domingo, 23 de dezembro de 2012

Augusto dos Anjos: Vozes de uma Sombra



Segue a transcrição de um poema em tudo idêntico ao estilo de Augusto dos Anjos, escrito, quem diria, depois de morto, sob a psicografia de Francisco Cândido Xavier e parte do livro Parnaso de Além-Túmulo. Veja-se a profundidade do texto, falando da evolução da alma desde ignotas eras até o augusto desconhecido do futuro...



VOZES  DE  UMA  SOMBRA

                                                 I   

Donde venho? De era remotíssimas
Das substâncias elementaríssimas
Emergindo das cósmicas matérias. 
Venho dos invisíveis protozoários,
Da confusão dos seres embrionários,
Das células primevas, das bactérias. 

Venho da fonte eterna das origens,
No turbilhão de todas as vertigens,
Em mil transmutações, fundas e enormes;
Do silêncio da mônada invisível,
Do tetro e fundo abismo, negro e horrível,
Vitalizando corpos multiformes. 

Sei que evolvi e sei que sou oriundo
Do trabalho telúrico do mundo,
Da Terra no vultoso e imenso abdômen;
Sofri, desde as intensas torpitudes
Das larvas microscópicas e rudes,
A infinita desgraça de ser homem. 

Na Terra, apenas fui terrível presa,
Simbiose da dor e da tristeza,
Durante penosíssimos minutos;
A dor, essa tirânica incendiária,
Abatia-me a vida solitária
Como se eu fora bruto entre os mais brutos. 

Depois, voltei desse laboratório,
Onde me revolvi como infusório,
Como animálculo medonho, obscuro,
Te atingir a evolução dos seres
Conscientes de todos os deveres,
Descortinando as luzes do futuro. 

E vejo os meus incógnitos problemas
Iguais a horrendos e fatais dilemas,
Enigmas insolúveis e profundos;
Sombra egressa de lousa dura e fria,
Grita ao mundo o meu grito que se alia
A todos os anseios gemebundos: —

“Homem! Por mais que gastes teus fosfatos
Não saberás, analisando os fatos,
Inda que desintegres energias,
A razão do completo e do incompleto,
Como é que em homem se transforma o feto
Entre os duzentos e setenta dias. 

A flor da laranjeira, a asa do inseto,
Um estafermo e um Tales de Mileto,
Como existiram, não perceberás;
E nem compreenderás como se opera
A mutação do inverno em primavera,
E a transubstanciação da guerra em paz;

Como vivem o novo e obsoleto,
O ângulo obtuso e o ângulo reto
Dentro das linhas da Geometria;
A luz de Miguel Ângelo nas artes,
E o espírito profundo de Descartes
No eterno estudo da Filosofia. 

Porque existem as crianças e os macróbios
Nas coletividades dos micróbios
Que fazem a vida enferma e a vida sã
Os antigos remédios alopatas
E as modernas dosagens homeopáticas
Produto da experiência de Hahnemann. 

A psíquico-análise freudiana
Tentando aprofundar a alma humana
Com a mais requintadíssima vaidade,
E as teorias do Espiritualismo
Enchendo os homens todos de otimismo,
Mostrando as luzes da imortalidade. 

Como vive o canário junto ao corvo
O céu iluminado, o inverno torvo
Nos absconsos refolhos da consciência;
O laconismo e a prolixidade
A atividade e a inatividade,
A noite da ignorância e o sol da Ciência. 

As epidermes e as aponevroses,
As grandes atonias e as nevroses,
As atrações e as grandes repulsões,
Que reunindo os átomos no solo
Tecem a evolução de pólo e pólo,
Em prodigiosas manifestações;

Como os degenerados blastodermas
Criam a descendência dos palermas
No lupanar das pobres meretrizes,
Junto dos palacetes higiênicos
Onde entre gozos fúlgidos e edênicos
Cresce a alegre progênie dos felizes. 

Os lombricóides mínimos, os vermes,
Em contraposição com os paquidermes,
Assombrosas antíteses no mundo;
É o gigante e germe originário,
Os milhões de corpúsculos do ovário,
Onde há somente um óvulo fecundo. 

A alma pura do Cristo e a de Tibério,
Vaso de carne podre, o cemitério,
E o jardim rescendendo a perfumes;
O doloroso e tetro cataclismo
Da beleza louçã do organismo,
Repleto de dejetos e de estrumes. 

As coisas sustanciais e as coisas ocas,
As idéias conexas e as loucas,
A teoria cristã e Augusto Comte;
E o desconhecido e o devassado,
E o que é ilimitado e o limitado
Na óptica ilusória do horizonte. 

Os terrenos povoados e o deserto,
Aquilo que está longe e o que está perto;
O que não tem sinal e o que tem marca;
A funda simpatia e a antipatia,
As atrofias e a hipertrofia,
Como as tuberculoses e a anasarca. 

Os fenômenos todos geológicos,
Psíquicos, científicos, sociológicos,
Que inspiram pavor e inspiram medo;
Homem! Por mais que a idéia tua gastes,
Na solução de todos os contrastes,
Não saberás o cósmico segredo. 

E apesar da teoria abstrusa
Dessa ciência inicial, confusa,
A que se acolhem míseros ateus,
Caminharás lutando além da cova,
Para a Vida que eterna se renova,
Buscando as perfeições do Amor em Deus.”

À luz dessa dourada ignorância,
E com certezas lógicas, numéricas,
Notava as pestilências cadavéricas
Iguais à carne angélica da infância,

A sutilez do arminho que se veste,
A coroa aromática das flores,
Irmanadas aos pútridos fedores
De emanações pestíferas da peste!

Extravagância e excesso jamais visto,
De idéia que esteriliza e desensina,
Loucura que igualava Messalina
À pureza lirial da Mãe do Cristo.

Assim vivi na presunção que via,
Dos cumes da Ciência e do saber,
Os princípios genéricos do ser,
No pantanal da lama em que eu vivia.

Vi, porém, a matéria apodrecer,
E na individualidade indivisível
Ouvi a voz esplêndida e terrível
Da luz, na luz etérica a dizer:

II

“Louco, que emerges de apodrecimentos,
Alma pobre, esquelético fantasma
Que gastaste a energia do teu plasma
Em combates estéreis, famulentos...

Em teus dias inúteis, foste apenas
Um corvo ou sanguessuga de defuntos,
Vendo somente a cárie dos conjuntos,
Entre as sombras das lágrimas terrenas.

Vias os teus iguais, iguais aos odres
Onde se guarda o fragmento imundo,
De todo o esterco que apavora o mundo
E os tóxicos letais dos corpos podres.

E tanto viste os corpos e as matérias
No esterquilínio generalizados,
E os instintos hidrófobos, danados,
Em meio de excrescências e misérias,

Que corrompeste a íntima saúde
Da tua alma cegada de amargores,
Que na Terra não viu os esplendores
E as ignívomas luzes da virtude.

Olhos cegos às chamas da bondade
De Deus e à divinal misericórdia,
Que espalha o bem e as auras da concórdia
No coração de toda a Humanidade.

Descansa, agora, vibrião das ruínas,
Esquece o verme, as carnes, os estrumes,
Retempera-te em meio dos perfumes
Cantando a luz das amplidões divinas.”


III

Calou-se a voz. E sufocando gritos,
Filhos do pranto que me espedaçava,
Reconheci que a vida continuava
Infinita, em eternos infinitos!

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