Do Jornal GGN:
Em vez de elucidar o crime, militares proibiram a investigação do caso, transformando um crime hediondo em fábula urbana.
Quem matou Ana Lídia? Os 50 anos de um crime acobertado pela ditadura militar
Todos os anos, quando chega a proximidade de 12 de setembro, a sociedade brasiliense se pergunta: quem matou Ana Lídia, uma menina de sete anos encontrada nua e violentada em uma vala rasa, em 1973? A ausência de respostas transformou um crime hediondo em uma fábula urbana, mas a grande verdade é o silenciamento sobre o caso, que permanece sem respostas depois de 50 anos, é mais uma das atrocidades silenciadas pela ditadura militar.
No dia 11 de setembro de 1973, Ana Lídia foi deixada pela família na porta da escola particular onde estudava. Mas ela não entrou na instituição. A família só percebeu sua falta quando a empregada foi buscá-la e soube que Ana Lídia não assistiu às aulas daquele dia.
Os pais, então, ligaram para a polícia e chegaram a receber duas propostas de resgate. Na primeira delas, os supostos sequestradores pediram dois milhões de cruzeiros pela liberdade da menina ao delegado. No dia seguinte, os criminosos deixaram uma carta em um supermercado próximo à residência família. Desta vez, a fiança custaria 500 mil cruzeiros.
O resgate não foi pago.
Negligência
Já no dia 12 de setembro, o corpo de Ana Lídia foi encontrado despido, em uma vala rasa próximo à Universidade de Brasília. A menina tinha marcas pelo corpo e o cabelo foi cortado próximo à raiz.
Havia preservativos perto do corpo, assim como marcas de pneus de carro. A criança tinha ainda manchas roxas, escoriações e mordidas. Constatou-se que Ana Lídia foi estuprada antes e depois de morta.
O jornalista Roberto Seabra tinha 9 anos quando o crime aconteceu. O pai dele, perito, contava que existia “um caminhão de provas” que foram ignoradas pela polícia.
As marcas de carro nunca foram averiguadas. Os suspeitos nunca tiveram suas arcadas dentárias comparadas às mordidas encontradas no corpo da criança. A polícia também não analisou o sêmen nos preservativos e nem as digitais que poderiam estar na carta de pedido de resgate.
Bode expiatório
Devido à grande repercussão do caso, que chocou a sociedade brasiliense em 1973 e ganhou visibilidade na mídia, o crime precisava ser resolvido.
À família, uma funcionária da escola afirmou que Ana Lídia foi levada por um homem loiro, de cabelos longos, que vestia uma blusa branca e uma calça verde.
Logo, Álvaro Henrique Braga, irmão de Ana, despontou como principal suspeito do assassinato, pois seria usuário de drogas e teria dívidas com traficantes. O sequestro seria, então, uma forma de tirar dinheiro da família de classe média.
Álvaro teria contado com a ajuda de Raimundo Duque, um suposto traficante. “O que aconteceu no caso Ana Lídia: o irmaão dela, Álvaro Braga, e um amigo da família, uma pessoa muito humilde que trabalhava para a família, que a mãe da Ana Lídia ajudou porque era alcoólatra, foram presos e soltos por falta de provas”, conta Seabra.
O irmão da menina também foi acusado de entregá-la aos assassinos como pagamento de dívida de drogas, tese que nunca foi comprovada.
Filhinhos de papai
Surgiram, então, dois novos suspeitos do assassinato: Alfredo Buzaid Júnior, mais conhecido como o Buzaidinho, filho do então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid; e Eduardo Rezende, filho de Eurico Rezende, o então senador e líder do governo.
Já em 1974, por conta desta suspeita, o governo Médici pôs fim aos trabalhos de investigação da polícia e também proibiu a imprensa de noticiar o caso. “Típico crime de filhinhos da alta sociedade, que misturaram bebida com droga e fizeram bobagem”, aposta Roberto Seabra.
O jornalista comenta, no entanto, que é preciso desmascarar a ditadura. Afinal, se o crime fosse cometido hoje pelos filhos do atual ministro da Justiça e do líder da Arena no Senado, qual seria a imagem do Executivo ao proibir a investigação sobre a morte de uma criança?
“Se as pessoas, em algum momento, soubessem que o governo militar que elas tanto admiravam, que cuidava da honra, que mantinha o país longe dos problemas, longe do comunismo, se soubesse que esse governo também estava agindo para acobertar crimes hediondos, o que eles achariam do governo?”, pondera Seabra.
Uma nova santa
O caso Ana Lídia, segundo Seabra, teve bastante repercussão na sociedade brasiliense por diversos motivos. O primeiro deles foi o fim da ilusão de que a capital federal, planejada por arquitetos e urbanistas, não era a cidade dos sonhos e nem estava livre da violência como se imaginava.
O fato de não ter respostas também fez o crime ganhar ainda mais notoriedade. Afinal, são diversas perguntas que, mesmo depois de 50 anos, ainda estão no ar. O irmão participou do sequestro? O irmão a entregou para quem matou? Havia filhos de poderosos envolvidos no caso? Por que o governo militar proibiu a continuidade das investigações?
Tanto mistério transformou o crime em uma lenda urbana. Todos os anos, no dia de finados, conhecidos, amigos e devotos levam flores e brinquedos para o túmulo de Ana Lídia, no Cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul.
Mas, além da identificação da criança, a lápide tem placas de agradecimento, pois a menina já falecida teria realizado milagres.
Em entrevista ao jornal Metrópoles, em 2020, Lúcia Ribeiro acredita que Ana Lídia concedeu um milagre à nora, que enfrentava uma gestação de risco e ia ao cemitério para pedir a intercessão da criança, para que o bebê tivesse saúde.
A neta de Lúcia nasceu perfeita e, por isso, a família visita a lápide para agradecer e fazer orações com frequência.
Desfechos trágicos
Assim como Álvaro Braga e Raimundo Duque, não foram encontradas provas contra Buzaidinho e Eduardo Rezende. Ninguém foi condenado pelas barbaridades cometidas contra Ana Lídia.
No entanto, quase todos os personagens desta história real já faleceram. Buzaidinho sofreu um acidente de carro fatal em 1975. Em 1990, Rezende se suicidou. Raimundo Duque morreu em 2005, por complicações causadas pelo alcoolismo. Os pais de Ana Lídia também ja faleceram.
Álvaro Braga vive no Rio de Janeiro, é pediatra e tem uma clínica particular. Ele, porém, nunca falou ou deu entrevistas sobre o caso.
Resposta literária
Passados 40 anos da morte de Ana Lídia, Roberto Seabra decidiu escrever um livro sobre o caso. Mas em vez de um livro reportagem, o jornalista decidiu investir em um romance de ficção baseado em fatos reais.
“Quando a polícia, a imprensa, o Ministério Público, o poder judiciário não conseguem elucidar um crime, a literatura tem todo o direito de entrar naquele caso e dar a sua versão”, diz o autor de Silêncio na Cidade, disponível para leitura gratuita na Amazon.
A intenção do jornalista ao criar o romance foi mostrar que, há 50 anos, o regime militar interferiu no trabalho da polícia e da imprensa, impedindo-os de realizar suas respectivas funções. Assim, não foi possível descobrir o responsável pelas atrocidades cometidas contra Ana Lídia. “Qual o problema de dizer quem matou uma criança de 7 anos? Por que impedir que se investigue a morte de uma criança? Esta é a pergunta que eu faço até hoje”, conclui o autor.
E estas são perguntas que, mesmo depois de tanto tempo, continuarão sem respostas.
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