Por
Carlos
Antonio Fragoso Guimarães
I - Uma Nova Forma de
Perceber o Mundo
I.a- Conceituação de Paradigmas
Um paradigma
significa um modelo, algo que serve como parâmetro de referência para uma
ciência, como um farol ou estrutura considerada ideal e digna de ser seguida.
Podemos dizer que um paradigma é a percepção geral e comum - não
necessariamente a melhor - de se ver determinada coisa, seja um objeto, seja um
fenômeno, seja um conjunto de idéias. Ao mesmo tempo, ao ser aceito, um
paradigma serve como critério de verdade e de validação e reconhecimento nos
meios onde é adotado. Foi o físico Thomas S. Kuhn que o utilizou como um termo
científico em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, publicado
primeiramente em 1962, sendo no Brasil publicado pela Editora Perspectiva.
Segundo Kuhn, a palavra paradigma pretende
sugerir que "certos exemplos da prática científica atual - tanto na
teoria quanto na aplicação - estão ligados a modelos conceptuais de mundo dos
quais surgem certas tradições de pesquisa". Em outras palavras, uma
visão de mundo atrelada a uma estrutura teórica metafísica aceita estabelece
uma forma de compreender e interpretar intelectualmente o mundo segundo os
princípios constantes do paradigma em vigor. Por exemplo, a ciência já foi
dominada pelo pensamento geocêntrico (ptolomáico), que estabeleceu toda uma
produção intelectual coerente com a visão de mundo deste paradigma que dizia
que a terra era o centro do universo. Portanto, quem afirmasse algo como "a Terra é apenas um dentre milhões de
outros planetas, e nem mesmo é o mais significativo deles" estaria
fadado a ser considerado louco, ignorante ou qualquer coisa do tipo.
Posteriormente, observações demonstraram que esta visão era falha e foi sendo
substituída - após intensa e violenta resistência dos sábios que defendiam o
antigo paradigma - pelo sistema heliocêntrico de Copérnico. Este modelo, porém,
foi percebido como imperfeito pelos avanços em astronomia e foi aperfeiçoado
pelas descobertas da gravitação universal da física newtoniana; esta, por sua
vez, foi, em termos conceituais, drasticamente remodelada, já no século XX, pela Mecânica Quântica e
pela Teoria da Relatividade, não sem uma forte resistência de inúmeros doutores
e acadêmicos formados na cartilha clássica de Newton e seguidores e sua sólida
visão mecanicista da natureza.
Cada uma dessas fases do pensamento
científico foram bem sucedidas em determinados períodos de tempo. Dando novas
perspectivas para a compreensão da realidade física, condicionavam a
atitude científica e estabeleciam quais seriam os critérios de pesquisa,
freqüentemente ligados à maneira como se esperava que o mundo devesse funcionar
de acordo com o modelo (paradigma) adotado. Deste modo, fica claro que a
ciência não é um processo de descoberta, em sentido estrito, de uma realidade
dada, porém parece ser mais um processo de construção intelectualmente
coerente, refletindo um diálogo do pensamento humano com os fenômenos naturais
e, assim, uma melhor compreensão humana, feita e comentada por homens, que lhes
permitam explicar satisfatoriamente e dentro de certos critérios, alguns
aspectos da realidade. Ou, em outras palavras, a ciência se constrói em cima de
alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito
conscientes (freqüentemente não são mesmo).
Assim, o modelo induz a uma visão de mundo, dentre
várias outras igualmente possíveis e igualmente coerentes. A imersão em um
paradigma, especialmente no paradigma dominante, prepara o cientista para se
tornar membro de uma comunidade científica a que se sinta atraído. Ele é
treinado a pesquisar, agir e falar dentro dos critérios do paradigma aceito.
Qualquer pesquisa que pareça ir além dos limites estabelecidos é vista com
desconfiança, quando não totalmente minada e descartada.
II - O Paradigma Newtoniano-Cartesiano
Nossa tão decantada civilização tecnológica
está em crise, e não é preciso esforço para perceber isso. A técnica, o
tecnicismo e a alta tecnologia, associadas a uma forma de viver moderna,
igualmente técnica, mas cada vez mais estereotipada, pragmática e menos humana,
está apontando para a falácia de mais uma promessa: por nos meios de produção
ou no extremo desenvolvimento material a chave para a felicidade humana (hoje,
tudo isso tem separado cada vez mais o homem do homem, o homem da natureza, e o
homem de si mesmo).
Desde o século XVII, quando a racionalidade das ciências naturais - que
passou a ser utilizada de forma prática pela nascente burguesia, que, além do
comércio, dava seus primeiros passos rumo à industrialização - vinham obtendo
crescente reconhecimento como instrumentos de compreensão da natureza e meio
para se atingir a "verdade", com sua capacidade para
"desvendar" as leis naturais do mundo físico e, posteriormente, até
mesmo do social, garantindo PREVISÃO e CONTROLE dos acontecimentos (ao menos,
dos acontecimentos naturais em laboratório), que a aura de sacralidade, de
dogma e de verdade vinha sendo transferida da Religião para a Ciência, que não
mais era vista como uma das formas de saber, mas a única possibilidade eficaz
de se atingir "a verdade", abolindo as crenças religiosas e/ou
relativizando saberes outros, como a filosofia e a ética, já estabelecendo por
conseqüência lógica que outras culturas, não ocidentais e não "científicas"
eram subculturas - o que era, sem dúvida, um excelente pretexto para que a
Europa "civilizada" pudesse colonizar e impor seu sistema, visão de
mundo e interesses em outros povos que, em troca, seriam explorados em seus
recursos naturais e humanos e se submeteriam aos ditames dos
"esclarecidos" europeus.
