Extrema direita e servidão voluntária? Notas iniciais
Servidão Voluntária?
O mais inquietante no cenário atual do avanço transnacional da extrema direita é o método empregado para chegar ao poder. Não se trata da oratória bélica na ponta de fuzis ou de argumentos intolerantes apoiados por tanques nas ruas. Pelo contrário, numa atualização involuntária de Étienne de La Boétie, no universo digital parece surgir uma forma nova de servidão voluntária. Escrito em 1548, quando o autor contava apenas com 18 anos, o Discurso sobre a servidão voluntária foi motivado pela derrota do povo francês, que foi obrigado a aceitar novos impostos, considerados injustos. A questão se impôs: se o povo é sempre muito mais numeroso do que eventuais tiranos, por que a servidão é possível? Não bastaria o mero paralelo numérico para desfavorecer governos autoritários? No entanto, a história demonstra exatamente o oposto e os exemplos de tirania se multiplicam em épocas distantes e em culturas as mais distintas entre si. Haveria então causas estruturais para dar conta dessa recorrência? La Boétie identificou três motivos; concentro-me no terceiro, pois ele abre caminho para uma ponte inesperada entre o século XVI e os dias atuais.[1]
A passagem-colagem que proponho é longa, mas iluminadora, surpreendente mesmo:
Chego agora a um ponto que, na minha opinião, é a fonte principal e o segredo da dominação, o apoio e o fundamento de toda a tirania. (…)
(…) não são as armas que defendem um tirano, mas sempre (…) quatro ou cinco homens que o apóiam e que sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis (…).
Os seis têm a seu serviço seiscentos, que são corrompidos tanto quanto é o tirano. Desses seiscentos dependem seis mil (…).
Grande é o que vem depois. E quem quiser desenrolar o fio verá que, não seis mil, mas cem mil, e milhões se apegam ao tirano por essa corrente ininterrupta que o solda e prende.[2]
Esquema Ponzi muito avant la lettre, o tirano aciona o contágio mimético do poder pela promessa dos benefícios prometidos a seus cúmplices. Pirâmide autoritária que, se não vejo muito mal, recorda o modelo de monetização de um produto de nicho que domina as redes sociais: a radicalização. O alcance inédito proporcionado pelo universo digital dessa corrente ininterrupta é potencializado ao máximo pelas grandes plataformas que descobriram na retórica do ódio uma mercadoria que literalmente solda e prende centenas de milhões de pessoas ao redor do globo. A exploração do vício na dopamina barata da escalada aos extremos da violência simbólica – embora, nem sempre simbólica, registre-se – foi importada da economia digital para o terreno da política e seus efeitos são desastrosos para a ordem democrática mundial. Panorama sombrio que exige reformular ao cálculo do qual partimos. Ora, nessa cadeia de interesses os mais variados, “aqueles a quem a tirania parece proveitosa são quase tão numerosos quanto aqueles a quem a liberdade agradaria”.[3]
Os exemplos são legião.
Monetização como método
Donald J. Trump realizou a proeza de transformar sua derrota eleitoral em 2020 numa fonte nada desprezível de lucro: um pouco mais de 200 milhões de dólares em aproximadamente 60 dias![4] O artifício foi simplório: o presidente derrotado iniciou uma campanha de arrecadação de fundos para melhor contestar o resultado das urnas. No Brasil, em chave muito mais modesta, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro recebeu 17,2 milhões de reais em doações após seu insucesso eleitoral.[5] Na Argentina, em fevereiro de 2025, o presidente em exercício, Javier Milei, envolveu-se em negócio nebuloso no lançamento de uma criptomoeda, $LIBRA, que se revelou um perfeito esquema Ponzi. Isto é, um crime financeiro que estampa as digitais de um presidente, numa metáfora selvagem da “servidão voluntária” dos milhões de apoiadores da extrema direita no século XXI. Enquanto escrevo este livro, em Nova York iniciou-se um processo judicial que inclui o nome de Milei num caso de estelionato envolvendo a criptomoeda que ele promoveu em suas redes sociais.[6]
Em tal horizonte, que constrange pela expansão do contágio mimético, políticos como Viktor Orban, Donald J. Trump, Giorgia Meloni, Jair Messias Bolsonaro, Javier Milei, Marine Le Pen e Nayib Bukele aprenderam a conquistar corações e mentes, sobretudo das gerações mais jovens. Desse modo, vencem eleições livres e democráticas e, uma vez empossados, tornam-se arquitetos de uma engenharia institucional monotemática, cujo objetivo é a corrosão interna da democracia que os elegeu. Bem-sucedidos, perpetuam-se no cargo e, passo a passo, metamorfoseiam seus países em maldisfarçadas autocracias.
(Numa manhã, ao despertarmos de sonhos inquietantes, nos demos conta de que deixamos de viver numa democracia. E nem é preciso que tenhamos sido caluniados, pois o ritmo desse processo é definido por múltiplas metamorfoses.)
Metamorfose possível porque a extrema direita é um gigantesco esquema Ponzi tornado planetário graças à tecnologia digital.
Não nos enganemos: sem a regulação das big techs em 15 anos não restará democracia alguma no mundo.
[1] Os dois primeiros já não se relacionam com nossa circunstância histórica: “(…) a primeira razão pela qual os homens servem voluntariamente é o fato de terem nascido servos e sido criados como tais. A partir desta primeira razão, segue-se outra: que sob a tirania, as pessoas se tornam facilmente covardes e efeminadas”. Étienne de La Boétie. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de André G. Fernandes. Campinas: Vide Editorial, 2021, p. 47.
[2] Ibidem, p. 63-64.
[3] Ibidem, p. 65.
[4] Shane Golfmacher. “Trump Lost the 2020 Election. He Has Raised $207.5 Million Since”. Forbes India. 4/12/2020: https://www.forbesindia.com/article/global-news/trump-lost-the-2020-election-he-has-raised-2075-million-since/64691/1. Acesso em 4 de agosto de 2025.
[5] Teo Cury. “Bolsonaro aplicou R$ 17 milhões em investimentos de renda fixa enquanto recebia Pix de apoiadores, mostra Coaf”. CNN, 28/07/2032: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/jair-bolsonaro-recebeu-r-172-milhoes-via-pix-neste-ano-aponta-relatorio-do-coaf/. Acesso em 4 de agosto de 2025.
[6] Olivia Wagner. “Milei, acusado en EEUU por promocionar la criptomoneda $LIBRA: una estafa que dejó pérdidas millonarias”. América Económica. 31/07/2025: https://americaeconomica.com/noticia/argentina/milei-acusado-en-eeuu-por-promocionar-la-criptomoneda-libra-una-estafa-que-dejo-perdidas-millonarias.html. Acesso em 4 de agosto de 2025.

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