, mas uma visão de mundo. “Abre-se uma fundamental e bem posicionada possibilidade de diálogo com abordagens sistêmicas desenvolvidas pelas chamadas ciências do sistema terra, que envolvem a física, a química, a biologia, entre outras”, completa, em entrevista concedida por e-mail para IHU On-Line.
O que Moema chama de visão sistêmica é materializada na Encíclica com as repetidas afirmações de que “tudo está interligado”. Isso permite entender que não há uma crise ambiental e outra social. Ou seja, se a terra sofre, os pobres são impactados, e vice-versa. “A Terra ferida e os pobres despossuídos são protagonistas de processos de luta e de transformação”, destaca. Assim, percebe-se que o documento tem poder de inspirar não somente católicos. Isto credita peso político para Laudato Si’, que “apresenta-se como documento com enorme capacidade de influenciar o debate e de contribuir para ações mais coordenadas no enfrentamento das causas do aquecimento global”, avalia.
Na entrevista, a antropóloga também aponta questões que foram deixadas à margem. Para ela, há “uma grande e lamentável ausência na Encíclica: trata-se do papel e do lugar das mulheres em todo este debate. Sabemos bem que a pobreza tem gênero, raça e geração. As mulheres estão entre as pessoas mais pobres em todo o mundo. São também as mulheres, especialmente aquelas vivendo em situação de pobreza, as que pagam o preço mais alto pelas mudanças climáticas que afetam as vidas de suas famílias”, avalia.
Moema Miranda (foto abaixo) é antropóloga, com mestrado e pós-graduação em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Integra a direção colegiada do Ibase. Participou do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20. É membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Coordena o projeto “Diálogo dos Povos – Uma articulação Sul-Sul”, com a participação de entidades e redes da América Latina e da África.
Em julho, participou da conferência sobre a Encíclica Laudato Si’, intitulada “As pessoas e o Planeta em primeiro lugar: imperativo a mudar de rumo”. O encontro realizado no Vaticano foi promovido pelo Pontifício Conselho da Justiça e da Paz junto com a Aliança Internacional das Organizações Católicas para o Desenvolvimento - CIDSE.
Confira a entrevista.
Foto: 10anos.cdes.gov.br
IHU On-Line - Qual é a importância da Encíclica Laudato Si’ na convergência de esforços para mitigar as mudanças climáticas? Como deve ser a repercussão da Encíclica no encontro da COP 21, em dezembro, em Paris?

Moema Miranda - Estamos a poucos meses da COP 21 em Paris. A Encíclica Laudato Si’ chega — em termos políticos — a tempo de contribuir com o avanço dos debates internacionais, bem como nacionais, sobre as medidas que devem ser tomadas no campo das mudanças climáticas. As organizações da sociedade civil têm denunciado como os processos oficiais estão distantes de decisões relevantes que alterem o curso “que parece suicida” (LS 55) de aumento do aquecimento global. Na Encíclica, o Papa identifica, em consonância com este entendimento, que “as cúpulas mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, por que não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes” (LS 166).
Hoje as causas humanas das mudanças climáticas, assumidas com total clareza na Laudato Si’, têm aceitação praticamente consensual entre cientistas e organizações da sociedade civil. Apesar disso, os mecanismos governamentais, internacionais e nacionais, para a tomada de decisões efetivas, têm se demonstrado dramaticamente ineficazes. A causa principal encontra-se na captura dos debates pelos interesses das grandes corporações, que têm cada vez maior influência sobre os sistemas políticos.
Papa, especialmente a partir da Laudato Si’, assume uma posição de destaque, sendo o único líder com expressão internacional a afirmar a necessidade de enfrentar as causas reais do aquecimento global, indo além de soluções “superficiais”. Neste contexto, muitas das denúncias e críticas que vêm sendo feitas por organizações populares, pastorais e movimentos ambientalistas e sociais há anos, ganham uma nova dimensão
Revelações pela visão sistêmica
Pela crescente popularidade e expressão social que o Papa adquiriu, sua intervenção chamará atenção para aspectos essenciais: denunciando as “falsas soluções” ou as “soluções superficiais” (LS 54); defendendo propostas que respeitem as “responsabilidades comuns porém diferenciadas” (LS 170); considerando a “dívida ecológica” dos países do Norte (LS 51); indicando a necessidade de superar o uso de energias fósseis (LS 26); exigindo que se imponham limites claros aos padrões de consumo hegemônicos: “devemos aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo” (LS 193).