Vivemos numa época cuja principal característica está na divisão de tudo:
desde a divisão de classes sociais (Hoje em dia ainda mais reforçada no chamado
darwinismo social. C.f. a Home Page Visão de Mundo,
Paradigmas e Comportamento Humano), até a divisão, algumas delas
extremas, de especialidades em diversas áreas, como na Medicina, por exemplo.
Esta crise reducionista foi provocada em grande parte pelo
"background" filosófico extremamente mecanicista da ciência moderna,
e em parte pelo modo capitalista de nossas relações, tanto humanas quanto
econômicas, ambas, na verdade, formando dos aspectos de um mesmo processo
intelectual. Toda promessa de felicidade técnica prometida pelo capitalismo
cientificista acabou por se transformar, porém, num pesadelo: de um lado, temos
a cruel falta de alimentos e do mínimo de conforto material na maioria dos
países do Terceiro Mundo; e do outro lado temos a miséria psicológica e os
distúrbios emocionais de toda espécie que acompanham os excessos do
consumo-pelo-consumo e conforto supérfluo dos países (que são uma minoria) do
Primeiro Mundo, ou 1/4 da população do planeta, onde crescem a solidão, a
indiferença, os distúrbios da afetividade, a violência e a sensação de
sem-sentido, conseqüência de uma visão de mundo extremamente reducionista,
mecanicista e pragmática, voltada para as aparências, a competitividade e a
vivência hedonista e individualista dos sentidos, nos moldes dos ideais
industrialistas de nosso tempo.
O pensamento dominante nesta estrutura de
coisas é o da crença fundamental de que tudo é separado de tudo, o que inclui
as pessoas, as sociedades e as culturas, e que está de acordo com o modelo
mecanicista e atomista que perpassa nosso paradigma científico, que busca
sempre as unidades mínimas fundamentais da natureza, fazendo da análise
sem fim o único modo correto de entendimento das coisas, esquecendo as
características próprias de um conjunto, de um todo complexo. Assim o homem
constrói mapas e teorias cada vez mais detalhados em suas minúcias e acaba por
acreditar em sua obra intelectual como se fosse a descrição precisa da
realidade, que é sempre mais complexa. Esta crença condiciona uma
percepção da realidade que traz, ao lado de inegáveis progressos
materiais, conseqüências danosas para a harmonia psíquica e social do homem,
sem falar de seu impacto sobre a natureza: o apego a possessividade e seu
conseqüente medo da perda, a raiva, a agressão, a competitividade e a violência
ligada à defesa do "meu", sem falar dos sentimentos afins de orgulho
e ciúme (c.f. a Home Page Ecologia
Profunda, Ecologia Social e Eco-Ética).
Esta crença na fragmentação das coisas assume
formas muito sutis e extremamente refinadas nas teorias ditas científicas. Até
o advento da Física
Moderna (Mecânica Quântica), que trouxe notáveis insights para a
filosofia da ciência, da Ecologia e
do desenvolvimento da Psicologia
Holística, e da Psicologia
Transpessoal, bem como da antropologia e de outros campos que mostraram de
forma contundente a crueldade da concepção de mundo vigente, podemos afirmar
que quase todas as disciplinas ditas científicas (até hoje) estão atreladas ao
chamado paradigma newtoniano-cartesiano (c.f. Fritjof Capra, 1986), que
é o modelo ainda dominante e arduamente defendido pela grande maioria dos
cientistas. Chama-se paradigma newtoniano-cartesiano porque suas linhas mestras
foram concebidas e, em sua maior parte, consolidadas pelos trabalhos notáveis
do filósofo e matemático francês René Descartes
e pelo extraordinário físico, astrônomo, místico e matemático inglês Sir
Isaac Newton.
Este paradigma se caracteriza por idealizar
uma realidade, ou melhor, uma concepção/visão de mundo mecânica, determinista,
material, ou seja, de uma maquina
composta por "peças" menores que se conectam de modo preciso. E essa
concepção de mundo teve um grande impacto não só na Física, mas muito mais,
pelas suas conseqüências filosóficas, em Biologia, Medicina, Psicologia
Economia, Filosofia e Política. A extrema fragmentação das especializações, a
coisificação da natureza, a ênfase no racionalismo e na fria objetividade e o
desvinculamento dos valores humanos superiores, a abordagem mercantil
competitiva na exploração da natureza, a ideologia do consumismo desenfreado,
as diversas explorações com fins de se obter qualquer vantagem em cima de
outros seres vivos, etc. têm sua fundamentação filosófica numa pretensa visão
"científica" de um universo mecanicista (atualmente, numa concepção
neo-darwinista da supremacia de umas ditas classes sociais, políticas e profissionais
por sobre outras, numa reedição aprimorada de um discurso fascista-racista já
usado pelos nazistas há algum tempo atrás).
Com efeito, à guisa de exemplo, a etnocêntrica e quase fanática
certeza da superioridade intelectual européia (com países sedentos pelas
riquezas de outros povos e pelo potencial mercantil destes) construiu um grande
número de racionalizações baseadas no linguajar científico da Física e da
Biologia, maquiando a violência de fatores psicológicos mais profundos, como o
da ganância materialista impiedosa, roubando e desmoralizando outros povos
considerados ignorantes, primitivos e inferiores durante o máximo período de
exploração colonial, entre os séculos XVIII e XX. E, de fato, a partir do
modelo de alienação impositiva inglês, envernizado de civilização, possibilitou
o nascimento de teorias as mais absurdas, como a crença na superioridade
genética da raça ariana, pelos nazista, que tinha tinha - ou pretendia ter -
uma forte conotação cientificista. E longe de ter tido um fim, a mesma
exploração imperialista está mais ativa do que nunca, principalmente quanto aos
países ditos do Terceiro Mundo, que não estão e nem se pretende que estejam
inseridos ativamente no sistema internacional de consumo e produção, conhecido
como globalização, e que na verdade não passa de uma alienação das
forças culturais e criativas dos povos em prol de modelo nortista de
capitalismo. Grande parte dos países da América Latina são considerados
"sem interesse", por serem "zeros econômicos", e são
relegados à miséria e à margem da história branca e plastificada dos que se
consideram os senhores do mundo. Segundo Leonardo Boff (1997), "estes
mostram, por isso, uma insensibilidade e uma desumanidade que dificilmente
encontra paralelos na história". Por mais que os arautos do
racionalismo apontem desgraças e guerra em séculos anteriores e as maravilhas
técnicas de nosso tempo, nunca se matou tão friamente e em nome da razão, do
progresso e da civilidade como em nosso século.
