ECOS DA ELEIÇÃO
A
mídia muito além da irresponsabilidade
Por Samuel Lima em
05/11/2014 na edição 823, Observatório
da Imprensa
As eleições não findaram com a
reeleição da atual presidente da República, no último dia 26 de outubro. Pelo
menos no universo particular da mídia corporativa brasileira, e em especial nos
discursos, análises categóricas, supostas evidências, predições do caos e
simulacro de jornalismo. Alguém precisa dizer, em português do Brasil, às
empresas de comunicação e seus principais porta-vozes, que a disputa acabou – e
a maioria dos eleitores reelegeu Dilma Vana Rousseff, com mais de 54,5 milhões
de votos.
Faço essa estranha constatação depois
de observar o comportamento dos principais jornais impressos do país, seus
comentaristas e colunistas (e alguns telejornais importantes), na primeira
semana após o segundo turno das eleições presidenciais. O tom é de disputa
eleitoral ainda. No alvo, centro da furibunda oposição midiática, está Dilma e
seu partido. O fervor oposicionista de fazer inveja aos partidos que
sustentaram a candidatura do senador Aécio Neves.
A metáfora que representa à perfeição
essa estranha simbiose da mídia com o simulacro de um partido político
esotérico está publicada na Folha de S.Paulo (edição de 28/10/2014): na página
A3, o leitor acessa a “Carta à presidente”, texto assinado pelo empresário
Abílio Diniz, presidente da Companhia de Alimentos BRF. Ator político por
excelência, e usando sua inconteste legitimidade, Diniz saúda a presidente
reeleita, apresenta a agenda do setor produtivo que ele representa e lhe deseja
“bom governo”, assinalando: “A campanha política acabou, hoje é a vida real.
Passado não se esquece, mas manda a sabedoria que se olhe com determinação para
o futuro, pois é nele que vamos viver e construir” (Fonte: http://migre.me/mCXj6). Diniz reconhece a
proposta de diálogo feito pela presidente, incluindo-se na prosa: “Como vencedora
é você quem tem a condição de promover a nova união dos brasileiros. Essa
responsabilidade é sua, mas é também de todos nós, empresários, e de todos os
cidadãos” (Fonte cit.).
Questionamento
patético
Na direção oposta, na página anterior
da mesma edição da Folha, os três colunistas em uníssono mantém a lógica da
disputa num fantasioso (seria fantamagórico?) terceiro turno. Hélio Schwartsman
(“Dilma 2, a revanche”: http://migre.me/mCXxH),
Eliane Cantanhêde (“Nós contra nós”: http://migre.me/mCXDA)
e Carlos Heitor Cony (“Dilma contra Dilma”: http://migre.me/mCXJT)
não deixam por menos e partem para o ataque.
Schwartsman dispara: “No front
político, além do sinal amarelo emitido principalmente pelos eleitores das
regiões de maior dinamismo econômico, a administração deverá ser assombrada por
uma espécie de crise permanente”. Cantanhêde mantém o ataque: “Por isso, as
Bolsas despencam, o dólar dispara. Mas engana-se quem pensa que é só um
chilique do mercado, como o das mocinhas do Leblon, sem consequências. Com a
economia e a indústria vacilando, quem mais vai sofrer é o pobre, a classe C”.
Mas é o centroavante Cony quem vai disparar a nova “bala de prata” validando a
farsa da revista Veja (dois dias antes do pleito): “A começar pela corrupção,
que recebeu uma bomba atômica nas vésperas do pleito. Ela foi acusada de ter
tido prévio conhecimento do que se passava na Petrobras, um conhecimento que
pode até ser considerado uma cumplicidade, dependendo da apuração honesta das
graves acusações e suspeitas que, afinal, estavam na cabeça e na boca de boa
parte da opinião pública”.
Carlos Heitor Cony aposta sua
credibilidade e dá o tom daquilo que viria a ser considerado o desatino total,
do ponto de vista da oposição liderada pelo PSDB: “A minúscula margem de votos
que obteve contra seu adversário estará encravada em sua garganta pelos
próximos quatro anos do novo mandato. Se não fossem as urnas eletrônicas, que
até prova em contrário são confiáveis, haveria elementos para a recontagem de
votos”.
Cony, Cantanhêde e Schwartsman
representam o coro de vozes da mídia, que também ecoou na forma de editoriais e
convergiu, de forma geral. Não dialogam com ninguém e “pregam para
convertidos”. Colunistas d’O Estado de S.Paulo, O Globo, Correio Braziliense e
Valor Econômico mantiveram a “chama do terceiro turno” acesa. É o caso, por
exemplo, de Rosângela Bittar, chefe da Redação do Valor, em Brasília. Em sua
coluna “Dilma queima a largada” (29/10/2014, p. A10), Bittar escreve, entre
acusações de que a presidente “abandonara o governo há quatro meses”,
desprovida de qualquer fundamento nos fatos: “Do plebiscito da reforma política
para o plebiscito – ou o decreto, ou a medida provisória – do controle da mídia
será um pulo”.
Evidentemente que a mídia não joga
sozinha. O PSDB apostou em dois factoides: o primeiro com o discurso do senador
Aloysio Nunes, companheiro de chapa de Aécio Neves; o segundo, através do
pedido de auditoria do resultado eleitoral, assinado pelo deputado federal
Carlos Sampaio (PSDB-SP), que apresenta como “provas” posts publicados nas
redes sociais de partidários seus com estapafúrdias acusações de fraude no
sistema de urnas digitais do Tribunal Superior Eleitoral.