Finalmente, a Encíclica, ao apresentar uma visão sistêmica (“tudo está ligado com tudo”, (LS 16), reconhece que “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental”(LS 139). Este reconhecimento coincide com o que os movimentos sociais tinham afirmado já no Fórum Social Mundial de 2009, em Belém, ao denunciar a “crise de civilização”.
A consequência desta perspectiva é que, como afirma o Papa, “convém evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações?” (LS 190).
Há, portanto, da perspectiva da Encíclica, a necessidade de superar o sistema baseado na “cultura do descarte” (LS 22), o que implica uma revisão profunda do modelo econômico, social e cultural hegemônico. A Laudato Si’ apresenta-se, assim, como documento com enorme capacidade de influenciar o debate e de contribuir para ações mais coordenadas no enfrentamento das causas do aquecimento global. No entanto, não devemos esperar que esta seja uma batalha fácil! Os oponentes são extremamente poderosos!
IHU On-Line - Como está sendo a recepção desse documento entre os pesquisadores e ambientalistas? A senhora participou de encontros e discussões sobre o documento (inclusive no Vaticano). O que tem surgido a partir dessas discussões?
Moema Miranda - No começo de julho, em Roma, o Pontifício Conselho de Justiça e Paz [1], em cooperação com a Coordenação das Agências Católicas para o Desenvolvimento - CIDSE, organizou um importante seminário sobre a Encíclica. Contou com a presença de aproximadamente 180 pessoas de mais de 20 países. Entre eles, organizações ambientalistas, movimentos populares e pastorais sociais. A avalição comum sobre a Encíclica foi extremamente positiva. Naomi Klein [2], ativista e jornalista canadense, por exemplo, disse que “agora o Vaticano elevou o nível do debate”, abrindo possiblidades de avanços efetivos nas discussões sobre clima.
Mary Robinson [3] afirmou que “a Encíclica é muito melhor do que esperávamos”. Pablo Solón [4], reconhecido ambientalista boliviano, escreveu: “a Encíclica sobre o Cuidado da Casa Comum é um chamado a reconhecer que todos somos parte de uma família universal e a viver em comunidade com nossa Madre Terra”[5] . Estas opiniões, comuns ao representante da Via Campesina [6] e a outros líderes presentes, indicam a avaliação positiva que a Encíclica vem encontrando na sociedade civil organizada. Sem dúvidas, isto se deve ao fato de que efetivamente ela recolhe inúmeras das perspectivas e propostas elaboradas ao longo de anos de mobilização e luta. 
O Papa promoveu um primeiro encontro com movimentos sociais em julho do ano passado. Não foi um encontro banal. Percebe-se claramente que houve uma escuta séria e respeitosa da voz, tantas vezes silenciada, criminalizada, perseguida ou desqualificada dos que lutamos por um “outro mundo possível”.
Ausência feminina
No entanto, foi identificada uma grande e lamentável ausência na Encíclica: trata-se do papel e do lugar das mulheres em todo este debate. Sabemos bem que a pobreza tem gênero, raça e geração. As mulheres estão entre as pessoas mais pobres em todo o mundo. São também as mulheres, especialmente aquelas vivendo em situação de pobreza, as que pagam o preço mais alto pelas mudanças climáticas que afetam as vidas de suas famílias. A elas cabe extra-trabalho quando há problemas com a água, a terra, o aumento das doenças, entre tantos outros efeitos.
As mulheres são ativas militantes nos movimentos sociais e ambientais, nas pastorais sociais, nas organizações populares e de base. As feministas, camponesas, indígenas, quilombolas, moradoras de favelas, jovens artistas, entre tantas outras, estão organizadas. Elas defendem direitos, formulam propostas. É uma grande pena que sua voz, seu papel essencial nas lutas socioambientais e sua vitimização não tenham sido evidenciadas e valorizadas na Encíclica.
IHU On-Line - Em quais aspectos esse documento papal dialoga e problematiza as principais constatações e concepções científicas e antropológicas de nosso tempo? Em que medida a Encíclica questiona e problematiza o antropocentrismo que caracteriza a vida na Terra?