Na educação mesma, como muito bem nos fala
Pierre Weil (Brandão & Crema, 1991), "a fragmentação do ensino
aumenta à medida que se atinge as séries superiores, chegando a fazer das
universidades atuais verdadeiras torres de Babel". Algumas teorias que
se arvoram de científicas se fecham cada vez mais em si mesmas, ao ponto de se
criar um mundo só delas, como em monastérios acessíveis apenas aos iniciados e
partilhantes de seus ideais, expressos num linguajar técnico, complexo e,
quando relacionados aos interesses existenciais dos indivíduos, vazio. A função
valorativa dos sentimentos foi rejeitada. Só o racionalismo linear - expresso
de modo claro em gráficos e em pesos e medidas - pode ser útil. Achamos que
apenas o racional pode nos dizer o que tem valor, mas isso não ocorre. Valor é
algo de subjetivo que diz respeito aos sentimentos. Não é por acaso que nossa
cultura, que supervaloriza o racional, afoga-se em dados numéricos mas se
mostra totalmente incompetente para discriminar o que realmente tem importância
em meio a um mar de informações e pesquisas cartesianas, e se mostra
completamente incapaz de dar o mínimo de conforto psicológico às pessoas que se
sentem alienadas e excluídas pelo sistema vigente.
Nossas prateleiras universitárias estão repletas de pesquisas "esotéricas" - apenas alguns "iniciados" podem compreendê-las -, com pouco ou nenhum valor real para o comum dos mortais. Estas prateleiras, como disse Milan Kundera, parecem cemitérios, ou até mesmo menos que isso, pois nos cemitérios sempre ocorrem visitas, pelo menos uma vez por ano. O governo é cada vez mais incapaz de estipular prioridades com base em qualquer outra ordem que não seja o balanço comercial ou os gráficos de desenvolvimento industrial. E como a ênfase está apenas no que é racional, temos uma visão unilateral de mundo, hipertrofiada, puramente intelectual, onde sentimentos e valores são menosprezados ou são ignorados. E é interessante notar o quanto esta estrutura filosófica influencia e é, por sua vez influenciada - em feedback - pela ideologia do capitalismo, ou qualquer outra que tire vantagens da situação.
Tanto esta ideologia parece
encontrar justificação na visão de mundo do paradigma newtoniano-cartesiano
quanto este parece encontrar todo o apoio financeiro para se manter, na medida
que as pesquisas mais de acordo com seus pressupostos recebem recursos vários
enquanto as pesquisas menos técnicas (segundo seus parâmetros), mais ecológicas
e/ou humanistas parecem ser desmerecidas ou rejeitadas, recebendo pouca ou
nenhuma atenção dos poderes econômicos. Aliás, não devemos esquecer que estes
poderes buscam exatamente isso: poder. Poder sobre a natureza, sobre os lucros,
sobre as pessoas. Enfim, um poder pleno e exercido de modo racional-mecânico,
onde os valores humanistas não podem ter lugar (Veja-se a home page sobre Soren Kierkegaard
para um aprofundamento desta questão).
Esta crença generalizada da onipotência
técnica tem levado à atitudes e postulações extremamente arrogantes dos meios
científicos e industriais, o que produz, entre outras coisas, os Titanics, os
Hindemburgs, as Bombas, os Efeito-Estufa e os Chernobys da vida, bem como
golpes militares, alienação, miséria, desemprego e violência.
Com respeito à saúde, especialmente à
Medicina, o paradigma vigente tem também exercido uma notável influência. A
ênfase acadêmica e mercantilista na especialização tem feito quase desaparecer
a figura do clínico geral e levado à fragmentação extrema das áreas médicas em
super-especializações, quase sempre levando os pobres pacientes a se sentirem
perdidos e alienados diante da frieza técnica e da ausência freqüente de uma
visão global (psicossomática) do seu caso. Os mais visíveis resultados são: o
"culto" à figura do médico (com toda a áurea externa e mítica a
respeito dele), a quem é dada total responsabilidade pela nossa saúde, cabendo
aos leigos apenas uma atitude de submissão passiva, promovida pela ignorância
no cuidado da própria saúde, ou seja, de uma Educação Preventiva; uma
extrema frieza - que é envolta no mito da objetividade científica - para com os
sentimentos e anseios do "paciente"; o "paciente" sendo
considerado um "objeto" de estudo (quando não de lucro); o culto da
figura do especialista, o corpo sendo tratado como uma máquina, a mercantilização
da saúde e um profundo e irracional desprezo pelos aspectos psicológicos da
doença.
