quinta-feira, 29 de maio de 2025

Gaza – quando as vítimas se tornam carrascos, por Dora Incontri

 

Milhares de pessoas se manifestam em inúmeros países de todos os continentes. Muitas são presas, porque proibidas de serem pró-Palestina


    Foto: reprodução

Gaza – quando as vítimas se tornam carrascos

por Dora Incontri, no Jornal GGN

Um casal de médicos palestinos, perdeu corbonizados, 9 dos seus 10 filhos, sendo um deles bebê, num bombardeio do governo israelense em Gaza. O menino sobrevivente teve sua mão amputada e o pai continua em estado grave, internado. A médica Alaa Al-Najjar encontrou os filhos irreconhecíveis, debaixo dos escombros de sua casa. Há alguma palavra que se possa dizer diante de um massacre desses?

Mais de 18 mil crianças já foram mortas em Gaza, desde outubro de 2023. A estimativa é de que haja 20 mil órfãs. As que estão vivas talvez preferissem não estar, no meio de uma cidade arrasada, sem água e sem comida – Israel não permite a entrada de ajuda humanitária. Conta-se que muitas foram amputadas sem anestesia.

E o mundo? Milhares de pessoas se manifestam em inúmeros países de todos os continentes. Muitas são presas, porque proibidas de serem pró-Palestina, como agora no governo Trump, como na Alemanha, com o seu terrível complexo de culpa diante os judeus. Mas, deve-se dizer: toda guerra no mundo rende dividendos polpudos para a indústria bélica. E os países não cortam relações com Israel por interesses econômicos.

“Não se pode chamar de “guerra”a algo que uma das partes – os palestinos em Gaza – não tem capacidade real de combate contra um dos exércitos mais poderosos e bem equipados do mundo.”  Como se chama então o que está ocorrendo em Gaza? Genocídio! Termo que um dos primeiros chefes de Estado a usar foi o nosso Lula. Essa frase acima é o clamor de um importante historiador israelita, Omer Bartov, justamente especializado no Holocausto judaico e em genocídios.

Bertov, como outros intelectuais judeus de várias partes do mundo, denuncia a instrumentalização do Holocausto promovido pela Alemanha nazista para escapar da justa condenação ao Holocausto palestino, que está sendo operacionalizado por quem? Justamente pelo governo de um povo que já sofreu um genocídio e uma tentativa de limpeza étnica! E há parte do povo israelense protestando essa matança em nome das crianças palestinas mortas.

Foi divulgada hoje uma carta no Brasil, assinada por intelectuais, artistas e políticos, pedindo a Lula que corte relações comerciais e diplomáticas com Israel. Já não é sem tempo. Aliás, já passou do tempo.

O que se vê no mundo é uma paralisia covarde e conivente diante desse massacre que já dura um ano e meio. Já praticamente não existe mais Gaza. Hospitais, escolas, universidades, casas da maioria da população foram postos abaixo. Crianças, mulheres, jornalistas, médicos, funcionários da ONU – mortos.

Para compensar e repatriar (depois de 2 mil anos) um povo que foi perseguido desde sempre no Ocidente, de Portugal a Rússia (controvérsias há se a Rússia é europeia, asiática ou uma síntese) e havia sido submetido ao regime nazista, criou-se o Estado de Israel. Mas essa fundação do Estado de Israel, promovida principalmente pelo Império Britânico, desconsiderou desde sempre o povo que lá habitava, há 2 mil anos: árabes, que consideravam essa terra como sua. Nunca foi reconhecido um Estado palestino e desde então, esses habitantes daquela que era sua terra, têm sido encurralados, perseguidos. E agora, estamos diante da “solução final” – termo usado pelos nazistas em relação aos judeus: que é o extermínio planejado e posto em ação para expulsar definitivamente os que sobraram da terra que era deles. Israel é um Estado expansionista, militarizado, que doutrina suas crianças desde cedo a um supremacismo (quem diz isso é uma professora israelense da Universidade Hebraica de Jerusalém, Nurit Peled-Elhanan).

E a mairoria dos governos do mundo se cala. Como fizeram com Hitler. Não se pode esquecer que houve empresas norteamericanas, houve eugenistas de vários países, houve um governo colaboracionista francês (de Vichy), que se juntaram aos alemães nazistas. Integralistas brasileiros eram pró-fascismo. Sempre houve os que ficaram do lado errado da história, seja por afinidade ideológica, por interesses comerciais, por covardia.