Moema Miranda - A Encíclica Laudato Si’ é histórica por muitos de seus aspectos. Certamente, entre estes, destaca-se o fato de ser o primeiro documento pontifício a adotar uma perspectiva sistêmica, holística, como chamou atenção Roberto Malvezzi [7], da Comissão Pastoral da Terra - CPT [8]. Após dois mil anos de dualismo, pela primeira vez uma perspectiva sistêmica e integrada é afirmada com tanta clareza em um documento da Igreja: “tudo está interligado com tudo” (LS 16). É de grande importância, neste sentido, o parágrafo 98: “Jesus vivia em plena harmonia com a criação […]. Não Se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida […]. Encontrava-Se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho.” (Grifo da entrevistada)
A partir daí, abre-se uma fundamental e bem posicionada possibilidade de diálogo com abordagens sistêmicas desenvolvidas pelas chamadas ciências do sistema terra, que envolvem a física, a química, a biologia, entre outras. Já na Introdução da Encíclica, o Papa afirma seu “objectivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica  atualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido.”(LS 15)
Crítica à tecnociência 
Por outro lado, a Encíclica apresenta uma dura crítica à “tecnociência”, quando aliada aos interesses financeiros e de mercado: “é preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver.” (LS 107)
Partindo destas premissas, a Laudato Si’ desafia o lugar que comumente atribuímos à espécie humana na cultura ocidental. Ao adotar uma perspectiva sistêmica, reconhece que somos parte da comunidade da vida: “nós mesmos somos terra (cf. Gên. 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.” (LS 2)
A inspiração sistêmica sustenta a crítica explícita ao “antropocentrismo exacerbado” e à desmedida relação humana com os bens comuns. O antropocentrismo é identificado como uma  das principais causas do aumento da pobreza, bem como da crise ambiental, em todas as suas dimensões. Laudato Si’ também compreende a crítica ao antropocentrismo do ponto de vista teológico e espiritual. 
Perspectiva espiritual
No entanto, reconhece que, embora hegemônica, esta perspectiva não é compartilhada por todos. Identifica, por um lado, na espiritualidade de São Francisco de Assis uma ruptura significativa com o modelo dominante. São Francisco não deve ser compreendido como um romântico, amante dos lobos e dos passarinhos. Sua espiritualidade inspira a “fraternidade universal” como consequência do reconhecimento do valor intrínseco de todas as criaturas. A natureza, ou o mundo criado, não tem valor apenas pelo uso que definimos a partir dos interesses humanos, mas são em si valiosos e, como tal, devem ser cuidados.
Mais ainda, a espiritualidade franciscana combina grande respeito por todos os seres humanos com a mesma atitude em relação à criação: “a pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objecto de uso e domínio.” (LS 11) A Encíclia reconhece, por outro lado, que muitas culturas indígenas negam e resistem ao antropocentrismo utilitarista e, por isto, os povos indígenas assumem protagonismo na defesa de seus territórios frente ao avanço do capital e da mercantilização da vida. Nesse sentido, vale a pena ler com especial atenção o parágrafo 146.
Finalmente, mas não menos importante, ao adotar a perspectiva sistêmica, a Encíclica reconhece a Terra como ser vivente, criatura que se expressa, e não apenas fonte inerte de “recursos naturais”, ao dispor do ser humano. Assim, afirma que a Terra, “esta irmã, clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la.”(LS 3, grifo da entrevistada). A voz da terra, somada à voz dos pobres, se torna fonte de denúncia das injustiças a um tempo ambientais e sociais do modelo de desenvolvimento hegemônico. A “profecia da terra” reassume lugar de destaque. A Terra ferida e os pobres despossuídos são protagonistas de processos de luta e de transformação.
IHU On-Line - Em que medida o debate suscitado pela Encíclica e as descobertas científicas que demonstram a mudança climática apontam para a necessidade de se repensar o paradigma do progresso sob o qual vivemos?