O argumento
de que, em nosso século, o desenvolvimento técnico e tecnológico de
equipamentos médicos tenham sido as principais responsáveis pelo aumento da
taxa de vida também é questionável. Foram as melhorias sanitárias, a conquista
de direitos sociais, a educação higiênica e o entendimento dos processos de
transmissão de doenças (com os trabalhos, por exemplo, de um não médico, como
Louis Pasteur), a Educação Preventiva que tiveram um papel considerável na
melhoria da saúde pública. A parafernália técnica está quase totalmente voltada
para o diagnóstico de doenças, muitas das quais perfeitamente evitáveis com uma
eficaz educação preventiva, mas que possuem a área da modernidade milagrosa.
Muito, ou
pelo menos metade dos recursos utilizados em marketing e em diversos outros
tipos de publicidade médica poderiam ser muito melhor aplicados na educação
preventiva e na melhoria de postos de saúde, formando um conjunto de
extraordinário efeito profilático. Do mesmo modo, a estreita ligação de médicos
alopatas com a indústria farmacêutica (responsável pela movimentação de bilhões
de dólares anuais no comércio de remédios, muitos dos quais inócuos ou até
prejudiciais) têm formado um verdadeiro cartel comercial e impositivo de
valores. Quando do "boom" da AIDS, em meados da década de 80, a
indústria do sangue, por exemplo, não queria se submeter aos testes que
poderiam indicar a presença do vírus HIV nas doações de sangue, sob o pretexto
de que os gastos não compensariam os resultados. Ao que um cientista,
tristemente perguntou: "Quando os médicos se deixam levar pelo comércio e
comercializam a saúde, a quem a população poderá recorrer?" Esta pergunta
continua sendo mais atual que nunca. Ao invés de apenas se aterem ao mecanismo
de como se dá a ação de uma doença, a pergunta principal deveria ser: Por que
ocorre esta doença, quais os fatores intrínsecos e extrínsecos que causaram
esta doença e quais os meios em que ela pode ser eficazmente debelada. Os tão estudados
mecanismos de ação patológicos nem sempre são causa, mas sim efeitos de um
distúrbio mais complexo do organismo em seu intercâmbio relacional com o
ambiente físico e social que o envolve, o que, quase sempre, é tristemente
negligenciado pela medicina alopática, mas que, felizmente, é um dos pontos
mais fundamentais da medicina homeopática, que está sendo cada vez reconhecida.
Seria útil, aqui, recordar como a história
sempre se repete, como diria Karl Marx, a primeira vez como drama e a segunda
vez como farsa... Já no século II de nossa era, o notável médico Galeno acusa
seus colegas de terem esquecido Hipócrates, máximo modelo do bom médico. Galeno
acusava-os de: a) serem ignorantes e fechados em sua pseudo-supremacia, b) de
serem corruptos em sua sede insaciável de dinheiro e c) de estarem absurdamente
divididos (hoje, em super-especializações).
Eis o que ele disse a esse respeito: "Considerando a riqueza mais
preciosa que a virtude, e exercendo a arte médica não em benefício do homem,
mas por lucro e vaidade, (...) não é possível atingir a real finalidade da
medicina" (citado em História da Filosofia, vol. I, página 362, de
Giovanni Reale e Dario Antiseri, ed. Paulos, São Paulo, 1990).
Todo este quadro de tecnicismo individualista
e de descrédito em valores humanistas têm uma só causa fundamental: a nossa
visão de mundo foi montada em cima de valores e referenciais mecanicistas...
tomamos o relógio como metáfora do mundo, e passamos a nos tratar como
máquinas... E é tal o enraizamento deste paradigma que fica até mesmo difícil
de se acreditar ou aceitar que outras formas de ver e compreender o mundo
tenham alguma validade intrínseca e/ou sejam tão ou mais perfeitas que a nossa
visão cientificista.
Creio que ninguém melhor que Max Weber,
filósofo e sociólogo alemão, pôde explicitar de modo claro como o racionalismo
ocidental se transformou em ideologia, que poderíamos chamar de cientificista,
estabelecendo uma série de preconceitos etnocêntricos com relação a outras
formas de entendimento da realidade que, se não são científicas dentro dos
cânones do academicismo ocidental, nem por isso deixam de ser significativas e
coerentes e, mais que tudo, de funcionarem:
A Ciência como
Vocação
"O progresso científico é um fragmento, o mais importante, indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, um posicionamento crítico aparentemente estranho.
"Tentemos, de início, perceber claramente o que significa, na prática, essa racionalização intelectualista que devemos à ciência e à técnica científica. Significará, por acaso, que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, a respeito das respectivas condições de vida, conhecimento de nível superior ao que um hindu ou um hotentote poderiam alcançar acerca de suas próprias condições de vida? É pouco provável. Aquele, dentre nós, que entra num trem não tem noção alguma do mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha - exceto se for um físico ou engenheiro mecânico profissional. Basta-nos 'contar' com o trem e orientar, conseqüentemente, nosso comportamento; mas não sabemos como se constrói aquela máquina que tem condições de deslizar. O selvagem, ao contrário, conhece, de maneira incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas diferentes à pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheiro, ora se possa adquirir uma grande soma de coisas e ora uma quantidade mínima? [E isto a despeito de os economistas se orgulharem das características matemáticas de sua disciplina o que, pretensamente, a colocaria próxima das ciências exatas, objetivas]. O "selvagem", contudo, sabe perfeitamente como agir para obter o alimento quotidiano e conhece bem os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito.
<"A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral progressivo e interligado acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer momento, poderíamos, bastando que o quiséssemos - e dentro de uma visão de mundo onde a razão é utilizada e calcada na produção e distribuição de mercadorias e na e feitura de máquinas -, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso que interferirá com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo, deixá-lo como uma região amorfa, sem significado, como uma massa manipulável e não tendo outra utilidade senão sua exploração econômica. Os fatos e fenômenos que escapam aos limites do previsível são ou desprezados, ou postos de lado à espera de que um aperfeiçoamento do modelo científico venha a os explicar, mas sempre dentro dos pressupostos deterministas básicos aceitos. Para nós não se trata mais, como para o selvagem que acredita na existência destes poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é a significação essencial da intelectualização" (WEBER, Ciência e política; duas vocações, pp. 30-31, Editora Cultrix, São Paulo, 1970. Os comentários entre colchetes são meus).
