quinta-feira, 8 de julho de 2021

O escândalo das vacinas e a corrupção como um “mal originário”: a destruição de vidas humanas e da democracia por perversão, por Jânia Saldanha

 

O superlativamente chamado “superpedido de impeachment” contra Jair Bolsonaro, é a mais pura evidência da absoluta insustentabilidade jurídica de um governo que afunda o País na mais trágica e imponderável crise de governabilidade interna e de perda de credibilidade internacional.

O escândalo das vacinas e a corrupção como um “mal originário”[1]: a destruição de vidas humanas e da democracia por perversão[2]

por Jânia Saldanha[3]

Os recentes acontecimentos da CPI da COVID relativos à compra de vacinas mostram uma face até então escondida ou, melhor, que está sob o disfarce do discurso moralista do governo de Jair Bolsonaro. Eles fazem parte do conjunto de ações e omissões do governo federal concernentes à gestão criminosa da pandemia, cujo resultado fatal é a indizível soma de aproximadamente 520 mil mortos e que retirou o Brasil da condição de um reconhecido líder mundial para colocá-lo no lugar de um pária internacional. Involuntariamente pintados de vermelho em razão dessa tragédia anunciada por especialistas de inúmeras áreas, presenciamos, ainda estupefatos, indignados e enlutados, a expansão da racionalidade deliberada e calculada da necropolítica adotada pelo Presidente da República.

Os depoimentos prestados na CPI da COVID-19 e as provas documentais obtidas – amplamente divulgados nas sessões públicas da CPI e pela imprensa nacional – trouxeram à tona o escândalo de corrupção envolvendo o alto escalão do Executivo Federal, membros do Congresso Nacional e empresas privadas. Se a insistência do Presidente da República em defender e em autorizar gastos de dinheiro público para adquirir medicamento sem prova científica de sua eficácia sempre despertou sérias suspeitas, os fatos envolvendo a rejeição à compra de vacina oferecida pela Pfizer e a cobrança de propina para a compra de três vacinas diferentes – AstraZeneca, Covaxin e Convidecia –[4], fazem com que a legitimidade jurídico-política do governo de Bolsonaro tombem definitivamente na escuridão das trevas que ele próprio tratou de cavar.  É, inapelavelmente, uma caída tardia em face do rastro de vidas perdidas pelos caminhos dos longos 16 meses de uma pandemia não controlada, não cuidada, não evitada, deliberada e conscientemente, desprezada.

O superlativamente chamado “superpedido de impeachment”[5] contra Jair Bolsonaro, apresentado à Presidência da Câmara dos Deputados no dia 30 de junho e que se somou aos mais de 100 pedidos já protocolados anteriormente, é a mais pura evidência da absoluta insustentabilidade jurídica de um governo que afunda o País na mais trágica e imponderável crise de governabilidade interna e de perda de credibilidade internacional. Assim, se dos fatos soçobram notícias e detalhes, nosso intento aqui é chamar a atenção do leitor para aquilo que, em nosso entendimento, pode explicar o brutal e o macabro do escândalo das vacinas que faz da saúde humana, um bem comum mundial e um direito humano de primeira grandeza, a vítima essencial da corrupção. A maneira como ela apresenta-se no contexto da pandemia de COVID-19 pode ser considerada, à luz do direito internacional, um core crime não mais associado à violência da força das armas e sim à violência da gestão da vida[6] como bíos[7] e como zoe[8].

A luta contra a corrupção tem sido colocada como um dos problemas centrais dos Estados e da comunidade internacional. A corrupção é considerada pela ONU como um mal insidioso, múltiplo e extremamente deletério para as sociedades, isto porque, fragiliza, quando não destrói a democracia e o estado de direito, tanto quanto viola os direitos humanos ao reduzir a qualidade de vida das populações e ao aniquilar a própria vida, entre tantas outras razões. De uma maneira geral, é preciso dizer que são os pobres aqueles que mais sofrem os seus efeitos destrutivos, pois exatamente onde as fontes de recursos são usadas em favor da corrupção é que deveriam ser para promover o desenvolvimento e a proteção da vida.

Na condição de um mal originário, simbolicamente, ela apresenta uma dupla face. Primeiro, a corrupção carrega como característica fundamental o uso da lei para, ao dissimulá-la, concretizar o intento corruptivo. Depois, ao cometer uma possessão, na medida em que necessita cooptar vontades e convencer pela aparência de verdade que se presta a esconder o ilícito cometido, ela apresenta-se como perversão.

Com efeito, a corrupção caracteriza-se como a mistura entre o público e o privado. Entretanto, se essa particularidade é grave em nossas democracias, mais grave, ainda, é o fato de que seus autores violam o direito quando é ele que, justamente, deveriam respeitar. Logo, nessa perspectiva, a corrupção nutre-se da própria invisibilidade para existir, dando a falsa impressão de que a lei está sendo cumprida e que as instituições estão sendo respeitadas e com seus programas em funcionamento. Não há pudor na corrupção. Ao contrário, descaradamente, os agentes corruptos diluem e maquiam a ilegalidade praticada no discurso da legalidade aparente na qual depositam a certeza da impunidade.

