Desde fins da
da década de 1990, parte da historiografia brasileira sublinha que o
(equivocado) processo de Anistia cunhou a (errônea) visão de que vivemos
envoltos em uma tradição de valores democráticos. A partir das lutas pela
Anistia, como sublinha Daniel Aarão Reis, “libera-se” a sociedade brasileira de
“repudiar a ditadura, reincorporando sua margem esquerda e reconfortando-se na
ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes
históricas”. Nesse momento, plasmou-se a imagem de que a sociedade brasileira
viveu a ditadura como um hiato, um instante a ser expurgado. Confrontando-nos à
tal memória inventada, há no período republicano longos momentos de exceção – como nos
referimos aos regimes ditatoriais.
Se tais
premissas correspondessem aos fatos, restaria explicar: por que houve apenas
restritos episódios de resistência vinculados igualmente a pequenos grupos? Por
que se permitiu aprovar uma Anistia recíproca, que mesmo nestes 50 anos após o
golpe civil-militar, ainda é tema espinhoso de revisão?
A luta contra
o arbítrio, de forma armada ou não, definitivamente não caiu nas graças do povo
deste berço esplêndido. E, certamente, os meios de comunicação de massa – a
grande imprensa e posteriormente, a TV – têm um papel preponderante nase scolhas sociais implantadas.
São clássicos
os editoriais do Correio da Manhã nas
vésperas do 1º de Abril de 1964, clamando por “Basta” e “Fora” a Jango.
Igualmente, é emblemática a noção de que este jornal, ao realizar um
“mea-culpa” e se colocar em oposição ao novo regime, foi punido com
perseguições que levaram a sua falência. Esquecem-se, contudo, os amplos
problemas de gerenciamento vividos por Niomar Moniz Sodré.
Ícones de
resistência são lembrados, afirmados, expostos e sublinhados maciçamente para
ratificar a tradição democrática brasileira, como: a meteorologia para o
14/12/1968, no Jornal do Brasil;
as receitas de bolo do Jornal da
Tarde; os poemas de Camões no Estadão;
os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos; etc., que
definiriam a grande imprensa brasileira como resistente ao golpe e,
posteriormente, ao arbítrio. Mesmo com todo este esforço, o processo ditatorial perdurou por mais de duas décadas.
Meio século
depois e com inúmeros textos publicados sobre a mais recente ditadura
brasileira, poder-se-ia ressaltar que nunca a grande imprensa brasileira
estampou na primeira página dos periódicos um aviso claro afirmando: “Este
jornal está sob censura”. As estratégias acima apontadas e outras, que
frequentemente voltam à tona para reforçar a ação resistente, contavam com a
capacidade do público leitor em decifrar pistas.
O jornalista
Oliveiros Ferreira, que por décadas trabalhou no Estadão, narrou as ligações recebidas pela redação indagando
que a receita de bolo na primeira página do Jornal da Tarde estava errada. O bolo solava. Ou, como definiu
Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, os poemas de Camões foram ali
uma concessão. Certamente a censura federal apostava que o leitor não
entenderia o seu porquê, ou se tranquilizaria na (efêmera) ilusão que mesmo no
arbítrio lhe eram permitidos lampejos de resistência, os quais, efetivamente
nada alteravam.
Algo
semelhante, contudo, não foi autorizado à (antiga) Veja, que, durante a “distensão” do governo Geisel, substitui as
matérias censuradas por imagens de diabinhos, já que não se podiam publicar
espaços em branco. Advertida, teve que parar, pois certamente o leitor de Veja à época entenderia o recado.
Certamente como compreendeu a mensagem da revista quando da morte de Vlado,
numa nota pequena de desculpas por não poder nada mais expressar.
Os inúmeros jornalistas perseguidos,
demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto
atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes,
como demonstram os processos que arrolam os seus nomes. Da mesma forma,
existiram imposições governamentais de expurgos nas redações. Tais limpezas ocorreram logo depois do
golpe e perduraram até e inclusive no governo Geisel, que impunha a bandeira do
fim da censura. Muitos jornalistas/militantes poderiam ser citados como vítimas
destas ações, já que, como pontuava lúcida e ferinamente Cláudio Abramo, “nas
redações não há lugar para lideranças. Os donos dos jornais não sabem lidar com
jornalistas influentes que, muitas vezes, se chocam com as diretrizes do
comando. O jornalista tem ali uma função, mas ‘ficou forte, eles eliminam’.”