III - O Holismo ou Ecologia Sistêmica: o nascimento
de um novo Paradigma
O extremo sentimento de mal-estar que muitas
pessoas sentem diante dos complexos e trágicos problemas da atualidade tem
levado à uma busca de um diálogo entre os vários núcleos do saber e da
atividade humana. Por exemplo, temos a ONU e a Unesco como grandes organizações
internacionais que buscam uma maneira conjunta de solucionar muitos dos atuais
problemas humanos, sem falar nos movimentos de encontro inter-disciplinares e a
busca pela ação cooperativa em todos os âmbitos, a medicina psicossomática e
homeopática e a abordagem holística em psicoterapia, etc. É a essa busca de uma
visão de conjunto, uma visão do TODO - que possui características próprias
independentes das características de suas partes constituintes, como o todo
humano possui caractersíticas próprias da de seus órgãos e tecidos -, que se dá
o nome de holismo.
Desde que Descartes
cristalizou de modo definitivo a idéia da divisão da ciência em humanas e
exatas (ou melhor, em Res Cogitans e Res Extensa, o que viria a
se refletir em nossa divisão em corpo e mente, etc.), temos visto toda uma
vasta gama de atitudes e comportamentos compatíveis com a idéia dominante do
universo como um sistema mecânico casualmente emergido de um caldo de matéria
de modo fortuito. No século XIX, Wundt, seguindo a tradição empirista britânica
calcada na Física de Newton, atomizou a mente, reduzindo-a, ou melhor, tentando
encaixá-la dentro dos parâmetros mecanicistas da ciência de sua época, haja
vista o sucesso da física clássica e o grande respeito que lhe era dada. Para
Wundt, como para muitos outros, a mente não passava de um epifenômeno (efeito)
bioquímico, como a urina é um epifenômeno dos rins. Mas tal modelo reducionista
não agradou a todos, e desde então muitas escolas, como a da Gestalt, por
exemplo, em psicologia e em outras áreas têm tentando - enfrentando o paradigma
mecanicista olímpico vigente nos meio acadêmicos - construir uma visão mais integrativa
do ser humano.
O desagrado ao modelo mecanicista - e da sua conseqüente
visão de mundo - foi expresso de maneira clara por vários grandes cientistas em
nosso século, como Albert Einstein, Werner Heisenberg, Niels Bohr e tantos
outros. Vejamos esta passagem do físico Erwin Schrödinger, que de muitas
maneiras lembra o humanismo existencialista de Soren Kierkegaard:
"O quadro científico do mundo real à
minha volta é muito deficiente. Ele nos dá muitas informações factuais, coloca
toda a nossa experiência numa ordem magnificamente consistente, mas mantém um
silêncio horrível sobre tudo aquilo que está realmente próximo de nossas
corações, de tudo aquilo que é realmente valioso e caro em nossas vidas, aquilo
que realmente nos interessa. Este quadro não nos pode dizer nada sobre o valor
do vermelho ou do azul, do amargo e do doce, dor física e prazer físico; nada
sobre o belo e o feio, o bom e o mau. É incompetente para dizer qualquer coisa
válida sobre Deus e a eternidade... Assim, em suma, não pertencemos realmente a
este mundo descrito pelo quadro científico. Não estamos realmente nele. Estamos
fora dele. Somos como espectadores de uma peça que insiste em demonstrar que o
mundo é uma máquina cega, onde aparecemos fortuitamente para, logo,
desaparecer. Apenas nossos corpos parecem se enquadrar no quadro, sujeitos às
leis que regem o quadro, explicados linearmente pelo quadro... Eu não pareço
ser necessário como ser humano, ou como autor... As grandes mudanças que
ocorrem neste mundo material, das quais eu me sinto parcialmente responsável,
cuidam de si mesmas, segundo o quadro - elas são amplamente explicadas pela
interação mecânica direta (...) Isso torna o mundo operacional para o entendimento
pragmático. Permite que você imagine a manifestação total do universo como a de
um relógio mecânico que, pelo o que sabe e crê a ciência, poderia continuar a
funcionar do mesmo jeito sem que nunca tivesse havido consciência, vontade,
esforço, dor, prazer e responsabilidade (...)"(Guimarães, 1996, p. 21, 22)
Este descontentamento e a intuição de que o
"quadro científico" é como uma janela que deixa ver apenas uma parte
ínfima da realidade tem estimulado uma notável tentativa de se construir uma visão mais
holística, horizontal, relacional, humana, orgânica e ecológica da realidade. Afinal, as conseqüências
de uma visão de mundo mecanicista são extraordinariamente nocivas,
principalmente dentro de uma certa ideologia fascista de grande parte dos poderes
político-econômicos da elite do Terceiro Mundo, o que traz um alto e muitas
vezes impagável preço em termos de vidas humanas e recursos naturais.
Estamos começando a antever e a construir um
modelo científico que se baseia no conceito de relação, que é muito mais amplo
que o de análise, como o usado pela ciência normal. Já não são somente as
partes constituintes de um corpo ou de um objeto que são de fundamental
importância para a compreensão da natureza desse objeto, mas o modo como se
expressa todo esse objeto, e como ele se insere em seu meio. As partes que
constituem um sistema têm um notável conjunto de características que se vêem no
âmbito das partes, mas o sistema inteiro, o todo - o holos -, freqüentemente
possui uma característica que vai bem além que a mera soma das características
de suas partes. Por exemplo, sabemos que tanto o hidrogênio quanto o oxigênio
são constituintes fundamentais no processo de combustão. Mas se juntamos esses
elementos e formarmos a água, nós os usaremos para combater a combustão. O Todo não elimina as características das partes,
mas estas, quando em relações íntimas, dão o substrato a uma nova forma, cujas
características transcendem às das partes constituintes. A Ecologia é a
ciências moderna que melhor pode demonstrar esta relação parte/todo em simbiose
íntima.