Em um texto instigante, Antoine Garapon[9] diz não haver vítimas diretas na corrupção por tratar-se de uma violência por dissimulação. Podemos concordar com essa afirmação. No entanto, o escândalo das vacinas, seguramente a ponta do iceberg que forma o governo corrupto que está no poder, evidencia que a corrupção produz efeitos mortais irrecuperáveis sobre vítimas conhecidas. Até mesmo nisso o governo Bolsonaro conseguiu inovar. Antes da criminosa gestão da pandemia podíamos dizer que a corrupção, por ser um tipo de violência política, não poderia ter a sua materialidade comprovada por um corpo de delito ou por um cadáver, como referiu Antoine Garapon, razão pela qual sempre foi difícil combatê-la e erradicá-la. Nesse sentido, a percepção era a de que sendo a corrupção uma violência à lei, fazia da sociedade como um todo sua grande vítima e na extensão dessa, dispersava-se. O meio milhão de humanos mortos pelo coronavírus nos obriga a rever tal compreensão. Sim, a corrupção é uma violência à lei, ela faz da sociedade a grande vítima, mas, agora, faz vítimas identificáveis, o que agrava sua performance, inscreve a responsabilidade de seus autores na categoria de crimes contra a humanidade e torna mais fácil sua identificação.

Se o silêncio e o segredo ainda são mais do que meros pressupostos para a existência de tal crime, ou seja, são a razão de seu sucesso pelo mundo como mostram os dados da Transparência Internacional[10], instrumentos democráticos – ainda que não perfeitos –  de controle do poder político, como são as CPIs, nos fazem perceber que esse manto protetor de dupla face pode ter uma vida curta.

O elemento central que devemos considerar para entender o lodo em que chafurdam os corruptos do caso das vacinas, é que a corrupção não é uma mera transgressão da regra por oposição ou não concordância com ela. Como menciona Garapon[11], o que se verifica é uma falsificação da regra traduzida na neutralização/ desnaturalização do próprio direito.  O que vemos, portanto, não é uma transgressão da regra por contestação a ela e sim uma falsificação que a desqualifica na forma, por exemplo, do valor maquiado de uma dose de vacina ou da eficácia inventada/maquiada de um determinado medicamento.

Agora chegamos ao essencial para entender a gravidade da extensão deste crime. Na falsificação há uma sorte de perversão, por duas razões. A primeira é porque ela opera a degradação lenta da confiança nas instituições. A segunda é porque promove a desconfiança com relação aos que devem assegurar a integridade do direito e das instituições democráticas. Isso é compreensível na medida em que a corrupção tem por objetivo satisfazer interesses pessoais por meio da utilização e instrumentalização das instituições públicas. Ela é tanto um sintoma das nossas sociedades dirigidas – e gastas – pelo paradigma da concorrência neoliberal, quanto o efeito de um modelo de mundo liderado pelo individualismo e pela mercantilização, ambos o alfa e o ômega do modelo expropriatório globalizado em que o “outro” é objeto de possessão. Assim, a compreensão de que a corrupção sempre envolve perversão decorre do fato de que essa última sempre implica nessa possessão, seja da democracia ou de um bem comum mundial, como a saúde humana, cuja finalidade é a de destruí-los.

No caso específico e particular da corrupção, o que faz justamente o agente corruptor é destruir o que democrático existe na democracia, seus princípios, a proteção dos direitos humanos – aqui, da saúde e da vida humana – e as regras que estabelecem os limites constitucionais de atuação do Estado, dos seus governantes, dos indivíduos e de outros atores privados. Para isso, a mentira é a seiva que alimenta a existência da perversão, ou seja, para escapar da destruição pelo objeto que ela destrói – por exemplo, a confiança nas instituições democráticas -, ela opera por uma linguagem que possui aparência de verdade e que, no caso brasileiro, é promovida prodigamente pelo governo no poder na forma de fake news.

Não é por outra razão, então, que a corrupção pode ser qualificada como a própria perversão. Essa aparece em diferentes manifestações e em distintos graus, como por exemplo, como instrumentalização, desqualificação, quanto como produção de discursos que tomam forma desafetada e desubjetivada, dois ingredientes necessários para dar à indiferença emocional e ética do corrupto-perverso a sua capacidade de destruição e de toxidade. Os depoimentos prestados na CPI da COVID-19 não deixam nenhuma dúvida quanto à essa indiferença ética dos perversos que negociaram as propinas das vacinas e que, por isso, não só atrasaram/impediram o processo de compra, quanto produziram criminosamente a morte de milhares de pessoas.