A diferença é que houve um surpresa trágica, generalizada, quando russos e aliados tomaram os campos de concentração nazistas. Suspeitava-se, mas não se sabia ao certo o que acontecia lá. Hoje não. Assistimos a um massacre genocida de um povo, ao vivo e a cores. Nosso silêncio e a paralisia e o retardamento dos governos em tomarem providências ficará como uma mancha histórica para toda a humanidade.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

UOL: Até o exército já processou o coronel Caçadini ligado a empresa para matar autoridades e por incitar golpe

 Do UOL:


Do ICL: Coronel do Exército acusado de formar e integrar grupo de execução armada exaltou ruptura militar e convocou golpe

 Etevaldo Caçadini defende que Exército deve ignorar regulamentos e ameaça a ordem democrática ao sugerir que militares rompam com a hierarquia

Do ICL Notícias:

POLÍTICA

Coronel acusado de integrar grupo armado exaltou ruptura militar e convocou golpe



Por Cleber Lourenço

O coronel reformado do Exército Etevaldo Luiz Caçadini de Vargas, investigado pela Polícia Federal como suspeito de integrar o grupo clandestino Comando C4, publicou ao menos dois vídeos nas redes sociais nos quais incita militares a violar a hierarquia e agir contra as instituições democráticas. Alvo da Operação Sisamnes, Caçadini aparece nas gravações fazendo apelos explícitos para que as Forças Armadas deixem de cumprir seus regulamentos e assumam uma postura de confronto com os demais Poderes da República.

O conteúdo dos vídeos, somado ao histórico do militar e seu envolvimento com grupos de extrema direita, está sendo analisado pelas autoridades como parte de uma possível estratégia de articulação golpista. Em uma das gravações, publicada no perfil “Profissão PM” no Facebook em 6 de março de 2023, o coronel Caçadini aparece se dirigindo a um público que ele identifica como “patriotas”.

No vídeo, ele diz que a hierarquia e a disciplina são valores importantes apenas “em tempos normais” e que, diante do que chama de anormalidade institucional, esses princípios podem ser deixados de lado.

“O bem maior da nação fala mais alto”, afirma o coronel, em tom de alerta e convocação. Na sequência, ele critica a postura das Forças Armadas após a eleição presidencial de 2022, alegando que o Exército teria sido omisso e se acovardado diante da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. “Os generais passaram pano”, diz, completando que há um descontentamento generalizado nas fileiras da ativa, com a estimativa de que “99,9999%” dos militares de patentes intermediárias estariam insatisfeitos.

Coronel teria participado de planos para 'eliminar' autoridades públicas

O segundo vídeo é uma entrevista concedida pelo coronel Caçadini ao canal Conexão Segurança, publicada em 9 de agosto de 2022, poucos meses antes das eleições. Nela, ele propõe três cenários possíveis para o futuro das Forças Armadas: uma fissura interna, uma fratura funcional ou um colapso total da hierarquia.

Com base em sua experiência como oficial, o coronel Caçadini diz que o comando intermediário — formado por coronéis e tenentes-coronéis — poderia assumir protagonismo e liderar uma reação interna diante do que ele considera uma crise institucional provocada pelo Judiciário e pelo Executivo.

Ele chega a comparar o momento com o surgimento do tenentismo na década de 1930 e sugere que novos levantes poderiam partir dessa mesma faixa de oficiais. A entrevista é recheada de expressões como “despertar da tropa” e “tomada de posição”, além de críticas severas à atuação do Supremo Tribunal Federal e ao sistema eleitoral.

As declarações são consideradas gravíssimas por investigadores da Polícia Federal, que veem nos vídeos um indício claro de tentativa de incitação à sublevação militar. O conteúdo passou a integrar o inquérito da Operação Sisamnes, que apura a existência de um grupo clandestino armado, conhecido como Comando C4.

De acordo com a investigação, o Comando C4 seria uma organização com estrutura paramilitar voltada a práticas como espionagem, atentados contra agentes públicos e tentativas de desestabilização institucional. A PF sustenta que o grupo operava com apoio financeiro e logístico de militares da reserva e civis influentes no meio da segurança privada, sob a fachada de empresas legalmente constituídas.

Coronel teria participado de planos para ‘eliminar’ autoridades públicas

Documentos apreendidos durante a operação mostram que Caçadini teria ajudado a financiar operações do Comando C4 e participado de reuniões em que se discutiram planos para eliminação de autoridades públicas, incluindo ministros do STF e parlamentares. Em um dos documentos, aparece uma tabela com valores atribuídos a diferentes tipos de alvos, incluindo “autoridades do Judiciário” e “lideranças políticas”.

As autoridades afirmam que coronel Caçadini atuava como articulador e elo entre os financiadores e os executores, fornecendo não apenas recursos, mas também conhecimento técnico e doutrinário extraído de sua formação militar e experiência em operações psicológicas. Além disso, ele é apontado como influente em círculos bolsonaristas e grupos extremistas da reserva militar, onde atuava como liderança informal.

A defesa do coronel reformado sustenta que suas declarações foram retiradas de contexto e que ele apenas exercia seu direito à liberdade de expressão. Os advogados alegam que os vídeos tratam de opiniões pessoais e que não há qualquer vínculo entre o conteúdo das gravações e ações criminosas efetivas. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, já se manifestou em sentido contrário.

O ministro relator do inquérito, Cristiano Zanin, apontou que há “fortes elementos indiciários” de que o coronel Caçadini participou de articulações voltadas à ruptura da ordem democrática. Diante disso, sua prisão preventiva foi mantida, e ele permanece custodiado em unidade militar em Cuiabá, onde aguarda os próximos desdobramentos do processo, que corre sob sigilo.

Enquanto as investigações avançam, cresce o interesse de parlamentares e setores da sociedade civil por esclarecimentos públicos sobre o caso. A Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados cogita convocar autoridades da PF e do Ministério da Justiça para apresentar atualizações sobre o inquérito.