Da mesma forma, podemos dizer que as peças de
um quebra-cabeças, quando separadas, nos dizem muito pouco ou nada do que seja
o quebra-cabeças. Somente quando vemos as peças em seu conjunto, e, de um certo
modo, de um nível em que elas deixam de ser vistas como peças, é que podemos
compreender a mensagem do quebra-cabeças. Assim também, pensamos que o mecanicismo
reducionista e fragmentador do paradigma newtoniano-cartesiano já deu o que
tinha de dar. Achamos que após três séculos de ênfase na análise, está na hora
de começarmos a construir um modelo que também estimule a síntese. Enquanto o
mecanicismo científico vê o universo como uma imensa máquina determinística, o
holismo, sem negar as características "mecânicas" que se apresentam
na natureza, percebe o universo mais como uma rede de inter-relações dinâmicas,
orgânica.
As origens do pensamento holístico, enquanto
pensamento filosófico, podem se situar ainda na Antigüidade, com os
pré-socráticos, especialmente com Heráclito. Posteriormente, teremos um eco
desse pensamento com os estóicos e com os néo-platônicos, especialmente com Plotino, e,
modernamente, com os Românticos, especialmente com Schelling e os
idealistas alemães. Com a publicação do livro Holism
and Evolution, em 1921, Jan Smuts pode ser considerado o teórico
fundador do movimento holístico no século XX. Mas foi com a revolução
extraordinária da Física das
Partículas e, principalmente com a Teoria da Relatividade de Einstein, que
o termo passou a ser aplicado com uma conotação mais paradigmática dentro da
transformação conceitual da ciência.
Paulatinamente, primeiramente a partir da Filosofia e, logo depois, da própria
Física, foi se construindo um arcabouço intelectual que permitiu uma expansão
da percepção científica para além das peças de relógio do modelo analítico
cartesiano-newtoniano. Este novo arcabouço estabelece que:
· A Ciência, antes estritamente objetiva,
torna-se epistêmica (voltada para o próprio processo intelectual de conhecer),
já que as teorias revelam mais sobre a mente que a concebe que propriamente da
realidade. Toda teoria é um modelo de explicação aproximada da realidade. Além
do mais, desde que Heisenberg postulou seu Princípio da Incerteza, na Física
das Partículas, e de que o observador influi na experiência, a questão de uma
objetividade cartesiana clássica se tornou mais uma fantasia que realidade;
· Parte-se das partes simples, consideradas
independentes, para partes em interação, em processo ou em rede. Não é apenas o
conjunto de elementos isolados que formam o universo de fenômenos estudado pela
ciência. Mas a interação, a RELAÇÃO que existe entre esses elementos.
Aliás, é mais provável que os elementos sejam frutos da própria relação tanto
quanto esta é fruto destes. Desta forma, a realidade é um processo de troca de
informações entre todos os entes físicos, biológicos, psicológicos e sociais.
O físico norte-americano Brian Swimme fez uma
síntese de alguns princípios fundamentais do holismo, ou do Paradigma Holístico:
a) se a natureza do átomo
(aqui o encadeamento lógico advém das características atômicas) não é dada ou é
posta à compreensão exclusivamente por ele, de forma isolada, mas por sua
interação e seu comportamento em relação a todo seu Universo envolvente, então
a realidade física consiste principalmente de relações, como a música que se compõe
de relações de sons e rítimos - e não de notas isoladas, o que implica em
superposições de complexificação crescente ou na criação de sistemas dinâmicos
sempre mais amplos. Ou seja, nada pode existir sem que imponha e receba
características fora de seu ambiente total (Gestalt);
b) a nossa ciência e a
nossa interpretação sobre o que seja o mundo são resultantes de nossa própria
ação e relação com o mundo que nos cerca e com as crenças e idéias que
adotamos. O ideal da neutralidade e da objetividade científica é mais ficção
que realidade;
c) além da análise que
separa, a síntese que une é de fundamental importância na compreensão do mundo:
conhecer algo implica em saber sua origem e finalidade. O universo parece
possuir um sentido evolutivo;
d) a matéria não é algo
morto, passivo ou inerte, já que é dotada de energia e parece evoluir segundo
um plano criativo global; os elementos inanimados parecem se organizar segundo
complexos sistemas de interação. Assim, o Universo está mais para uma rede de
relações, uma realidade auto organizadora em busca de equilíbrio e renovação:
um organismo em homeorresis.
Em Psicologia, o pensamento holístico está
fortemente presente nas abordagens humanistas, especialmente na Gestalt, e,
muito mais, na Psicologia
Transpessoal. Stanley Krippner, diretor do Centro de Estudos da
Consciência, assim definiu os quatro princípios básicos do Paradigma Holístico:
1) a consciência humana
ordinária (relativa à percepção corporal e do ego no estado de vigília)
compreende apenas uma parte ínfima da atividade total do psiquismo humano;
2) a mente ou a
consciência humana, ou o espírito humano, estende-se no tempo e no espaço,
existindo em uma unidade dinâmica, ou melhor, em uma relação contínua com o
mundo que ela observa;
3) o potencial de
criatividade e intuição é mais global do que se imagina comumente, abrangendo
todos os seres vivos;
4) o processo de evolução
para níveis de maior complexificação e transcencdência é algo de muito valioso
e importante - tendência à auto-atualização, segundo
Maslow e Rogers.
