quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O Fundamentalismo Cristão


Texto de

Frei Betto


 O fundamentalismo sempre existiu nas tradições religiosas. Ele consiste em interpretar literalmente o texto sagrado, sem contextualizá-lo, extraindo deduções alegóricas e subjetivas como a única verdade universalmente válida. Para o fundamentalista, a letra da lei vale mais que o Espírito de Deus. E a doutrina religiosa está acima do amor.

 Escolas do Sul dos EUA, e também no Estado do Rio de Janeiro, rejeitam os avanços científicos resultantes das pesquisas de Darwin e ensinam que o homem e a mulher foram criados diretamente por Deus. Tal visão fundamentalista nem sequer reconhece que Adão, em hebraico, significa “terra”, e Eva, “vida”. Como os autores hebreus do Antigo Testamento não raciocinavam com categorias abstratas, à semelhança da gente simples do povo, o conceito ganhou plasticidade mítica no “causo” de Adão e Eva.

 Todo fundamentalista é, a ferro e fogo, um “altruísta”. Está tão convencido de que só ele enxerga a verdade que trata de forçar os demais a aceitar o seu ponto de vista... para o bem deles!

 Há muitos fundamentalismos em voga, desde o religioso, que confessionaliza a política, ao líder político que se considera revestido de missão divina. Eles geram fanáticos e intolerantes. O mais próximo de nós, brasileiros, é o que vigorou no governo dos EUA na era de George W. Bush, convencido que estava de que promove o bem contra as forças do mal, utilizando armas letais no extermínio do povo iraquiano e tratando os homossexuais como doentia aberração da natureza. Obama, mais lúcido, ainda tem de lidar com os vestígios nefastos desta herança fundamentalista.

 Uma das melhores conquistas da modernidade é a separação entre a Igreja e o Estado. Nada de papas coroando reis, como na Idade Média, ou de presidentes consagrando a nação ao Sagrado Coração de Jesus, como há poucas décadas ocorria na Colômbia.

 Certa vez perguntei a Fidel por que em Cuba o Estado e o Partido eram confessionais. Ele estranhou: “Como confessionais?” “Sim, expliquei, pois são oficialmente ateus. E negar a existência de Deus é tão confessional como afirmá-la.” Mais tarde, o Estado e o Partido Comunista cubanos tornaram-se laicos, assim como todos os estados e partidos modernos.

 Reger a vida política a partir de preceitos religiosos é um desrespeito a quem professa outra religião ou nenhuma. Isso não significa que um cristão deva abrir mão de suas convicções e dos valores evangélicos. Mas ele não deve esperar que todos reconheçam a natureza religiosa de sua ética. E nem queira impor a sua fé como paradigma político.

  Há que cuidar também para evitar o fundamentalismo laicista, de quem julga que religião é uma questão privada, sem dimensão social e política. Afinal, todos os cristãos são discípulos de um prisioneiro político... O fundamentalismo laicista, que sempre relegou a religião à esfera da superstição, é danoso por estimular o preconceito e não reconhecer que milhões de pessoas têm em sua fé o paradigma de suas convicções e práticas. Corre-se o risco de repetir o erro dos antigos partidos comunistas, que exigiam dos novos militantes profissão de fé no ateísmo.

 Reforçam o fundamentalismo cristão todos os que são indiferentes ao diálogo inter-religioso e consideram a sua igreja como a única verdadeira intérprete dos mandamentos e da vontade divinos e, por isso, deve quase que ser imposta aos demais. Por isso, é importante estabelecer os critérios éticos que propiciam a base sobre a qual as diferentes igrejas e religiões devem dialogar e somar esforços. São eles: a ética da libertação num mundo dominado por múltiplas opressões; a ética da justiça nessa realidade estruturalmente injusta; a ética da gratuidade nessa cultura mercantilista onde imperam o interesse e o negócio; a ética da compaixão num mundo marcado pela dor de tantas vítimas; a ética da acolhida, já que há tantas exclusões à nossa volta; a ética da solidariedade numa sociedade fortemente competitiva; a ética da vida num mundo ameaçado pelos sinais de morte na natureza e nos pobres.

 O fundamentalismo é irmão gêmeo do moralismo. E o moralista de superfície e é capaz de ver o mosquito no olho alheio, como observou Jesus, sem atinar para a enorme trave no próprio olho. No caso de certos políticos imperiais, quem sabe a solução para a paz seja considerar a guerra um atentado ao pudor...


Um comentário:

  1. Frei Betto nunca decepciona. Que texto mais lúcido!
    Essa questão do fundamentalismo anda mexendo com a minha cabeça. Antes era coisa de muçulmano radical, agora chegou aos ditos "cristãos" (li também sua postagem sobre a cantora). Tenho pensado em escrever a respeito no meu blog, pois o caso é sério.
    Gostei muito de seu espaço, parabéns.
    abraços

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