terça-feira, 12 de setembro de 2023

Operação Perfídia e o general Braga Netto: como a farda militar encobriu a suspeita de corrupção, por Joaquim de Carvalho

 

Ação da PF que chegou a ex-ministro começou com investigação nos EUA sobre a morte do presidente do Haiti e o elo com indústria de segurança, ligada a Bolsonaro

Braga Netto e a Polícia Federal

Braga Netto e a Polícia Federal (Foto: Alan Santos/PR | Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Artigo de Joaquim de Carvalho

A Polícia Federal realiza na manhã desta terça-feira (12/09) operação sobre fraudes na execução orçamentária do Gabinete de Intervenção Federal na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, em 2018. Um dos investigados é o general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e que foi candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022.

O caso que motivou a operação é o contrato para compra superfaturada de coletes à prova de bala de uma empresa de segurança dos EUA, a CTU Security LLC, envolvida na conspiração que levou ao assassinato do presidente do Haiti Jovenel Moïse, em julho de 2021.

A Agência de Investigações de Segurança Interna dos Estados Unidos (Homeland Security Investigations, ou HSI) descobriu que a CTU Security LLC ficou responsável pelo fornecimento de logística militar para executar Jovenel Moïse e substituí-lo na Presidência do Haiti por Christian Sanon, um cidadão americano-haitiano. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Nessa investigação, a HSI descobriu indícios de fraude no contrato com o Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro e informou o governo brasileiro. A Polícia Federal foi acionada e Braga Netto passou a ser investigado. Assim como outros generais, teve o sigilo telefônico quebrado, mas Braga Netto não foi alvo da operação na manhã desta terça-feira.

Não é a primeira vez que o ex-ministro da Defesa está no centro de um caso nebuloso envolvendo contratos que assinou ou autorizou no tempo em que era interventor da Segurança Pública no Rio de Janeiro. Em março do ano passado, publiquei nesta coluna reportagem sobre a compra suspeita de armas de uma empresa ligada a Eduardo Bolsonaro que forneceu ao governo brasileiro endereço falso.

O contrato foi assinado nos últimos dias de Braga Netto na função de interventor, no valor de R$ 46 milhões. A empresa que vendeu pistolas semiautomáticas para o Gabinete de Intervenção Federal se chama Glock America, representada no Brasil por Franco Giafonne, amigo de Eduardo Bolsonaro, e Fernanda Pereira Leite, irmã de Joaquim Álvaro Pereira Leite, que seria ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, após Ricardo Salles.

A Glock America não fabrica armas. Ela é intermediária da austríaca Glock e informou ter escritório em Montevidéu, no Uruguai. 

A fábrica de armas alemã Sig Sauer, que disputava o contrato com a Glock America em 2018, esteve no endereço fornecido pela concorrente e constatou que era falso.

Em ofício dirigido ao general de divisão Laélio Soares de Andrade, secretário de administração do Gabinete de Intervenção Federal e braço direito de Braga Netto, a Sig Sauer apresentou o resultado da diligência que fez, por meio do serviço notarial do Uruguai. O documento, de 12 de novembro de 2018, é assinado por Marcelo Silveira da Costa, procurador da Sig Sauer:

A licitante Glock apresentou neste edital documentos em que declara que sua sede social localiza-se em Plaza Independência, 831, of. 802, Montevidéu, Uruguai.

Há fortíssimos indícios de que a informação é falsa.

Alertados pelo próprio website da licitante, que destaca que a representação da Glock na América Latina localiza-se no Panamá, e também por notícias da imprensa uruguaia dando publicidade ao fato de que a representação da Glock deixou o Uruguai (acessível em https://www.uypress.net/Politica/La-representacion-de-las-armas-Glock-se-fue-de-Uruguay-uc86057), nós solicitamos a um notário público do Uruguai que fizesse uma visita ao endereço declarado pela licitante.

O notário público uruguaio lavrou uma ata notarial em que descreve claramente que, segundo informações colhidas junto ao administrador do edifício:

I - A representação da Glock funcionou no local, mas já não funciona lá há cerca de um ano e meio;

II - O mobiliário da empresa foi retirado em fevereiro deste ano.

Existem, portanto, indícios muito convincentes no sentido de que a conduta da referida licitante pode ser enquadrada no crime de falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal) e fraude à licitação (artigo 93 da lei 8.666).