Já organizações ligadas à defesa da democracia alertam para o risco de que outros militares da reserva — ou mesmo da ativa — possam estar envolvidos em articulações semelhantes. Para investigadores, os vídeos de Caçadini não apenas revelam uma tentativa deliberada de incitar a tropa, como também se inserem em uma estratégia mais ampla de minar as instituições democráticas e justificar medidas de força sob o pretexto de atender ao “clamor popular”.


terça-feira, 27 de maio de 2025

Reinaldo Azevedo – STF abre inquérito contra o "patriota" Eduardo Bolsonaro por coagir o Judiciário e obstruir a investigação

 STF abre inquérito à pedido da PGR contra Eduardo Bolsonaro por obstrução de justiça, conspiração e ameaça

Da Rádio BandNews FM:




Controversas relações entre igrejas evangélicas e tráfico nas favelas do Rio de Janeiro. Fronteiras e tensões. Reportagem de Valdemar Figueiredo (Dema)

  

Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

Do ICL Notícias:

COLUNISTAS ICL

Ética na favela: do púlpito à vala comum


Controversas relações entre igrejas evangélicas e tráfico nas favelas do Rio de Janeiro. Fronteiras e tensões



O complexo de favelas no Catumbi é chamado de Complexo do São Carlos, visão privilegiada do Sambódromo, a passarela das escolas de samba. Ponto turístico da cidade do Rio de Janeiro que fica especialmente iluminado durante o Carnaval.

O bairro do Catumbi, onde fica o Sambódromo, é um grande vale cercado por morros. Próximo a região central da cidade do Rio de Janeiro, as favelas do Catumbi foram formadas pelos estratos sociais pauperizados que precisavam estar perto dos locais em que as ofertas de trabalho eram mais promissoras.

Os fatos que irei narrar aconteceram quando o Complexo Penitenciário Frei Caneca ainda fazia parte da paisagem e o território ainda não era controlado pelo Terceiro Comando Puro (TCP). Do Morro avistávamos o presídio que ficava pertinho, no bairro do Estácio, no pé do Morro de São Carlos.

Num domingo tipicamente carioca, enquanto alguns desciam o morro para ir à praia, outros se deslocavam pelas vielas e escadarias para os cultos dominicais nas igrejas evangélicas. No sentido contrário, o pastor Fábio (nome fictício) subiu o Morro para participar do culto na sua igreja.

Cria daquela favela, estudou e foi o primeiro da família que conseguiu se graduar na universidade. Anel vistoso de bacharel para lembrar sempre que a conquista foi enorme. Sua ascensão social deu condições de comprar um apartamento ali pertinho no bairro do Rio Comprido. Aos domingos, ia andando até o templo da igreja para no caminho encontrar amigos de longa data e convidá-los para o culto.

Gostava de tomar o café da manhã de domingo na padaria da comunidade. Dois pães com manteiga na chapa e café pingado, no copo duplo. Belo pretexto para conversar e colher informações sobre a comunidade.

Na subida da escadaria, antes de chegar à igreja, inevitavelmente, passava pela boca de fumo. Conhecia os meninos, numa época em que os traficantes eram locais, nascidos e criados na comunidade. Pessoal que cresceu com ele naquelas ruas íngremes, amigos de infância, colegas do colégio, filhos das suas tias, amigos das suas irmãs, e inclusive, alguns frequentaram quando crianças e adolescentes a igreja que hoje ele pastoreava. Mas do que respeitado, o pastor era querido pelos traficantes que carinhosamente o chamavam de Fabinho.

Como sempre acontecia, foi o primeiro a chegar. Uma casa, sobrado antigo, adaptada para funcionar como igreja. Salão no térreo que servia como o templo, nos fundos, copa/cozinha e banheiro. No andar de cima, havia três salas e um banheiro. O pastor Fábio chegava antes para arrumar o local para receber os membros da igreja que chegavam após as 9h da manhã. Desta vez, a surpresa foi desagradável.

Entrou e imediatamente sentiu um cheiro horrível. Foi abrindo as janelas esbaforido, com ânsia de vômito. O pessoal ia chegar logo, por mais repulsivo que fosse, precisava localizar o foco do fedor. Imaginou que houvesse algum bicho morto no templo. Como a porta de entrada da casa correspondia aos fundos da sala adaptada como templo, de trás para frente foi olhando as cinco fileiras compostas por cinco cadeiras cada. Constatou que as cadeiras estavam limpas, bem como embaixo delas. Chegou na frente do templo e o mau cheiro se intensificou. Atrás do púlpito, no chão, exatamente no local que ele ocupava enquanto pregava e dirigia as celebrações, o dejeto.

Ficou furioso quando constatou que o excremento não era de um animal que invadiu a igreja, mas, era merda humana.

Lavou o salão inteiro. À medida que os irmãos iam chegando para o culto, constatado a agonia do pastor, se puseram a participar do mutirão, faxinaram tudo enquanto cogitavam quem teria cometido tamanho desatino. Não foi difícil chegar ao mesmo nome. Havia na comunidade um rapaz, dependente químico, que com certa frequência dormia na parte externa da igreja. Porém, nunca havia ultrapassado os limites tolerados. Dessa vez, além de invadir o templo, cagou no púlpito.

