Os atentados em Paris e o crime ambiental em Mariana não são hierarquizáveis; o problema consiste em minimizar uma das tragédias por determinadas conveniências
De Paris ao Rio Doce: do horror político ao horror econômico
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho), do Blog do Castilho
Muita gente no Brasil está falando sobre os atentados em Paris, com mais de cem mortos, em comparação com a maior tragédia socioambiental brasileira do século XXI, o rompimento de barragens em Mariana (MG), com mais de 20 mortos e desaparecidos e uma destruição incalculável do ambiente, entre espécies extintas, impacto por décadas e ameaça direta à sobrevivência de um rio importante, o Rio Doce.
Existe a percepção de que a tragédia francesa abafará a tragédia brasileira. E a verbalização dessa percepção gera um ruído: como se quem dissesse isso fosse indiferente a cada francês morto e ao horror específico dos massacres em Paris, à covardia e ao fanatismo. Com isso se cria um falso problema. Ou, no mínimo, secundário: a nossa suposta insensibilidade. A dos cidadãos, a dos internautas.
E não, não somos nós os culpados. Existem dois horrores simultâneos acontecendo. Um deles é político, mais precisamente geopolítico: o horror que desemboca no massacre de Paris, nos atentados de 11 de setembro, no atentado ao Charles Hebdo, movido também a profundos abismos religiosos e culturais, potencializado por ações tresloucadas e cinicamente moralizantes do Ocidente. O outro horror é econômico.
“Horror Econômico” é o nome de um livro da escritora francesa Viviane Forrester, que dissecava com qualidade literária, em 1996, a lógica abominável de nosso sistema econômico, e as farsas discursivas utilizadas para perpetuá-lo. Era um libelo humanista em defesa dos trabalhadores, da vida e do ambiente, e sobre a planejada cegueira coletiva em relação às desigualdades inerentes ao nosso sistema de produção.
O economista francês Jacques Généreux respondeu no ano seguinte que o horror era político, e não econômico. E deu esse nome ao livro: “Horror Político”. Tanto pela estratégia de poder dos governos (em parceria com as grandes corporações) como pela aceitação dos cidadãos, pelo silêncio, pela incapacidade de reação, de se fazer outras escolhas.
HORRORES SIMULTÂNEOS
Os horrores coexistem e são simultâneos, muitas vezes convergentes. Mas há diferenças. Dos arredores da Torre Eiffel (feita de ferro) ao ferro extraído irresponsavelmente em Mariana há uma hierarquia de fatores, e não de dor, uma gama de responsabilidades específicas. O Estado Islâmico e a Vale não representam o mesmo campo ideológico; nem a mesma religião; nem têm os bolsos recheados com a mesma intensidade. Um aposta no desespero como recurso político; a outra aposta no amortecimento.
O Estado Islâmico é um inimigo conveniente para o sistema. O que não o exime de seus horrores. A Samarco, não. A Samarco é o próprio sistema. A Samarco é a brasileira Vale e a anglo-australiana Billinton. A Vale tem capital japonês, tem dedo do Estado brasileiro, tem fundo de pensão, tem o Bradesco. A Vale é o sistema que se perpetua diariamente nas páginas da imprensa – tanto as jornalísticas como as publicitárias.
E, portanto, essa mesma imprensa cantará com mais força o horror distante, com o inimigo consensual. Não há possibilidade de “acidente” em um massacre movido a metralhadoras, e fica decretada a impossibilidade de contextualização (nunca de justificação), de tentarmos entender o que acontece, por que acontece esse tipo de barbárie e qual o papel dos que não se julgam bárbaros na perpetuação dessa violência.
No Brasil, define-se uma lógica contrária. A morte de milhões de animais, a destruição de um povoado inteiro (que não mais existirá), as cinco crianças mortas ou desaparecidas e a incrível sequência de impactos ambientais (como a falta d’água em municípios inteiros de Minas) são tratadas como se fossem um mero detalhe, “desculpa aí, foi mal, mas nós geramos empregos na região e somos muito bem intencionados, nós somos o desenvolvimento”.
NÃO FOI UM ACIDENTE
O papel da imprensa graúda é o de reforçar a imagem de um “acidente” – como se esse acidente não fosse inerente a esse sistema econômico genocida. Não fosse também o horror. Alguns profissionais nos grandes jornais resistem e produzem notícias importantes. Mas o problema é o dimensionamento. Não haverá avalanche noticiosa sobre o desastre ambiental como o volume de exclamações sobre Paris. O efeito geral, a médio prazo, é o de minimização.
Um dos problemas desse noticiário é que ele só reporta os espasmos dos conflitos políticos e econômicos. Só as erupções. E não o rio diário de impactos sociais e ambientais. Precisaríamos criar uma cultura de acompanhar o sistema político e o sistema econômico de forma mais orgânica, para que não apenas enxuguemos gelo midiático a cada tragédia. E entendamos melhor o que leva a tudo isso. Sempre questionando o poder – e não as vítimas.
O mundo não está dividido entre “os loucos do Estado Islâmico” e “as necessárias empresas geradoras de emprego”. Que se multipliquem as nuances e os adjetivos. Sem ilusão de que nossa sociedade e nosso modo de vida seja superior. Nós também temos (e no poder) nossos fanáticos, nossos obsessivo-compulsivos e nossos psicopatas. Basta de naturalizar um modelo violento de apropriação dos recursos naturais sem que os trabalhadores e a sociedade possam dizer: “Não. Desengatilhem essa metralhadora”.
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