Presidente ignora gestos de aproximação feitos pelo vice, Hamilton Mourão. Clima belicoso poderá levar o país a ser incluído em grupo de vilões ambientais, em estudo pelo Governo Biden
Quase uma semana após os Estados Unidos decidirem quem será o seu presidente a partir de janeiro de 2021, o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro segue sem cumprimentar o vencedor Joe Biden. O que era uma diplomacia do silêncio a favor do derrotado Donald Trump tornou-se uma espécie de antidiplomacia com a maior potência mundial, em que Bolsonaro ameaça usar armas contra a maior potência militar mundial para, em seu entendimento, proteger a Amazônia. A declaração feita nesta semana – “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora” – espantou diplomatas que trabalham em Brasília. Para quatro deles ouvidos pela reportagem, a fala demonstra que o presidente está ignorando os gestos de aproximação feito por seu vice, o general Hamilton Mourão, que tenta garantir uma relação mais cordial e plural com diversos países. Nesta sexta, Mourão disse em entrevista à Rádio Gaúcha que “como indivíduo” reconhecia que a vitória de Biden nas eleições “está cada vez mais irreversível”.
Mourão comandou uma comitiva de embaixadores europeus em viagem à Amazônia na semana passada, na qual ele tentou demonstrar que o governo estaria agindo no enfrentamento ao desmatamento e aos incêndios florestais ilegais. Quando retornou a Brasília, na segunda, 9, disse a jornalistas que o presidente se pronunciaria quando os votos dos americanos fossem todos contados. Foi desautorizado por Bolsonaro, que disse não estar tratando sobre nenhum assunto com o vice. Mas a pressão ao seu redor aumenta, depois de Biden ser confirmado vencedor no Estado do Arizona, nesta quinta, o que fez a China reconhecer a vitória do democrata, isolando ainda mais o gesto do presidente brasileiro.
A primeira reação aos discursos oficiais pode vir já do governo Biden, que pretende criar uma lista de países “criminosos do clima”, na qual um dos primeiros alvos poderia ser o Brasil. O objetivo é forçar os governos a se empenharem a cumprir a meta do acordo de Paris de impedir um aumento da temperatura global acima de 2ºC. As informações foram reveladas pelo site Vox. Biden pretende renovar os compromissos dos Estados Unidos com acordo climático de Paris, do qual Trump o retirou. Neste contexto, o Brasil tem sido visto como uma espécie de vilão ambiental, que pouco age para impedir desmatamentos ou incêndios na Amazônia e no Pantanal. Ao contrário, enfraquece os mecanismos de fiscalização e de punição aos responsáveis pelos crimes.
Dois dos diplomatas que acompanharam o grupo na viagem à Amazônia relataram ao EL PAÍS que parece haver dois governos distintos: o dos discursos radicais de Bolsonaro e de seu chanceler Ernesto Araújo e o de Mourão, que busca constante aproximação. “O diálogo [com Mourão] flui bem, mas na prática não vemos nada muito efetivo ocorrendo”, disse um deles à reportagem.
E, mesmo sendo desautorizado pelo presidente, o vice segue o defendendo. Nesta quinta-feira, disse a jornalistas que Bolsonaro usou uma “figura de retórica” ao usar o termo pólvora. O próprio Bolsonaro relatou a interlocutores em conversas reservadas, que “exagerou”, mas não se desculpou ou se explicou publicamente.
Desconforto
Para o cientista político da consultoria Dharma, Creomar de Souza, há uma espécie de desconforto simbólico para Bolsonaro, que não consegue sustentar a política externa conservadora. “As declarações do presidente têm mais impacto para público interno do que sobre a política externa como um todo”, disse. Mas até entre seus apoiadores, Bolsonaro sofreu críticas. Em três grupos do WhatsApp que são monitorados pela reportagem houve quem reclamasse da fala do presidente sobre usar a pólvora para enfrentar os EUA. Após apresentar um meme em que, meia hora depois de iniciar um confronto bélico, o Brasil já era rebatizado de “South Hawaii”, membros do grupo disseram que o presidente deveria estar “surtando” para confrontar os americanos ou que ele deveria “ficar calado para não dar munição à esquerda”, que lhe faz oposição.
Nesse contexto, para evitar embates, o presidente já foi aconselhado a trocar seus ministros de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A ideia era fazer uma sinalização positiva aos Estados Unidos, o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Até o momento, contudo, o presidente tem sustentado ambos e respaldado os atos de Araújo.
Na sua conta, o mandatário tenta creditar atos que não foram necessariamente seus, mas de burocratas que negociam há anos alguns tratados como o acordo Mercosul União Europeia ou o Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (ATEC, na sigla em inglês). Entre outras medidas, esse compromisso prevê a facilitação do comércio e o combate à corrupção. Ainda assim, seu andamento depende da boa vontade do presidente eleito nos EUA. “Como ele não é um acordo tarifário, você deixa vários setores da economia brasileira vulneráveis às políticas públicas que o novo Governo venha a decidir e que o próprio Trump utilizou, como quando ele sobretaxou o aço que comprava do Brasil”, disse Souza.
Bloqueio a Huawei
Ainda na seara econômica, outro ponto que está em jogo é a interferência dos EUA no leilão do 5G. Nesta semana, o Governo brasileiro endossou a iniciativa americana sobre o 5G e sinalizou que pode banir a empresa chinesa Huawei do leilão da banda larga de última geração que ocorrerá em 2021. O gesto ocorreu em na reunião entre o chanceler Araújo e o secretário para Crescimento Econômico, Energia e Meio Ambiente do Departamento de Estado dos EUA, Keith Krach. Na ocasião, o chanceler concordou em apoiar os princípios da Clean Network, que é uma iniciativa para frear as empresas chinesas do setor de telecomunicações, como a Huawei. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a demonstrar que aceitará esse veto.
Em conversas com investidores brasileiros, Krach relatou que, independentemente de quem governar os EUA, essa pressão sobre o 5G permanecerá. Segundo ele relatou, esse é um tema bipartidário em uma briga geopolítica entre as duas maiores potências mundiais.
Para o presidente da Federação dos Interestadual dos Trabalhadores e Pesquisadores em Serviços de Telecomunicações, João de Moura Neto, falta visão estratégica ao Brasil ao se aliar automaticamente nessa pauta aos Estados Unidos. “É ignorar que a maior parte dos equipamentos de comunicações no Brasil hoje já é da Huawei. O que farão com eles?”, questionou. Na visão de Neto, há o risco de haver uma demissão em massa de trabalhadores e aumentar os preços dos equipamentos em até cinco vezes, como ocorreu em alguns Estados americanos que viram reduzir a quantidade de fornecedores.
O leilão, contudo, deverá ocorrer apenas no segundo semestre do ano que vem. Até lá, Bolsonaro irá tatear o território para saber se segue esse alinhamento com os americanos ou se radicaliza de vez a estratégia, dando espaço para se tornar, de fato, um pária internacional.
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