A hipótese foi confirmada pelos vizinhos da igreja que o viram pular o muro no sábado e sair no domingo cedinho, bem antes da chegada do pastor. A notícia correu.

Neste domingo o pastor desistiu de pregar do púlpito. Se reuniram numa das salas do segundo pavimento do sobrado. Terminada a cerimônia religiosa, fecharam janelas e portas com a máxima atenção. Boa parte dos irmãos subiram a escadaria, enquanto o pastor, pegou o sentido contrário. Ao descer, era inevitável passar pela boca de fumo. O rapaz que gerenciava o comércio de drogas naquele ponto da favela tomou a iniciativa.

– E aí, Fabinho, depois do culto com essa cara?

– Não é pra menos, né?

– O que foi?

– Vai dizer que você não sabe.

– Qualé?

– Cagaram no meu púlpito.

– Aí é esculacho!

– Agora tá limpo.

A breve conversa aconteceu enquanto o pastor descia as escadas e o traficante o seguiu por alguns degraus curioso com aquela estranha situação.

No fim da tarde, depois de ter assistido na televisão o primeiro tempo do campeonato carioca, aliviado pelo Vasco ter saída na frente, ganhando com vantagem de dois gols, o pastor Fábio botou a Bíblia debaixo do braço e foi para o culto da noite.

Ao passar pela boca, parecia que o traficante que mandava no pedaço o estava esperando. Lacônico o cumprimentou e comunicou.

– Fabinho, quem cagou no seu púlpito não caga mais!

Pregar o sermão da manhã havia sido difícil. Pregar no culto da noite foi impossível.

No limite da sua exaustão, o pastor teve uma crise de choro, no que foi acompanhado pelo seu pequeno rebanho.

Voltou para casa envergonhado, como se tivesse culpa pelo ocorrido.

Por mais que conhecesse aquela comunidade, não imaginou que a ética do tráfico se sobreporia a ética do evangelho, ainda que pregado de um púlpito cagado.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O direito a não desperdiçar a vida. Texto de Ladislau Dowbor

 

A luta por dignidade exige novas pautas. Exercer ocupação relevante. Não sofrer a captura da atenção, nas redes sociais. Não perder horas num transporte precário. Não deixar que nossa existência breve seja consumida por sistema em frangalhos


.

Por Ladislau Dowbor | Tradução: Antonio Martins1 | Imagem: Pablo Picasso

Observando com honestidade, o ser humano
não precisa de muito para viver
Olga Tokarczuk2

O problema econômico não é — se olharmos para o futuro —
o problema permanente da humanidade
John Maynard Keynes, 19303


Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável
de desconexões e lixo autorreferencial
que passa por nossos olhos e sai de nossos cérebros
na velocidade de uma tela sensível ao toque
Tim Wu, citando Mark Manson


Afinal, não é tanto tempo assim. Se você viver até os 90 anos, serão cerca de 33 mil dias — e como eles escorrem rápido! Mas é o capital de vida com o qual você nasce, e você deve aproveitá-lo ao máximo. É nosso bem mais precioso, o tempo de nossas vidas, nosso ativo básico. Na maioria das vezes, estamos ocupados demais para pensar nisso. Mas não se preocupe, outros estão cuidando dele. Era para ser a nossa vida…

Há quase um século, John Maynard Keynes, teve uma visão clara da estrutura de tempo para seus netos: se fôssemos sábios o bastante, graças ao progresso técnico, 15 horas de trabalho por semana seriam suficientes para garantir o necessário. Embora o trecho tenha sido muito citado, permito-me o prazer de repetir suas ideias:

“O amor ao dinheiro como posse — em contraste com o amor ao dinheiro como meio para os prazeres e realidades da vida — será reconhecido pelo que é: uma morbidez repugnante, uma daquelas propensões semicriminosas, semipatológicas, que se entregam com um calafrio aos especialistas em doenças mentais”.

O progresso técnico acelerou-se muito além do que ele imaginava, mas estamos estagnados. O que produzimos é amplamente suficiente para garantir a todos uma vida confortável e próspera. Na Índia, trabalha-se 56 horas; no Brasil, 39; nos EUA, 38; na França, Itália e Espanha, 35; e na Holanda, 294. Essa recente redução de jornada limita-se basicamente à Europa Ocidental, e o progresso é lento. Em países como a Índia, o número é chocante, e no Brasil, subestima horas extras e segundos empregos. Será que precisamos disso?

Dizer que é necessário produzir os bens e serviços de que precisamos, condição básica para a expansão do PIB, é um absurdo. No exemplo brasileiro, para uma população adulta de cerca de 140 milhões, há apenas 45 milhões de empregos formais privados e 13 milhões públicos, totalizando 58 milhões. Mas há 40 milhões no setor informal, com metade da renda do setor formal e baixa produtividade. Somam-se sete milhões de desempregados e seis milhões que desistiram de procurar emprego, chegando a mais de 40 milhões de capacidade laboral subutilizada. Assim, parte da população é sobrecarregada, e outra, subempregada. Em outros países, especialmente na África, os números são piores: na Argélia, o setor informal chega a 70% da força de trabalho.