Moema Miranda - Considero que a maior dificuldade para a adoção de medidas efetivas em relação ao aquecimento global, e a outros aspectos dramáticos da crise socioambiental, está no fato de que suas origens, sua raiz, se situa no coração do modelo de desenvolvimento capitalista. A lógica do crescimento econômico ilimitado em um planeta limitado é, inegavelmente, “suicida”. O consenso científico em relação às ações humanas como principal fator do aquecimento global foi atingido com enorme disputa. Como ativistas e estudiosos indicaram, as grandes corporações lideram lobbies extremante fortes para desqualificar as pesquisas científicas e alcançaram grande êxito. Hoje, segundo as pesquisas de opinião, a maior parte dos americanos considera que o aquecimento global é uma inverdade.
Com todos os limites, os relatórios do IPCC [9] que vinculam ação humana e aquecimento global ganharam, ao longo dos anos, consistência e contam com apoio quase absoluto da comunidade científica. A Encíclica assume de forma clara e explícita este entendimento: há um sistema econômico e cultural que gera, simultaneamente e de forma interligada, a pobreza de muitos e a extrema riqueza de poucos; que produz desigualdade e concentração de riqueza e poder; que degrada e destrói o ambiente e as condições de vida sobre a Terra. Este sistema se baseia em uma “cultura do descarte” e supõe que a natureza seja mera fonte de recursos a ser utilizada de forma irresponsável e sem cuidado pela parte da humanidade beneficiada. Portanto, “há vencedores e vencidos não só entre os países, mas também dentro dos países pobres, onde se devem identificar as diferentes responsabilidades.” (LS176)
Em distintos momentos e com ênfases específicas, a Encíclia subscreve uma leitura crítica do crescimento econômico como sinônimo de progresso e, de um ponto de vista mais profundo, cultural e espiritual, afirma com lucidez: “se reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder.”(LS 78)
IHU On-Line - Sob quais aspectos é preciso se pensar em responsabilidades diferenciadas e historicamente definidas entre os países? A partir da divulgação desse documento, em que aspectos os países ricos são diretamente incitados a agir de modo diferente em termos de modelo de produção e desenvolvimento?
Moema Miranda - A partir do que foi dito até aqui, já podemos perceber como o Papa identifica as responsabilidades diferenciadas dos países do Sul e do Norte nas causas do aquecimento global. No entanto, sabemos que o princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, consagrado a partir da Rio 1992 [10], no marco da Convenção-quadro da Nações Unidas sobre Mudanças do Clima [11] (UNFCCC, para a sigla em inglês), está sob forte ataque nas negociações internacionais sobre clima. 
Neste sentido, a Laudato Si’ presta uma enorme contribuição ao debate, ao reafirmar e reconhecer, no parágrafo 170: “É verdade que há responsabilidades comuns, mas diferenciadas, pelo simples motivo — como disseram os bispos da Bolívia — que “os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa duma enorme emissão de gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram”. Ao assumir em um documento pontifício a declaração dos bispos da Bolívia, país que desempenhou papel relevante nos debates internacionais, o Papa contribui, sem dúvida, para que os governos dos países do Sul sejam fortalecidos nos debates internacionais.
O contraponto com as responsabilidades dos países do Norte é parte desta mesma lógica. São chamados a ocupar um lugar de maior responsabilidade. Como foi afirmado anteriormente, isto implica alterações profundas não apenas nos padrões políticos, mas em formas de vida marcadas pelo sobreconsumo, pelo acúmulo e pelo desperdício, o que implica não apenas os governos, mas também a parte privilegiada da população dos países do Norte.
O Papa reconhece a gravidade dos desafios: “A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente a serviço da vida, especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço a população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura.” (LS 189)
IHU On-Line - Em que sentido se pode dizer que uma mudança de modelo de desenvolvimento passa longe das grandes decisões econômicas e financeiras, relegando o tema ambiental a um plano secundário? Nessa lógica, como é possível se contrapor ao poderio financeiro das corporações e do mercado como um todo, que termina por sobrepujar decisões políticas e, por conseguinte, posturas no cuidado com a vida na Terra?