Os meios de
comunicação são empresas que buscam o lucro, vendendo a visão particular sobre
um fato e, como Abramo por vezes demarcou, um “equívoco que a esquerda geralmente
comete é o de que, no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior
das informações. Mas não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado
não é capaz de exercer o controle, e sim a classe dominante, os donos. O Estado
influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos e não do
Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do
jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos
jornalistas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo
interesse em combater a censura”.
Existiram
pouco mais de 220 censores federais, muitos deles com o diploma de jornalista –
sendo que o primeiro concurso público para o cargo ocorreu em 1974, quando
Geisel prometia o fim da censura. Estas duas centenas de pessoas atuavam
reprimindo: cinema, TV, rádio, teatro, jornais, revistas, etc., entre 1964 e
1988, em todo o território nacional. Para que as expectativas governamentais
dessem certo, os donos das empresas de comunicação tinham de colaborar – e não
resistir.
Inúmeros
arquétipos podem corroborar tal ideia, até porque a autocensura não é
desconhecida das redações, e não se iniciou no pós-1964 no Brasil. No Jornal do Brasil, por exemplo,
editou-se, em 29/12/1969, como me cedeu o seu exemplar o secretário de Redação,
José Silveira, uma circular interna de cinco páginas, elaborada pelo diretor do
jornal, José Sette Câmara, para o editor chefe, Alberto Dines, denominada
“Instruções para o controle de qualidade e problemas políticos”, criada com o
objetivo de “instituir na equipe um (...) Controle de Qualidade (...) sob o
ponto de vista político”.
Estabelecida
dias antes do Decreto-Lei 1.077, de 26/01/1970, que legalizou a censura prévia,
e um ano após o AI-5, a diretriz de Sette Câmara pontuava que “não se trata de
autocensura, de vez que não há normas governamentais que limitem o exercício da
liberdade de expressão, ou que tornem proibitiva a publicação de determinados
assuntos. Em teoria há plena liberdade de expressão. Mas na prática o exercício
dessa liberdade tem que ser pautado pelo bom senso e pela prudência”, já que “a
posição do JB ao proferir
que este não é a favor nem contra, (...) não é jornal de situação, nem de
oposição. O JB luta pela
restauração da plenitude do regime democrático no Brasil, pelo retorno do
estado de direito. (...) Enquanto estiver em vigor o regime de exceção, temos
que usar todos os nossos recursos de inteligência para defender a linha
democrática sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco ao Governo. (…)
O JB teve uma parte
importante na Revolução de 1964 e continua fiel ao ideário que então pregou. Se
alguém mudou foram os líderes da Revolução. [Nesse sentido, o JB deverá] sempre optar pela
suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal.
Para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso,
antes de mais nada, sobreviver”. Sette Câmara termina decretando que, “na
dúvida, a decisão deve ser pelo lápis vermelho”.
Em meados da
década de 1970, foi a vez da Rede Globo – uma concessão pública – formalmente
instituir o “Padrão Globo de Qualidade”, ao contratar José Leite Ottati –
ex-funcionário do Departamento de Polícia Federal – para realizar a censura
interna e evitar prejuízos advindos da proibição de telenovelas. Segundo Walter
Clark, a primeira interdição da censura na Globo ocorreu em 1976, na
novela Despedida de casado. Para
blindar a emissora, o “Padrão Globo de Qualidade” receberia o auxílio de
pesquisas de opinião feitas por Homero Icaza Sanchez – o “Bruxo” –, encarregado
de identificar as motivações da audiência.
Definindo toda
essa tática, Clark explicou que, “(...) enquanto a Censura agia para subjugar e
controlar a arte e a cultura do país, perseguindo a inteligência, nós continuávamos
trabalhando na Globo para fazer uma televisão com a melhor qualidade possível.”
Organizada a autocensura, o “Padrão Globo de Qualidade” teve acrescidos outros
ingredientes para o seu sucesso. Em sintonia com a imagem, divulgada pelo
governo autoritário, de um “Brasil Grande”, formulou-se também
uma “assessoria militar” ou uma “assessoria especial” composta por Edgardo
Manoel Ericsen e pelo coronel Paiva Chaves. Segundo Clark, “ambos foram
contratados com a função de fazer a ponte entre a emissora e o regime. Tinham
boas relações e podiam quebrar os galhos, quando surgissem problemas na área de
segurança”.