Por que temos uma organização tão estúpida e ineficiente das atividades produtivas? Basicamente, dependemos do neoliberalismo e esperamos que ‘os mercados’ e sua mão invisível resolvam o problema. E se usarmos políticas públicas para gerar atividades úteis, enfrentamos protestos do mundo corporativo, como se lhes tirássemos o ‘direito’ ao monopólio das atividades econômicas. É pura estupidez, mas em expansão. Bem-vindos ao trumpismo e ao oligopólio dos metidos da tecnologia. Hora de voltar à realidade — e viajar para Marte definitivamente não é a solução. Não é sonho: a discussão francesa travailler moins pour travailler tous [trabalhar menos para que todos trabalhem] mostra que o planejamento racional da distribuição de atividades produtivas está ao nosso alcance.

A Lei de Garantia de Emprego da Índia, que assegura 100 dias de trabalho remunerado por ano a cada adulto — inicialmente uma medida rural, depois ampliada —, está gerando mais crescimento e melhor distribuição das atividades econômicas. A China garante que cada administração local tenha uma equipe para identificar oportunidades de inclusão produtiva no território, indo muito além do Bolsa Família no Brasil (que é basicamente transferência de renda, essencial, mas insuficiente). E não esqueçamos o trabalho gratuito das mulheres, cuidando de lares, crianças e idosos: uma contribuição equivalente a 9% do PIB mundial se fosse remunerada com salários médios. Precisamos mesmo revolucionar toda a estrutura — e esperar pela mão invisível é infantil.

Por onde começar? Certamente reduzindo a jornada formal e criando iniciativas públicas. É absurdo haver, em cada localidade, tantas tarefas úteis a fazer e tantas mãos ociosas. E, claro, avançar em renda básica universal, para que os pobres não precisem aceitar trabalhos precários: isso elevará o patamar geral, reduzirá desigualdades e impulsionará mudanças úteis. Mais pessoas contribuindo para atividades úteis e mais tempo para todos.

Mas uma nova série de desafios na organização do nosso tempo — ressaltando que é o ativo central de nossas vidas — está na manipulação e apropriação dele pela chamada indústria da atenção5. Segundo Tim Wu, “se o comércio da atenção antes envolvia operações primitivas e individuais, hoje o jogo de capturar a atenção humana e revendê-la a anunciantes tornou-se um pilar de nossa economia. O modo como gastamos os recursos brutalmente limitados de nossa atenção determinará nossas vidas de um modo sobre o qual a maioria prefere não refletir. Corremos o risco, sem perceber de forma plena, de viver vidas menos nossas do que imaginamos.

O tema vai muito além de devorar nosso tempo de atenção. “Um desenvolvedor escreveu que a publicidade online e o rastreamento comportamental estão fora de controle: são assustadoramente invasivos, inchados, irritantes, inseguros e pioram em ritmo alarmante. Neste século, o recurso mais vital a ser conservado e protegido será nossa própria consciência e espaço mental.

É importante lembrar que essa é uma indústria lucrativa: 98% das fortunas gigantescas do Facebook e outros produtos da Meta vêm do marketing. Cada centavo disso está embutido nos preços que pagamos por produtos e serviços, já que a publicidade integra seus custos. Produtos da Johnson & Johnson, por exemplo, têm 27% de custos com publicidade. Como mostram Maggie Berg e Barbara Seeber, após uma interrupção, o cérebro leva em média 15 minutos para se reconcentrar — e isso é extremamente cansativo6.

Como o poder de negociação está concentrado em poucas plataformas, elas ditam os preços. O Google foi levado à Justiça: “A ação alega que a empresa usa seu domínio para cobrar a mais de anunciantes, ficando com pelo menos 30 centavos de cada dólar que deveria ir aos sites veiculadores. Isso permitiu à empresa ganhar dezenas de bilhões de dólares a cada ano a partir de sua tecnologia de anúncios, e obter daí o grosso de sua receita total7. Jonathan Haidt nos trouxe uma análise crucial sobre como essa invasão do nosso tempo de atenção afeta crianças e adolescentes, particularmente com smartphones, com o tempo de atenção diária variando de cinco a oito horas, e frequentemente mais. As crianças são fisgadas, e manipuladas para ampliar ao máximo seu engajamento8.

Os impactos são chocantes. Os casos de depressão severa em adolescentes, entre 2010 e 2020, aumentaram 145% entre meninas e 161% entre meninos. O crescimento foi similar em ambos os sexos – cerca de 150% — e foi observado em todas as etnias e classes sociais. Isso também afeta universitários. “Em um estudo de 2023 com estudantes norte-americanos, 37% dos entrevistados relataram sentir ansiedade ‘sempre’ ou ‘na maior parte do tempo’, enquanto outros 31% disseram se sentir assim ‘cerca de metade do tempo’. Isso significa que apenas um terço dos universitários afirmou sentir ansiedade menos da metade do tempo ou nunca.” Haidt se refere ao “atual tsunami de ansiedade e depressão.9

O livro de Maggie Berg e Barbara Seeber mencionado antes trata exatamente de retomar o controle sobre o tempo, o tempo de nossas vidas. A maioria de nós – e eu vivencio isso diretamente como professor universitário – é empurrada para uma busca frenética de como gerenciar agendas conflitantes, além da exaustiva fragmentação da atenção quando deveríamos estar relaxados e criativos. E ainda temos que lidar com invasões permanentes de interesses comerciais, alguns deles piscando propositalmente para dificultar minha concentração no texto que estou lendo. Segundo os magnatas da mídia, isso é liberdade. Para eles, obviamente – e com nosso dinheiro. Se preciso de algo, busco informações, não marketing. E não preciso de marketing para coisas de que não preciso.

