segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Donald Trump e a destruição da hipocrisia americana, por Jessé Souza

 

Talvez não exista país no mundo mais servil e com mentalidade de escravo do que o Brasil


Do ICL Notícias:


Toda forma de dominação social e política precisa combinar violência física e simbólica. Como a violência física é um ataque explícito à dignidade das pessoas, o domínio pela violência física tende a operar e produzir seus efeitos em períodos limitados, agindo, normalmente, como recurso de última instância e ameaça potencial. Isso significa que o domínio, ao longo do tempo, tem que ser assegurado de outra maneira, por meio de uma “violência simbólica”, ou seja, àquela que conta com a conivência do oprimido que passa a se ver como inferior e a admirar o dominador.

A história do imperialismo europeu é uma excelente ilustração do que estamos dizendo. Tanto o imperialismo clássico francês ou inglês usavam o expediente simbólico ao lado da agressão física para oprimir povos colonizados. Eram utilizadas clivagens tribais e raciais de modo a cooptar, por exemplo, os segmentos “mais claros” contra os mais escuros de países africanos ou asiáticos sacralizando socialmente a hierarquia da supremacia branca. De resto, a oposição entre civilização, representada pelos europeus, e barbárie, representada pelos outros povos, terminava convencendo também muitos nativos — especialmente os educados na cultura europeia — de culturas oprimidas.

No entanto, foram os Estados Unidos que privilegiaram o uso da violência simbólica como arma cultural criando o imperialismo “soft” (suave) americano. A partir da Segunda Guerra Mundial, a vitória contra a tirania sem disfarces, que havia sido ganha antes de tudo pela União Soviética, mas que Hollywood transformou em triunfo americano, permitiu que os EUA pudessem ser vistos como uma potência benigna, amiga da liberdade e da autodeterminação dos povos.

Isso induziu os americanos a perceberem que o domínio global poderia ser conseguido mais facilmente se eles abdicassem, pelo menos em condições normais, do domínio militar e político explícito em favor da violência simbólica. É muito mais eficiente deixar uma elite nativa e do “atraso”, como a nossa, comandar e assaltar o país em nome dos interesses americanos.

Para isso é necessário usar o prestígio científico como arma de dominação. A “ciência americana”, comandada por Talcott Parsons, o intelectual americano mais influente, criou a ideia do “excepcionalismo americano” que permitiu ver a riqueza dos Estados Unidos como advinda não do saque e da força militar, mas de sua colonização protestante ascética tida como supostamente empreendedora, honesta e voltada ao bem comum. Essa bobagem foi retirada da interpretação abstrusa que Parsons fez da famosa tese weberiana sobre o espírito protestante, mas o mundo todo acreditou nela, inclusive os vira-latas de todas as latitudes.

Cerca de 90% de nossa ciência política, por exemplo, foi contaminada por este lixo e ainda é até hoje. A influência da ciência em si é muito importante porque ela constrói o paradigma de pensamento e interpretação dos fatos que vai prevalecer para dominados e dominantes. As universidades do mundo inteiro, que vão formar todas as elites dirigentes em todos os lugares, foram contaminadas por estas ideias envenenadas.

Mas foi a transformação dessas ideias em filmes, séries, livros e todas as mercadorias simbólicas da indústria cultural, com Hollywood à frente, que logrou internalizar dentro dos povos oprimidos o preconceito criado para oprimi-lo e roubar sua inteligência. Não é à toa que todos os criminosos nos filmes e séries americanas são mexicanos ou latino-americanos, quase sempre se opondo à honestidade do policial e do cidadão americano em geral. A corrupção, como sempre, passa a ser a arma principal desse ataque. Toda a indústria cultural vai opor a honestidade supostamente inata dos americanos às sociedades tidas como essencialmente corruptas do Sul Global: América Latina, África e Ásia, afinal quem é corrupto tem sua humanidade negada, e podem e até “devem” ser comandados e explorados pelos honestos e inteligentes.

Talvez não exista país no mundo mais servil e com mentalidade de escravo do que o Brasil e os brasileiros em relação aos Estados Unidos. O golpe de 2016 mostra isso ao lado de outros milhares de exemplos possíveis. Só um povo imbecilizado e servil pode aplaudir a entrega da Petrobrás, por exemplo, aos estrangeiros, dado que nossos políticos seriam corruptos e os americanos seriam tão honestos, bonitos e inteligentes. Agora temos as redes sociais, todas empresas privadas americanas mancomunadas com os interesses de Estado americano, que permite manipular as emoções e fragilidades dos oprimidos ao ponto de criar o “patriotário” bolsonarista que somos obrigados a testemunhar.

Os recentes episódios com os brasileiros algemados e maltratados pelas autoridades americanas mostram um outro país. Um país que quer ser conhecido e temido, agora, pela truculência. É uma mudança radical do imperialismo americano nesta sua fase terminal. Como diria Gramsci, é neste lusco-fusco que os monstros aparecem. Alguns podem comemorar o fim da hipocrisia americana de quase cem anos. O risco, no entanto, é termos saudade dessa hipocrisia que preferia mandar Brad Pitt e Marilyn Monroe, junto com os seus estereótipos envenenados, no lugar de armas e deportações humilhantes. E a nova fase está só no começo. Quem sabe o que ainda vai vir por aí?


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