A Sig Sauer, que tinha interesse de vencer a licitação, sugere ao Gabinete de Intervenção Federal que envie o adido militar no Uruguai para conferir os fatos relatados.

Ao mesmo tempo, o representante da empresa alemã junta ao ofício a ata notarial com uma tradução juramentada (abaixo).

Em vez de verificar a denúncia, o Gabinete chefiado por Braga Netto avança no processo de compra e, nos últimos dias de seu funcionamento, o próprio interventor assina o contrato, com “dispensa de licitação”.

O Gabinete de Intervenção Federal gastou o equivalente hoje a R$ 1 bilhão, em compras de equipamentos que, na esmagadora maioria dos casos, não passaram por licitação. Foi assim também no contrato com a CTU Security LLC.

Entrei em contato com o representante da Sig Sauer no Brasil quando ele participava de uma feira em Las Vegas, no final de 2021.

Expus o caso e pedi uma entrevista.

“Bom dia”, respondeu ele. “Vi seu e-mail. Posso lhe ajudar muito mais do que imagina, mas estou em Las Vegas em uma feira de negócios e tratar isso por telefone vai ser complicado”, acrescentou.

Sugeri videochamadas, e ele comentou:

“Vou ver com a segurança e te falo, espero que você tenha peito para ir até o fim”.

Como ele não entrou mais em contato, mandei nova mensagem quando os repórteres Igor Mello e Eduardo Militão publicaram, em 31 de janeiro de 2022, reportagem no UOL sobre suposto favorecimento à própria Sig Sauer na compra de fuzis para a Polícia Civil do Rio de Janeiro, com verba de R$ 3 milhões do Ministério da Justiça.

O dinheiro foi liberado após gestão do senador Flávio Bolsonaro, conforme ele mesmo havia contado em sua rede social. O processo, segundo a reportagem, foi marcado “por uma série de indícios de direcionamento e conflito de interesses”.

Na época, ao ser procurado, Flávio comentou que não tinha atuado em defesa da Sig Sauer, mas esse negócio é coerente com a versão da fonte que me passou os documentos sobre a venda de armas à Glock America pelo Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro.

“A Sig Sauer denunciou a maracutaia, mas depois recuou, quando os militares lhe ofereceram compensação, em contratos futuros”, afirmou. Um dos contratos teria sido destinado ao fornecimento de armas para o Estado do Ceará. O outro pode ser este viabilizado com verba liberada por Flávio.

O caso reforça a suspeita de que Bolsonaro, desde sua campanha a presidente em 2018, é financiado pela indústria de armas, que tem seu núcleo de poder instalado nos Estados Unidos.

A propósito, o site “Seeing Red”, de Nebraska, Estados Unidos, publicou em março de 2022 reportagem com o título “Royce Gracie, o homem que apresentou os Bolsonaros para a NRA e Donald Trump Jr.”.

Sob a causa da liberação de armas, a NRA defende os interesses dessa indústria, que, como se vê no caso do Rio de Janeiro, faz um jogo pesado.

O que uniu Bolsonaro e Braga Netto na campanha de 2022 não é a defesa do golpe de 1964, nem o papel das Forças Armadas na República. Mas algo bem mais concreto: o dinheiro da indústria de armas. 

O caso da CTU Security LLC, envolvida na execução de um chefe de Estado, pode ser apenas a ponta do iceberg, o elo de uma rede internacional poderosa.

Nunca é demais lembrar que, na época da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, também aconteceu um crime político grave, até hoje não esclarecido, o da vereadora Marielle Franco. Em 2018, farda foi invocada pelo governo de Michel Temer como manto da eficiência. 

Hoje se sabe que ela pode ter sido qualquer coisa, menos símbolo de eficiência, talvez tenha sido usada para encobrir corrupção. Só uma investigação séria revelará a verdadeira natureza do batalhão (seria exagero dizer quadrilha?) que comandou o Brasil, escalando postos de poder, entre os quais a Segurança Pública do Rio de Janeiro.

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Na época em que publiquei a reportagem sobre o escândalo da Glock America, procurei a assessoria de comunicação do Ministério da Defesa, e pedi posição de Braga Netto. A assessoria do Ministério me orientou a procurar a Casa Civil, responsável pelos pagamentos à Glock America, e o general não quis se manifestar. 

Seguem documentos citados na reportagem: 

 

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