O filósofo existencialista e psiquiatra
alemão Karl Jaspers (1883-1969), discorrendo sobre a necessidade de se
empreender reflexões sobre como se obter o melhor método em pesquisa
científica, afirmava que na prática do conhecimento necessitamos de vários
métodos simultaneamente, e enfatizava três grupos:
1. apreensão dos fatos particulares que
implica na observação e descrição (análise) fenomenológica;
2. investigação das relações, onde explicar
se refere ao conhecimento das conexões causais objetivas, vistas do exterior,
enquanto compreender diz respeito à intuição interior:
3. percepção das totalidades, para não se
cair no gravíssimo erro de se esquecer o Todo,
no qual e pelo qual a parte subsiste.
Portanto, a abordagem holística
não é nem analítica e nem é puramente sintética; ela se caracteriza pelo uso
simultâneo desses dois métodos, que são complementares.
A explicação da natureza e de todo o universo
não pode ser mais puramente mecânica, pois está cada vez mais patente que
existe um processo de síntese e de complexificação evolutiva que leva a criação
de sistemas altamente dinâmicos, como os sistemas biológicos - logo, muito
longe de serem máquinas sujeitas à segunda lei da termodinâmica clássica.
Segundo Jan Smuts, o criador da moderna concepção
holística, e que exerceu profunda influência em Alfred Adler, o primeiro
grande discípulo dissidente de Freud, "o conceito mecanicista da natureza
tem o seu lugar e a sua justificação apenas na estrutura mais ampla do
holismo". Icluamos, porém, que a complexidade humana vai muito além do
mecanicismo de Descartes, possuindo instâncias de racionalidade bem acima da
racionalidade linear, ou, como dizia Pascal, "possuindo razões que a
própria razão desconhece"
A pesquisadora e escritora Rose Marie Muraro, em
seu livro"Textos da Fogueira", Ed. Letra Viva, 2000, assim se
expressa sobre a atual atitude de questionamento epistemológico da ciência
moderna:
(...)
O mais revolucionário achado metodológico nessa área é a inclusão da
subjetividade e da concretude como categorias epistemológicas maiores, ao lado
da objetividade e da racionalidade, feita por muitas filósofas em vários
países, entre elas Susan Bordo, Allison Jaggar e outras. O mais interessante a
se notar é que essa revolução epistemológica se faz na mesma época em que, nas
ciências exatas, começa a abalar-se o domínio da razão. Nelas, o
irracional irrompe como o paradigma que ajuda a chegar perto das
realidades científicas extraordinariamente complexas de um mundo
tecnologicamente avançado. Isto acontece nas Teorias do Caos, das
Catástrofes e da Complexidade. Neste início de século e de milênio, desmorona o
dualismo simplista mente/corpo, razão/emoção, que foi a base do pensamento
ocidental nesses últimos três mil anos e que serviu apenas como racionalização
do exercício de poder expresso nas relações senhor/escravo, homem/mulher,
opressor/oprimido, etc. Esta nova maneira de elaborar abre uma nova forma de
pensar pós-cartesiana e pós-patriarcal
Se levada às suas últimas conseqüências, essa nova elaboração
científico-epistemológica da realidade pode modificar a própria natureza da
ciência. Como ela é hoje, por ser abstrata e generalizante, reforça o poder,
que na sua estrutura mesma é abstrato e esmagador do humano. Uma ciência em que
a subjetividade e o irracional enriqueçam o conhecimento pode desencadear um
processo de reversão desse poder destrutivo, tornado-se uma ciência
libertadora, e não escravizadora (Muraro, op. cit., p. 16).
Cabe aqui igualmente uma transcrição de parte de um artigo do nosso
querido teólogo e filósofo Leonardo Boff
(publicado na Folha de São Paulo em maio de 1996, cuja íntegra poderá ser
encontrada na Home Page do autor) sobre a nova visão holística, sistêmica ou
ecológica que agora surge:
Uma visão libertadora
"A ecologia integral procura
acostumar o ser humano com esta visão global e holística. O holismo não
significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e
diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e
constituindo esta totalidade. Esta cosmovisão desperta no ser humano a
consciência de sua funcionalidade dentro desta imensa totalidade. Ele é um ser
que pode captar todas estas dimensões, alegrar-se com elas, louvar e agradecer
aquela Inteligência que tudo ordena e aquele Amor que tudo move, sentir-se um
ser ético, responsável pela parte do universo que lhe cabe habitar, a Terra.
Ela, a Terra, é, segundo notáveis cientistas, um superorganismo vivo,
denominado Gaia, com
calibragens refinadíssimas de elementos físico-químicos e auto-organizacionais
que somente um ser vivo pode ter. Nós, seres humanos, podemos ser o satã da
Terra, como podemos ser seu anjo da guarda bom. Esta visão exige uma nova
civilização e um novo tipo de religião, capaz de re-ligar Deus e mundo, mundo e
ser humano, ser humano e a espiritualidade do cosmos. O cristianismo é levado a
aprofundar a dimensão cósmica da encarnação, da inabitação do espírito da
natureza e do panenteísmo, segundo o qual Deus está em tudo e tudo está em
Deus. Importa fazermos as pazes e não apenas uma trégua com a Terra. Cumpre
refazermos uma aliança de fraternidade/sororidade e de respeito para com ela. E
sentirmo-nos imbuídos do Espírito que tudo penetra e daquele Amor que, no dizer
de Dante, move o céu, todas as estrelas e também nossos corações. Não cabe
opormos as várias correntes da ecologia. Mas discernirmos como se complementam
e em que medida nos ajudam a sermos um ser de relações, produtores de padrões
de comportamentos que tenham como consequência a preservação e a potenciação do
patrimônio formado ao longo de 15 bilhões de anos e que chegou até nós e que
devemos passá-lo adiante dentro de um espírito sinergético e afinado com a
grande sinfonia universal".
