domingo, 21 de setembro de 2014

Os deuses do mercado e a intolerância religiosa: fundamentalisticamente, irmãos siameses




Jornal GGN - "É besteira pensar que o sonho de banqueiros e neopentecostais não seja dominar o mundo", disse Sebastião Nunes, em sua coluna "Cuidado! Dois deuses sinistros te amam". 

O articulista explica a articulação religiosa dos neopentecostais com a política, para afirmar a criatura ambígua do deus de Marina Silva.

Enviado por Romério Rômulo
De OTempo
Por Sebastião Nunes

Quando eu tinha 13 ou 14 anos, apareceu na minha terra um pastor protestante chamado José Bonifácio. Alugou uma casa modesta, ajeitou um templo na sala da frente e, aos poucos, reuniu número razoável de fiéis. Meu pai, que acreditava em Deus mas desconfiava de padres, tornou-se amigo dele. Várias vezes fomos pescar juntos, palmilhando longamente os cinco quilômetros até os riachos mais próximos. Bonifácio nunca me falou de religião. Talvez por isso, porque soubesse reconhecer limites, ganhou a amizade de meu pai, que não era fácil de conquistar. Não foi à toa que padre Agostinho o apelidou de “Levizinho do olho de cobra” ao lhe pedir donativo, uma única vez, para os cofres da matriz. Donativo recusado, nunca mais repetiu a tentativa.

Na mesma época, um colega de escola teve brilhante ideia: fabricar toscas notas de 100 cruzeiros com tesoura e cola, usando-as para compras no mercado municipal, aos sábados, dia de feira. Muito roceiro ingênuo caiu no conto, que fazia Fulano (prefiro não revelar o nome) dar pulos de alegria. Anos depois ele se tornou banqueiro. Nada de admirar, já que a vocação se escancarava ali, na falsificação das notas e na falta de escrúpulos para ludibriar camponeses simplórios.

TOTALITARISMO

É besteira pensar que o sonho de banqueiros e neopentecostais não seja dominar o mundo. Em certa medida, os banqueiros já o dominam. O neopentecostalismo ainda não chegou lá, mas vai comendo pelas beiradas, tipo mineiro enfrentando uma pratada de mingau quente: soprando e engolindo.

Favor notar que não estou confundindo os diversos ramos do protestantismo com o NP, ou mesmo com o pentecostalismo tradicional. Tive e tenho amigos protestantes, principalmente batistas, que respeito e admiro. Me refiro aqui à chamada Terceira Onda do Pentecostalismo, aquela que morde e assopra ao mesmo tempo.

Claro que uma coisa é querer e outra, conseguir. Numa crônica recente citei uma afirmação de Darwin, segundo a qual todas as espécies vivas estão aptas a dominar o planeta, só não o conseguindo pela oposição de outras espécies. É a mesma guerra que se trava, desde sempre, entre os vários extratos da sociedade.

TIRA ESSE POBRE DAQUI!

A grande sacada do NP foi transformar pobreza em “prova” da falta de fé. Segundo seus “profetas da prosperidade”, a marca da fé plena está em ser bem-sucedido, buscando a todo custo a prosperidade material. É lógico que tal ideia bate de frente com os postulados cristãos originais, mas quem se importa com isso?

É a sopa no mel. Claro que esses princípios já eram evidentes em Lutero, mas nunca foram tão claramente assumidos. Os templos faraônicos que se constroem hoje são a contraposição às catedrais católicas da Idade Média: ostentação como afirmação de riqueza e poder. Mas – pergunto – e a pobreza, onde ficam os pobres?

Os pobres param na contribuição de 10% (ou mais, dependendo dos argumentos) de seus salários miseráveis para que os donos dos templos triunfem. Simples assim.

EVANGELISTA DO ÓDIO

Conforme Kiko Nogueira, no “Diário do Centro do Mundo”, “o pastor Silas Malafaia segue e dissemina dois evangelhos: o do ódio e o da tagarelice. (...) Entre 3 de março e 3 de setembro, ele teria feito apenas 59 menções a Jesus Cristo e 87 a homossexuais. (....) Ele, juntamente com colegas como Marco Feliciano e outros pastores e bispos, sonha com um Brasil livre de abominações como gays, abortistas, ‘umbandistas’ etc., e que tenha a interpretação literal da Bíblia como constituição”.

EVANGELISTA FUNDAMENTALISTA

Muito antes de recuar de sua posição contra os transgênicos, em clara tentativa de atrair os votos do agronegócio para o seu nome, a então senadora Marina Silva fez o seguinte discurso em 2002 (recortado do blog de Mário Magalhães):

“Em Gênesis 21,33, o próprio patriarca Abraão, com mais de 80 anos, resolve plantar um bosque. Quem planta um bosque com quase [SIC]100 anos está pensando nas gerações futuras, que têm direito a um ambiente saudável. (...) No Êxodo 22,6, há determinação explícita no sentido de que quando alguém atear fogo a uma floresta ou bosque deverá pagar aquilo que queimou. (...) Com relação aos transgênicos, o livro Levítico 22,9 expressa claramente que não se deve profanar a semente da vinha e que cada uma deve ser pura segundo a sua espécie.”

Não é de enlouquecer? Imagine Marina, caso eleita presidente, justificando cada projeto de lei com argumentos extraídos da Bíblia. Morreremos de tédio ou retornaremos à ignorância primordial.

CRIACIONISMO

O prefeito de Nova Odessa (SP), Benjamin Bill Vieira de Souza, vetou lei que impunha a leitura diária de um trecho da Bíblia nas escolas municipais aos alunos do 10 ao 50 anos, atingindo 4.000 alunos de 12 estabelecimentos. Na defesa de seu projeto, o vereador Vladimir Antônio da Fonseca, evangélico, argumentou que a leitura da Bíblia nas escolas não é ato religioso. Sua intenção é a de “incentivar uma reflexão sobre os bons hábitos”. (Citado emwww.paulolopes.com.br)

Nos Estados Unidos, informa a “Folha de S. Paulo”, 58% dos republicanos e 41% dos democratas afirmam acreditar no Criacionismo, ou seja, que Deus criou os humanos, como eles são hoje, há menos de 10.000 anos. Também nos EUA, e segundo a revista “Exame”, o governo gasta US$ 1 bilhão por ano para ensinar o Criacionismo nas escolas, valor maior do que o PIB de 23 países.

O deus de Marina Silva e do NP é uma criatura ambígua, que acende uma vela para o deus do mercado financeiro e outra para o deus da ignorância científica e cultural como arma de dominação coletiva e imposição do obscurantismo.

Que Deus (com maiúscula) nos livre e guarde dessa horrível possibilidade.

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