Esquema
semelhante a este foi adotado pela Editora Abril, exposto em uma
correspondência de Waldemar de Souza – funcionário da Abril e conhecido como
“professor” –, a Edgardo de Silvio Faria – advogado do grupo e genro do sócio
minoritário Gordino Rossi –, na qual comunicava o contato tanto com o chefe do
Serviço de Censura em São Paulo – o censor de carreira e jornalista José Vieira
Madeira –, como com o diretor do Departamento de Censura de Diversões Públicas
– Rogério Nunes – para facilitar a aprovação das revistas e a chegada às bancas
sem cortes.
Estes vínculos
do “professor” com membros do governo são anteriores a esse período e justificam
seu potencial de negociação. Desde novembro de 1971 o relações-públicas do DPF,
João Madeira – irmão de José Vieira Madeira –, expediu uma carta ao
diretor-geral da Editora Abril na qual ratificava o convite do general Nilo
Caneppa, na época diretor do DPF, a Waldemar de Souza para que fosse a Brasília
ministrar um curso especial aos censores. Em maio de 1972, o próprio general
Caneppa enviou a Vitor Civita, diretor-geral da Abril, uma correspondência de
agradecimento pelas palestras sobre censura de filmes, que Waldemar de Souza
proferiu na Academia Nacional de Polícia. Para continuar colaborando, no ano
seguinte, Souza formulou uma brochura intitulada “Segurança Nacional: o que os
cineastas franceses esquerdistas já realizaram em países da América do Sul e
pretendem repetir aqui no Brasil”. E, em 1974, com o general Antonio Bandeira
no comando do DPF, Waldemar de Souza, em caráter confidencial, expôs o porquê
de censurar Kung Fu e sua mensagem que “infiltra a revolta na juventude”.
Por fim, mas não
menos importante, há a atuação do Grupo Folha da Manhã, proprietário da Folha de S. Paulo e da Folha da Tarde, entre outros, no
período. Em dezessete anos, entre 19/10/1967 e 7/5/1984, o país foi dos “anos
de chumbo” ao processo das Diretas
Já, e a Folha da Tarde vivenciou
uma redação tanto de esquerda engajada – até o assassinato de Marighella –,
como, a partir daí, de partidários e colaboradores do autoritarismo.
Durante uma
década e meia sob o comando de policiais, o jornal adquiriu um apelido: o de
“maior tiragem”, já que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram
igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do
Estado de São Paulo. A partir deste perfil de funcionários, a Folha da Tarde carrega a acusação
de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como
o Diário Oficial da Oban.
Isto explica o
porquê de os carros do Grupo Folha da Manhã serem incendiados por militantes de
esquerda, nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971. A ação era uma represália, já que o
grupo era acusado de ceder automóveis ao Doi-Codi que, com esse disfarce,
montava emboscadas, prendendo ativistas.
Nesse momento
de ponderações sobre os 50 anos do golpe, recordo-me que, quando dos 30 anos do
AI-5, o jornalista Jânio de Freitas publicou na Folha de S. Paulo uma advertência não cumprida por seus pares,
inclusive agora, nas reflexões dos periódicos aos 50 anos do golpe
civil-militar de 1964. Corroborando com tudo o que foi exposto aqui, Freitas
lembrava em 1998 que “a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual,
mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. Naqueles
tempos, e desde 64, o Jornal do
Brasil [...] foi o grande propagandista das políticas do regime, das
figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime.
(...) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria,
já que se tornar herói antiditadura tem dependido só de se passar por tal”.
O jornalista
ao finalizar, adverte, e peço-lhe licença para me utilizar aqui, de suas
conclusões. Trocarei 30 por 50 anos, AI-5 por golpe civil-militar de 1964, e o
que estiver entre colchetes é de minha autoria. Assim: precisamos aproveitar os
50 anos do golpe civil-militar de 1964 para mostrar mais como foi o regime que
[se instaurou a partir dali], eis uma boa iniciativa. Mas não precisava [como
fizeram muitas narrativas recentes] reproduzir também os hábitos de deformação
costumeiros naqueles tempos.
* Beatriz Kushnir é historiadora,
doutora em História pela Unicamp, autora, entre outros de, Cães de guarda:
jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2012)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.