Há outras dimensões, é claro. Na periferia de São Paulo, os moradores passam de quatro a seis horas no transporte. No total, ficam de 14 a 15 horas longe de casa, todos os dias. Precisam morar onde é barato, o que geralmente significa distante do trabalho. Acordam às cinco para estar no trabalho às oito, voltam para casa tarde da noite e adormecem no sofá, vendo porcarias na TV ou no celular. Então são cinco da manhã, novamente. Vida familiar? Cultura? Lazer? O casamento médio no Brasil dura 14 anos.

Voltemos ao ponto central: nossos desafios não são econômicos no sentido de correr mais e produzir mais, mas de organização social e política. Nenhum “mercado livre”, mão invisível ou discurso neoliberal nos levará a lugar algum. Estamos chegando a um ponto em que precisamos nos organizar em torno das questões essenciais. Uma sociedade pensada a partir do bem-estar familiar, da redução das desigualdades, da menor destruição do nosso meio ambiente e de um processo decisório centrado nessas questões. Chamavam isso de gestão por resultados, mas no fundo só pensavam no dinheiro.

Sou professor. É fácil imaginar que não ganho uma fortuna. Mas o que tenho é suficiente, e uma vida mais próspera para mim não significa mais dinheiro, e sim mais tempo, porque uma vez atendidas as necessidades materiais básicas, a felicidade está em ter tempo para desfrutar da família, dos amigos e de um bom livro. Os bilionários? Eles se acostumaram a tomar nosso dinheiro, tomaram nosso tempo e se infiltraram em nossos cérebros, em nossa atenção consciente, incluindo a de nossas crianças. Ainda assim, questão do tempo é tão essencial quanto o acesso ao bem-estar material básico. Podemos ter ambos

1Publicado originalmente na revista inglesa Meer

2Olga Tokarczuk – “Os Livros de Jacó” (romance) – Editora Riverhead, 2023 – (Prêmio Nobel de Literatura 2018). Citação da página 108 da edição original polonesa, Ksiegi Jakubowe.

3John Maynard Keynes – “As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos” – (1930).

4Kayla Zhu – “Países com as Maiores Jornadas de Trabalho” – Visual Capitalist, 12 dez. 2024. (Data ajustada para padrão brasileiro)

5Tim Wu – “Os Mercadores de Atenção: A corrida épica para entrar em nossas mentes” – Alfred A. Knopf, Nova York, 2016.

6 Maggie Berg e Barbara Seeber – “Professor sem Pressa” – Editora Matrix, São Paulo, 2024.

7 The Guardian, 4 set. 2024 – “Processo antitruste contra o Google nos EUA”.

8 Visual Capitalist – “Uso de Redes Sociais por Adolescentes”.

9 Jonathan Haidt – “A Geração Ansiosa” – Companhia das Letras, São Paulo, 2024. (Mantido o título da edição brasileira)

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Contra o fascismo genérico. Rever o texto de João Carlos Salles, de 2022, para entender 2025 e o que vem em 2026...

 

Filósofo e ex-reitor da UFBA denuncia a “neutralidade” política, cúmplice do retrocesso e da violência. No Brasil de hoje, candidatos progressistas não devem se reduzir ao discurso da competência, mas reafirmar a realização de valores civilizatórios inegociáveis

Imagem: detalhe de pintura de Francis Bacon

1.

Quem flerta com o fascismo e aceita sua possibilidade já se entregou a ele de corpo e alma. A lição histórica é dura e inequívoca, mas ela também se aplica ao enfrentamento de posturas assemelhadas às do fascismo, ao fascismo genérico. Ou seja, são exemplos de uma moralidade pusilânime e cúmplice à indiferença diante de crimes ambientais ou de manifestações racistas, o silêncio diante dos ataques ao conhecimento, às artes ou à cultura e a omissão diante de ameaças ou do desrespeito à vida. Diante do absurdo, qualquer neutralidade é abominável, não podendo ser interpretadas como destreza técnica ou como argúcia política atitudes que naturalizam o mal.

É verdade que o termo ‘fascismo’ não é suficiente nem exato para descrever o que tem ocorrido em nosso país. Contextos e traços do fascismo histórico são distintos das atuais manifestações autoritárias. Entretanto, o que temos enfrentado (ameaças às instituições, conservadorismo, violência) não é menos repugnante que o fascismo que outrora também converteu multidões e mesmo ganhou eleições. Diversa a situação histórica, seria indigência analítica usar o mesmo conceito para quadros históricos afastados, mas seria ainda mais obtuso e puro preciosismo acadêmico não identificar uma perturbadora semelhança de família.