IV - A Declaração de Veneza
Em março de 1986, por iniciativa da Unesco,
reuniram-se na cidade de Veneza dezenove ilustres representantes das áreas das
ciências (incluindo dois Prêmios Nobel), artes, filosofia e das Tradições
espirituais mais respeitáveis, todos representado dezesseis nações. Desta
reunião histórica resultou um documento de nominada Declaração de Veneza, que
reza o seguinte:
"Os participantes do colóquio 'A Ciência
face aos confins do Conhecimento', organizado pela Unesco, com a colaboração da
Fundação Giorgio Cini (Veneza, 3 a 7 de março de 1986), impelidos por um
espírito de abertura e de questionamento dos valores de nosso tempo, chegam a
um acordo sobre os seguintes pontos:
1. Somos todos testemunhas de uma
importantíssima revolução no domínio da ciência, engendrada pela ciência
fundamental (em particular a Física e a Biologia), pela perturbação que suscita
na lógica, na epistemologia e também na vida cotidiana através das aplicações
tecnológicas. No entanto, verificamos, ao mesmo tempo, a existência de uma
defasagem importante entre a nova visão de mundo que emerge do estudo dos
sistemas naturais e os valores que ainda predominam na filosofia, nas ciências
humanas e na vida da sociedade moderna. Pois estes valores estão fundamentados,
em grande parte, no determinismo mecanicista, no positivismo e no niilismo
vazio, desumano. Sentimos esta defasagem como extremamente prejudicial e
portadora de pesadas ameaças de destruição de nossa e de outras espécies.
2. O conhecimento científico, por seu próprio
movimento interno, chegou a um limite que lhe permite começar um diálogo com
outras formas de conhecimento. Neste sentido, e reconhecendo as diferenças
fundamentais entre a ciência formal e a Tradição espiritual, constatamos não
uma intransponível oposição, mas uma complementariedade entre duas formas de se
perceber o mundo. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciências e as
diversas Tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da
humanidade mas equilibrada, até mesmo de um novo racionalismo, que poderia
levar a uma nova perspectiva filosófica.
3. Recusando qualquer projeto globalizador e
reducionista, qualquer forma de um sistema fechado de pensamento, reconhecemos,
ao mesmo tempo, a urgência de uma pesquisa verdadeiramente transdiciplinar em
intercâmbio permanente e dinâmico com as ciências ditas 'exatas', e as ciências
'humanas', a arte e a Tradição. De certa forma, esta abordagem transdiciplinar
está inscrita em nosso próprio corpo, em particular em nosso cérebro através da
interação dinâmica entre seus dois hemisférios. O estudo conjunto da natureza,
do universo e do homem poderia aproximar-nos do real e permitir-nos enfrentar
os diferentes desafios da nossa época.
4. O ensino convencional de ciência, através
de uma apresentação linear e estanque dos conhecimentos, dissimula a ruptura
entre a ciência contemporânea e seu desenvolvimento histórico cheio de claros e
erros, bem como das visões anteriores de mundo. Reconhecemos a urgência da
pesquisa de novos métodos de educação, que levem em conta como se deu o real
avanço da ciência, os quais se harmonizam com as grandes Tradições culturais da
humanidade, com o resgate do sentimento na esfera das relações humanas, cuja
preservação e estuda parecem fundamentais. A UNESCO seria a organização
apropriada para promover tais idéias.
5. Os desafios de nossa época - o desafio da
autodestruição, o desafio da informação, da engenharia genética, etc. -
esclarecem de uma nova maneira a responsabilidade social dos cientistas, na
inicativa e na aplicação da pesquisa ao mesmo tempo. Se os cientistas não podem
decidir quanto à aplicação de suas próprias descobertas, não devem assistir
passivamente à aplicação cega e irresponsável destas descobertas. Em nossa
opinião, a amplidão dos desafios contemporâneos demanda, de um lado, a
infomação rigorosa, acessível e permanente da opinião pública; e de outro lado, a criação de órgãos de
orientação e até de decisão de natureza pluri e transdiciplinar.
6. Expressamos a esperança de que a UNESCO
levará adiante esta iniciativa, estimulando uma reflexão dirigida para a
universalidade e a transdiciplinaridade(...)".
Penso que a importância
deste documento ainda há de ser reconhecida pela humanidade como a primeira
tentativa institucional de âmbito mundial pela busca de uma sociedade e de uma
ciência mais holista, menos fragmentária. Mas sinto que falta ao documento uma
análise dos fatores econômicos que estão por trás da atual crise de valores e
de sentido humanos. Com o atual quadro de distribuição de renda e de alienação
econômica e educacional - tão vivenciada no Brasil -, dificilmente poderemos
incrementar o ideal holístico, pois este calca-se na conscientização das
pessoas, que advém do uso democrático da informação (todos nós sabemos como a
informação é manipulada pelos veículos de comunicação comercial e o seu peso na
formação artificial da opinião pública), e esta corre o risco de ser mais um
produto rigidamente controlado pela ideologia de lucro e de poder do
capitalismo vigente.
"O ser humano vivência a si mesmo, seus
pensamentos como algo separado do resto do universo - numa espécie de ilusão de
ótica de sua consciência. E essa ilusão é uma espécie de prisão que nos
restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto por pessoas mais
próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o
nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a
natureza em sua beleza. Ninguém conseguirá alcançar completamente esse
objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação
e o alicerce de nossa segurança interior".
Albert Einstein
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