Moema Miranda - Os movimentos sociais e ambientais em todo o mundo têm denunciado de forma contundente e dramática como a hipertrofia do mercado, subordinando todas as dimensões da vida econômica, social e cultural, dos desejos e sonhos, é nociva e desruptiva. A Encíclica nos permite aprofundar a crítica ao modelo, na mesma direção, acrescentando aspectos importantes. “O problema fundamental é (…) ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação.” (LS 106)
Por tudo que foi exposto, fica claro que não se pode esperar que as empresas ou o mercado sejam capazes de se autolimitar. A captura dos sistemas políticos pelos interesses do capital aumentam ainda mais os desafios presentes. Esta lógica domina tanto nos planos nacionais quanto na dimensão internacional, nas cúpulas governamentais e no sistema ONU.
Cultura do Consumo
A Encíclica, no entanto, alerta também para aspectos que se vinculam ao padrão de desejo de consumo, hegemônico no planeta.  Afirma o Papa: “A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa traduzir-se em novos hábitos. Muitos estão cientes de que não basta o progresso actual e a mera acumulação de objectos ou prazeres para dar sentido e alegria ao coração humano, mas não se sentem capazes de renunciar àquilo que o mercado lhes oferece.”(LS 209, grifo da entrevistada)
Esta percepção implica no que chama de “revolução cultural”, aliada à necessidade de “conversão ecológica”. Em países onde parte imensa da população está submetida a padrões indignos de pobreza, há que lutar ativamente para que todos tenham acesso a todos os direitos e a condições de vida digna. No entanto, o aumento do consumo — e o desejo de consumo — deve ter limites. 
Limites — palavra que o mercado odeia, porque o atinge no coração — que se impõem por um lado, pela própria natureza limitada do planeta. Mas limites que também se vinculam à valorização de uma perspectiva antropológica multidimensional. O Papa é, neste sentido, profético e desafiante: “A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. (…) A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece.” (LS 223). 
Encíclica em movimento
Encíclica Laudato Si’ é, sem dúvida, um documento a ser lido, relido, meditado. Acredito que será tanto mais impactante quanto mais for apropriada pelos movimentos sociais, ambientais, pastorais, comunidades e por todos os que lutam por um mundo de justiça e paz. Ela permite e exige processos profundos que implicam na nossa relação com o mundo, com uma dimensão pessoal, que considero incontornável. Finalmente, estimula que esta seja uma caminhada cheia de esperança: “Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança.” (LS 244). Que assim seja!
Por Márcia Junges e João Vitor Santos
Notas:
[1] O Pontifício Conselho Justiça e Paz (Pontificium Consilium de Iustitia et Pace): organismo da Cúria Romana que tem em vista fazer com que no mundo sejam promovidas à justiça e a paz, segundo o Evangelho e a Doutrina Social da Igreja. Aprofunda a Doutrina Social da Igreja, empenhando-se por que ela seja amplamente difundida e posta em prática junto dos indivíduos e das comunidades, especialmente no que se refere às relações entre operários e empresários, a fim de estarem cada vez mais impregnadas do espírito do Evangelho. Recolhe notícias e resultados de pesquisas sobre a justiça e a paz, sobre o progresso dos povos e as violações dos direitos humanos, avalia-os e, segundo a oportunidade, comunica aos organismos episcopais as conclusões deduzidas. Ainda favorece as relações com as associações católicas internacionais e com outras instituições não católicas, que se empenham pela afirmação dos valores da justiça e da paz no mundo. (Nota da IHU On-Line)
[2] Naomi Klein (1970): jornalista, escritora e ativista canadense. A carreira de escritora de Klein começou com contribuições ao jornal The Varsity na Universidade de Toronto, escrevia sobre feminismo. Em 2000 publicou No Logo (em português Sem Logo - A Tirania das Marcas em Um Planeta Vendido), que para muitos se transformou em um manifesto do movimento antiglobalização. O livro traz efeitos negativos da cultura consumista e as pressões impostas de grandes empresas sobre seus trabalhadores. Em 2002 publica Fences and Windows (em português Cercas e Janelas), uma coleção de matérias escrita por ela sobre o movimento antiglobalização no mundo como movimento zapatista e os protestos contra OMC e FMI. Em 2004 Klein e o marido Avi Lewis fizeram um documentário chamado The Take onde contam sobre os trabalhadores autônomos na Argentina. Klein também escreve regularmente para os jornais The Nation, In These Times, Canada's The Globe and Mail, This Magazine e The Guardian. Em outubro de 2005 esteve em 11ª lugar na enquete sobre os intelectuais de 2005 promovida pela Revista Prospect. (Nota da IHU On-Line)