O servidor público deve sim sempre agir com competência e, no interesse do comum, deve ser capaz de lidar com quem quer que seja. Não há aqui do que se gabar, pois se trata de uma obrigação institucional, consignada, aliás, nos códigos de conduta da administração pública. É preciso, afinal de contas, separar a conduta do servidor da filiação do político. Não se pode, todavia, fazer dessa necessidade virtude, nem suprimir, por conta disso, o dever ainda maior de reagir com toda força e dignidade contra manifestações de autoritarismo, grosseria, preconceito, ignorância.

A postura de ACM Neto ao dizer que governará bem com qualquer presidente, quer a apresente como neutralidade, quer como sinal de competência, termina por significar conivência com o absurdo de se ter um presidente autoritário e obscurantista. É um grave erro como posição, para além de mera esperteza política ou cálculo pragmático. Tal silêncio equivale a uma postura tecnocrática de baixa estatura, sendo ainda mais grave tal “neutralidade” quando o país se defronta com a eleição de nossas vidas. Não é, porém, de estranhar, pois esse gesto se generalizou como um sintoma a mais da degradação de nosso sistema partidário, reduzido este em grande medida a agregados sem a mais mínima unidade ideológica, com interesses acima de tudo e valores abaixo de qualquer coisa.

2.

Durante a apuração dos votos do primeiro turno, recebi de um amigo de outro estado uma mensagem entusiasmada. Afirmava que a Bahia haveria de salvar o Brasil.

A mensagem é de bom agouro e espero que vingue sua melhor expectativa. Para tanto, porém, a Bahia precisa confirmar que, em nossa terra, não há mesmo espaço para tiranetes de qualquer estatura ou de qualquer matiz. Além de votos, de muitos votos, precisamos dizer ainda mais e melhor nesta eleição. Precisamos mostrar programaticamente que não comungamos com medidas que tornam hoje tão parecidos governantes que deveriam estar em extremos opostos, mas estão igualmente inclinados a medidas privatizantes e à defesa de valores conservadores e neoliberais, de modo que, ao fim e ao cabo, se unificam na ideia de que a boa governança é mensurada por um conjunto de realizações.

Governantes atuais se jactam de resultados, como o faziam governos pretéritos, e terminam por competir em números e não em valores. Tudo parece poder reduzir-se à condição de instrumento na gestão pública, que valeria na proporção de suas entregas. Alardeia-se assim a quantidade de obras, estradas, policlínicas, empregos. Enquanto isso, por exemplo, aceitam-se uma imagem de cultura em muito reduzida ao interesse da economia do turismo, uma visão de segurança militarizada ou uma educação orientada sobretudo aos interesses imediatos do mercado. E essas, quero insistir, não são questões secundárias, pois afetam escolhas de largo alcance.

Falta então civilidade e sobra rudeza no fundamento de muitos discursos, de modo que as marcas ideológicas de uma Bahia retrógrada, excludente e autoritária ainda se mostram pervasivas e resistentes. Nossos governantes progressistas devem, então, oferecer mais do que isso, pois não se medem nem se diferenciam apenas por seus resultados, mas sim por representarem princípios democráticos e esperanças igualitárias.

3.

Resultados certamente importam e, por óbvio, costumam valer nas urnas mais do que quaisquer princípios. Entretanto, para além de qualquer pragmatismo, é nosso dever guardar uma verdade utópica, qual seja, a de que é possível ter resultados ainda melhores e mais duradouros se tivermos por horizonte uma nação radicalmente democrática. Há, afinal, algo estranho e deveras incômodo quando todos falam a mesma linguagem do progresso e compartilham os mesmos critérios do que seja o sucesso de uma gestão.

Um voto é sempre uma aposta no futuro. Neste momento, porém, é bem mais do que uma simples aposta. Votar em Lula é uma questão de sobrevivência como nação e expressa a melhor reação diante da ameaça da pura e simples barbárie. Ou seja, não queremos Lula apenas porque ele fará mais. Certamente, fará. Mas queremos Lula sobretudo porque ele fará de modo diferente. E queremos Jerônimo ao lado de Lula porque esperamos que outros serão os princípios, os métodos e, logo, no essencial, os benefícios para nosso povo.

Ao declarar voto em Jerônimo, acredito que para ele não deve valer a regra pragmática de que “tanto faz”. Tendo ele outra experiência de vida, precisamos acreditar que saberá decidir com a altivez que a Bahia necessita, até diante de questões para as quais não sei se já apresentou um posicionamento claro, mas às quais, acredito, responderá em conformidade com valores progressistas, fazendo depois valer suas respostas, quando estiver enfim respaldado pela legitimidade que as urnas (e apenas as urnas) conferem.

Assim, devendo reverência tão somente ao interesse do comum, o futuro governador enfrentará com clareza questões deveras delicadas. Como progressista, deve saber, por exemplo, que não basta levar água e garantir saneamento a todas as regiões, pois importa sim, e muito, como isso será feito. Água não é mercadoria, mas sim direito. E Jerônimo não deve ocultar sua posição a esse respeito nem deve se esquivar de uma resposta clara. Deve, sim, com todas as letras, afirmar seu compromisso de reverter tudo que já foi feito visando a privatizar a Embasa.