Neste segundo caso, é a voz insuspeita
do blogueiro e colunista Ricardo Noblat (O Globo) que analisa: “O PSDB perdeu a
eleição presidencial por pouco, mas não precisava perder a cabeça. Parece ter
perdido. O partido pediu oficialmente ao Tribunal Superior Eleitoral uma
auditoria especial nos resultados das eleições deste ano. Por que? Embora faça
questão de dizer que confia na Justiça, o PSDB alega que manifestações em redes
sociais questionam o processo eleitoral. Sim, foi isso mesmo o que você leu:
manifestações em redes sociais questionam o processo eleitoral. Questionam
também se o homem pisou na lua. E se Bin Laden de fato está morto” (Fonte: http://migre.me/mCYRW).
Desconstrução
do negócio
O fato mais preocupante, contudo, é o
discurso do senador Aloysio Nunes (PSDB/SP), vocalizado da tribuna do Senado
Federal, em 28/10: “O candidato derrotado a vice-presidente na chapa de Aécio
Neves, e líder do PSDB no Senado, Aloysio Nunes Ferreira, declarou que não
aceita a proposta de diálogo tal como formulada pela presidente Dilma”
(Fonte: http://migre.me/mCZ7t).
Abrindo mão de seu papel institucional – afinal cabe a oposição apresentar
caminhos alternativos e disputar propostas com a situação, em respeito aos 51
milhões de eleitores que votaram em Aécio Neves –, o senador tucano prefere
optar por um discurso obtuso, alegando que a Presidente reeleita “não tem
autoridade moral para pedir diálogo com ninguém. Comigo não!”, justificando que
fora alvo de ataques “nas redes sociais” – como se a sua coligação eleitoral
não tivesse usado do mesmo e condenável expediente contra sua adversária. Foi
acompanhado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no Estadão: “Diante do
apelo ao diálogo da candidata eleita devemos responder com desconfiança” (p.
A2, 02/11/2014).
O jornalista Rogério Gentile
(“Arrogância na derrota”, Folha de S.Paulo, 30/10/2014) joga luzes sobre as
explicações do tucanato nacional para a derrota no segundo turno. A primeira
razão “atribui o resultado ao tom agressivo da campanha de Dilma, como se isso
tivesse sido uma prerrogativa do PT. Não foi, obviamente. O PSDB também bateu
duro nos adversários” (Fonte: http://migre.me/mCZE2).
A segunda, “aliados de Aécio reclamam que ‘Minas falhou com um grande
estadista’ e que os ‘mineiros não quiseram ter um presidente na linha de JK’. O
PSDB, que esperava obter 2 milhões de votos a mais do que Dilma no Estado,
perdeu em 608 das 835 cidades, em várias delas por mais de 80% dos votos. Ou
seja, para os tucanos, a derrota não foi motivada por erros do candidato ou do
partido, tampouco ocorreu por mérito da adversária. A culpa, ora bolas, é do
eleitor”.
No outra ponta do debate posto, no
seio da própria mídia, para “fechar no clima de disputa do terceiro turno”,
essa responsabilização do leitor/eleitor é também exposta pela ombudsman da
Folha de S. Paulo, Vera Guimarães Martins (“Apuração por telefone sem fio”,
2/11/2014, p. A6). Vera tenta defender o indefensável na decisão política e
editorial do jornal de repercutir a peça eleitoral (não dá para classificar
como reportagem, a meu juízo) da revista Veja. Em sua edição de sábado
(25/10/2104, um dia antes do segundo turno) a Folha estampou em manchete:
“Doleiro acusa Lula e Dilma, que fala em terror eleitoral”. Supostamente, duas
fontes off confirmaram que o doleiro-delator havia feito tal acusação (algo
negado, com veemência por seus advogados, indicando que tal depoimento nunca
existiu). Escreve Vera, aprovando: “Atitude tecnicamente correta, mas que não
livra o jornal do pecado original, a fragilidade de uma acusação baseada em
declaratório sem provas” (Fonte: http://migre.me/mCZZS).
Com efeito, a ombudsman admite que “a Folha também não encontrou nenhuma fonte
que confirmasse a teoria (da existência do tal depoimento) – grifo nosso)”.
Vera Guimarães Martins conclui seu
texto jogando a “bomba” no colo do seu leitor. Sem ter como justificar, do
ponto de vista jornalístico a publicação do material publicitário de Veja, a
jornalista decide consultar os leitores da Folha: “Sugiro o dilema: você,
leitor, publicaria, mesmo com as deficiências aqui expostas, ou preferiria
abrir mão, enfrentando suspeitas de ter se omitido para beneficiar este ou
aquele candidato?” (Fonte cit.).
Assim se fecha a primeira semana do
terceiro turno das eleições entre a mídia e a sociedade brasileira. Sim, porque
sem partidos nem candidatos concorrentes, indica caminhos nebulosos, para além
do limite da irresponsabilidade que os empresários da comunicação e seus
porta-vozes mais notórios têm para com o futuro da democracia e da história do
Jornalismo, no país. A julgar pelo tom e nível de decibéis, o terceiro turno se
arrastará até outubro de 2018. A desconstrução do próprio negócio, com a erosão
da credibilidade é algo que só diz respeito aos empresários e investidores das
empresas jornalísticas. Mas, o Jornalismo é um patrimônio da sociedade e como
tal deveria ser preservado desse tipo de aventura insana. A ver.
***
Samuel Lima é professor da Universidade de Brasília
(FAC/UnB), pesquisador do objETHOS/UFSC
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