[3] Mary Robinson (1944): política irlandesa. Entre os anos de 1969 a 1989 participou da Câmara Alta do Parlamento e, em 1988, foi co-fundadora do Centro Irlandês para as Leis Européias. Nos anos 1990 foi eleita presidente da Republica da Irlanda, sendo a primeira mulher e a primeira personalisdade de esquerda a ocupar o cargo. Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Mary Robinson fundou a EGI (Iniciativa Ética Global). (Nota da IHU On-Line). Helmut Schmidt (1918): economista e ex-político do Partido Social-Democrata (SPD) Alemão, desde 1946. Foi Chanceler da Alemanha de 1974 a 1982, tendo atuado como ministro de Relações Exteriores. (Nota da IHU On-Line). Shimon Peres (1923): Político israelense. Foi primeiro-ministro de Israel nos períodos de 1984 a 1986 e 1995 a 1996, e co-fundador do Partido Trabalhista israelense, em 1968. Em junho de 2007 foi eleito presidente de Israel. (Nota da IHU On-Line)
[4] Pablo Solón Romero: foi embaixador do Estado Plurinacional da Bolívia junto à Organização das Nações Unidas a partir de fevereiro de 2009 a julho de 2011. Ele é o filho do famoso boliviano muralista Walter Solón Romero Gonzáles. Atualmente é diretor executivo da Focus on the Global South , com sede em Bangkok. (Nota da IHU On-Line)
[5] Em artigo publicado no Boletim Tunapa, n. 98, da Fundação Solón, distribuído no encontro (Nota da entrevistada)
[6] Via Campesina: organização internacional de camponeses composta por movimentos sociais e organizações de todo o mundo. A organização visa articular os processos de mobilização social dos povos do campo em nível internacional. (Nota da IHU On-Line)
[7] Roberto Malvezzi - “Gogó” (1953): graduado em Estudos Sociais e em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, em São Paulo. Também é graduado em Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo. Em janeiro de 1980, incorporou-se nas Pastorais Sociais da Diocese de Juazeiro, tendo sido Coordenador Nacional por aproximadamente seis anos da Comissão Pastoral da Terra - CPT. Lutou contra o regime militar, na defesa dos direitos das populações realocadas em razão da barragem de Sobradinho, na luta pela convivência com o semiárido. É escritor e compositor. (Nota da IHU On-Line)
[8] Comissão Pastoral da Terra (CPT): órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, vinculado à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz e surgido em 22 de junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela CNBB e realizado em Goiânia. (Nota da IHU On-Line)
[9] IPCC - Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática: órgão das Nações Unidas responsável por produzir informações científicas em três relatórios que são divulgados periodicamente desde 1988. Os relatórios são baseados na revisão de pesquisas de 2.500 cientistas de todo o mundo. O documento divulgado pelo IPCC em fevereiro de 2007 afirmou que os homens são os responsáveis pelo aquecimento global. Sobre o tema, a IHU On-Line nº 215 produziu uma edição especial, intitulada Estamos no mesmo barco. E com enjoo. Anotações sobre o relatório do IPCC. O sítio do IHU tem dado ampla cobertura ao tema. No endereço eletrônico (www.ihu.unisinos.br), podem ser acessadas entrevistas sobre o assunto. (Nota da IHU On-Line)
[10] Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento: encontro realizado entre os dias 3 e 14 de junho de 1992, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. O evento, que ficou conhecido como ECO-92 ou Rio-92, fez um balanço tanto dos problemas existentes quanto dos progressos realizados, e elaborou documentos importantes que continuam sendo referência para as discussões ambientais. (Nota da IHU On-Line)
[11] Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima: é um tratado internacional que foi resultado da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, informalmente conhecida como a Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992. O tratado não fixou, inicialmente, limites obrigatórios para as emissões de gases de efeito estufa e não continha disposições coercitivas. Em vez disso, garantia disposições para atualizações (chamados "protocolos"), que deveriam criar limites obrigatórios de emissões, dos quais o mais conhecido é o Protocolo de Quioto. (Nota da IHU On-Line)
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/544553-laudato-si-a-perspectiva-sistemica-que-atualiza-o-debate-ambiental-entrevista-especial-com-moema-miranda

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