A combinação da corrupção com a perversão não deixa de responder às patologias desta era pós-freudiana, a era da pós-verdade onde a relevância da verdade dos fatos é inferior ao valor que é atribuído às crenças, às emoções mais primárias e à aparência. Ora, se sob o manto da legalidade o corrupto usa a própria lei para desqualificá-la, é justamente aqui que se anuncia a perversão. O perverso – então o corrupto – defende ideias, valores morais e leis que ele próprio transgride[12]. Trata-se de uma mise en scène teatral que lhe permite fazer-se passar por aquilo que ele verdadeiramente não é e que mostra o lado obscuro do homem transferido para as questões públicas.

Os depoimentos prestados junto à CPI acerca do escândalo das vacinas, confirmam tais práticas por agentes do Estado brasileiro. E, como indicam os penalistas, sendo um crime formal, basta a solicitação ou recebimento da vantagem indevida, onde o arrependimento não tem lugar. O comportamento corrupto, então, está na diferença entre o que é dito e o que é de fato feito. Trata-se do refinamento da perversão, a qual estrutura-se na proibição de dizer e de nomear. Por causa disso, ela aparece na forma de um segredo e de uma sedutora cumplicidade ou, ainda, com a “cândida aparência de uma virtude ultrajada”[13]. Logo, lá onde a ansiedade e a culpa são os fundamentos da neurose aqui, na perversão, o que conta é a dissimulação e a manipulação. Por isso é que o agente corrupto jamais responde diretamente às questões que lhe são apresentadas. Ele, em geral, não faz nenhuma comunicação acerca da origem do seu saber. É justamente por isso que, como também tem sido visto na CPI, ele insiste em usar da prerrogativa do silêncio, exceto nas delações que se tornaram habituais entre nós notoriamente por razões egoístas do que por razões nobres e éticas.

Por isso, numa sociedade desencantada, em que os próprios indivíduos são transformados e se autotransformam em mercadorias, como referiu Bauman[14], e na qual o individualismo é o imperativo categórico, muitos políticos, atores centrais do crime de corrupção, não são apenas qualificados de perversos mas, também, agem como tais, na medida em que assumem o caráter enganador das promessas jamais cumpridas. Nesse sentido, Roudinesno[15] nos diz que “…todas as grandes mitologias contemporâneas relativas ao complô, à conspiração ou à impostura organizada derivam, sem dúvida alguma de uma atualização espontânea da noção de perversão”. E parece não caber mais tão-somente à ciência, aos psiquiatras e psicanalistas explicar e dar sentido à perversão. Essa tarefa cabe ao direito e ele é que procederá ao seu enquadramento institucional para entendê-la no quadro da destruição da democracia e, no Brasil de hoje, no quadro da gestão criminosa da crise pandêmica.


[1] A expressão é de SPECTOR, Céline. Dictionnaire Montesquieu, 2013. Disponível em: <http://dictionnaire-montesquieu.ens-lyon.fr/fr/article/1376473889/en/>. Acesso em 29/06/2021. Também em: GARAPON, Antoine. La peur de l’impuissance démocratique. Esprit. Février, 2014.

[2] Essa é uma versão reduzida, modificada e atualizada do texto publicado em conjunto com James Cavallaro e Alessia Magliacane. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/20223

[3] Pós-Doutora em Direito do Institut des hautes Études sur la Justice, Paris. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Curso de Direito da UNISINOS. Advogada.

[4] FOLHA DE SÃO PAULO. Entenda as suspeitas na compra de vacinas, o relato sobre propina e a cronologia e a cronologia da crise sobre Bolsonaro. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/entenda-as-suspeitas-na-compra-de-vacinas-o-relato-sobre-propina-e-a-cronologia-da-crise-sob-bolsonaro.shtml. Acesso em 30/06/2021

[5] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/779812-oposicao-apresenta-a-camara-superpedido-de-impeachment-de-bolsonaro/. Acesso em 30/06/2021

[6] Sobre esse tema ver: FASSIN, Didier. La vie. Mode d’emploi. Paris: Seuil, 2018.

[7] Relacionada ao contexto social e as imbricações políticas que ele revela quantos aos modos de viver dos indivíduos e dos grupos.

[8] Relacionada à existência física, aos aspectos biológicos e ao fato de viver.

[9] GARAPON, Antoine. La peur de l’impuissance démocratique, op. cit., p. 25.

[10] TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Corruption Perceptions Index/2020. Disponível em : https://www.transparency.org/en/cpi/2020/index/nzl#. Acesso em 01/06/2021.

[11] Id.

[12] GARAPON, Antoine. La peur de l’impuissance démocratique, op. cit.

[13] VERGNES, Phillipe. Nommer la perversion dans une societé néolibérale déshumanisée. Agoravox. 8/1/2018. Disponível em: <https://www.agoravox.fr/tribune-libre/article/nommer-la-perversion-dans-une-200389> Acesso em: 29/06/2021.

[14] BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 76.

[15] ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 193.

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