Um governante progressista também tem enorme e ainda maior compromisso com a segurança de nossa comunidade. Isso, porém, só pode significar uma outra compreensão de segurança pública, uma que não vitime nosso povo e não seja um instrumento perverso de opressão nem de discriminação. Uma postura progressista deve falar mais alto do que as visões que preferem resolver os graves problemas de segurança em nosso estado apenas com mais polícia e não com políticas públicas.

Afinal, é inaceitável que, em nossa terra, ainda se louvem ou se desculpem procedimentos de extermínio, que não se corrigem com mero aumento de recursos ou de efetivos, mas sim com outra visão dos laços entre a segurança e o combate à fome, ao desemprego, aos preconceitos, à exclusão.

Um governante progressista tampouco pode descuidar da ciência. A Bahia é lugar de cultura, de arte, de pesquisa científica – e essa deve ser uma parte essencial da gestão do nosso estado, na contracorrente do obscurantismo que nos ameaçou nos últimos anos e que havemos agora de superar. Nosso próximo governador não pode deixar então de investir no conhecimento.

É tempo, pois, de afirmar e garantir com toda clareza que será cumprido o artigo 5 da Lei n.º 7.888/2001, de criação da FAPESB, no qual se afirma: “O Estado destinará, anualmente, recursos à FAPESB correspondentes a 1% (hum por cento) da sua receita tributária líquida”. Cumprir tal meta certamente contribui para conformar um cinturão iluminista duradouro, que fortaleça a produção do conhecimento em nosso estado e apoie ademais todas as áreas do saber. Não há, afinal, governo realmente progressista que descuide das ciências, das culturas, do patrimônio histórico e das artes.

Também a educação precisa contar com sua palavra altiva. Nesse caso, fala com altivez quem sabe escutar. A altivez não é arrogância, mas disposição e força para aprofundar e multiplicar diálogos. Para conservadores, o exercício da representação substitui a comunidade representada. Os que, ao contrário, têm espírito democrático, sabem que a representação autêntica amplia a presença do povo e cria condições para o povo ser, enfim, o verdadeiro protagonista de sua história. Nesse sentido, é importante a escuta, o acolhimento, a criação de condições para parcerias institucionais de natureza pública.

Importa, portanto, o compromisso, claro e explícito, do governador em respeitar a autonomia das Universidades, em valorizar o diálogo com as associações que representam as categorias de trabalhadores, em contribuir para o bem-estar e o respeito do funcionalismo público, em garantir que os direitos da educação não sejam subtraídos por restrições orçamentárias, uma vez que projetos civilizatórios jamais podem ser objeto de políticas de austeridade.

E diálogo é também parceria autêntica, como a que deve ser mantida com as instituições de ensino superior públicas, estaduais e federais, pois a cooperação entre instituições públicas, se levada a sério, não pode ser uma figura de retórica, abandonada talvez na primeira hora por alguma conveniência, sobretudo em áreas de produção de conhecimento e de formação de cidadãos.

4.

São apenas alguns pontos. Outros podem ser elencados, como uma contribuição para uma candidatura que há de unir na Bahia, juntamente com Lula, todos que desejam combater a barbárie. Líderes democráticos autênticos, sabemos bem, não são gerentes, não fazem meros cálculos de interesses; e o jogo duro da política não há de lhes retirar a ternura e o respeito. Jerônimo precisa dar toda atenção a pontos como esses, corrigindo erros, mas também reafirmando virtudes de um governo estadual que, por sua feita, aprofundou políticas públicas importantes e mostrou firmeza e coragem, resistindo a desmandos negacionistas e autoritários do governo federal.

Jerônimo deve assim mostrar, de forma inequívoca, compromisso com uma pauta civilizatória básica, sabendo afastar práticas conservadoras, privatizantes, autoritárias, com a integridade de um completo líder progressista, como a Bahia precisa e merece. Jerônimo, afinal, tem preparo, história e talento; não amadureceu em carbureto. Tenho certeza que a benção das urnas lhe trará ademais a força e a autonomia necessárias, que lhe fará engrossar o pescoço como um líder independente, capaz de decidir e, enfim, de fazer o que há de melhor e mais certo para nosso povo, tendo por horizonte uma sociedade radicalmente democrática.

Enuncio assim princípios, manifesto minha opinião, declaro meu voto. Minha declaração de voto, aliás, já está nas redes e a reitero aqui. Ficarei certamente alegre caso nosso candidato se manifeste sobre tais pontos, mas compreendo bem que, assim como a palavra, também pode ser significativo o silêncio. Afinal, a palavra marca com tinta, enquanto o silêncio marca com fogo.

O sentido do que faremos, do nosso futuro, está em aberto. Agora, temos pressa. É tempo de arregaçar as mangas e não paralisar pela justeza de “considerandos” e temores, compartilhados talvez por outros companheiros. Vamos juntos, na Bahia, centro do universo, ao combate das forças reacionárias e oportunistas; enfrentemos unidos o fascismo genérico, presente em diversas formas de obscurantismo e autoritarismo. E vamos à vitória, sim, com Lula e Jerônimo!

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