Para nos contrapormos a afetos desordenados e destrutivos, temos que suscitar afetos amorosos e construtivos. E por onde conseguimos isso?
O poder e as limitações do diálogo
por Dora Incontri
Num cenário virtual de discursos de ódio, cancelamentos, extremismos e Fake News, e num mundo real, regido agora tantas vezes pelo virtual, com o avanço preocupante da extrema direita, é justo nos indagarmos se ainda podemos apostar no poder e mesmo na possibilidade do diálogo.
Há diferentes níveis de diálogo, se assim pudermos especular. Há aquele diálogo que flui contente, satisfeito, de trocar ideias com pessoas com que comungamos visões de mundo, projetos de vida, afetos e ideais. Esse diálogo nos abastece, nos alivia, nos fortalece para as lutas.
Há o diálogo com os que pensam um pouco diferente, mas nem tanto… pequenos detalhes de divergência que não atrapalham um mesmo rumo de entendimento das coisas. Esse diálogo nos enriquece, porque permanecemos abertos ao aprendizado com o outro, mais flexíveis para ouvir posições diferentes, porque já partimos de uma base comum.
Há o diálogo que exige um pouco mais de esforço, mas aí entra nossa capacidade de abertura e civilidade: é aquele com quem se afasta muito de nossa visão de mundo, mas cujas virtudes pessoais admiramos em alguns aspectos, cuja convivência às vezes nos obriga a mantermos as portas abertas para conversações mais ou menos sérias.
Poderíamos e deveríamos parar por aí. Mas não é o que acontece. Hoje as redes sociais e o mundo concreto estão abarrotados de fundamentalistas, fanáticos, que fazem um trabalho furioso de convencimento, que mentem descaradamente, que não são capazes de escutar nenhuma palavra de alguém que pensa diferente e querem mesmo calar qualquer divergência. Claro que me refiro aqui à extrema direita e aos fundamentalistas religiosos (que andam aliás de braços dados na atual conjuntura mundial). Mas já houve momentos históricos em que setores da esquerda também agiram assim. Hoje é menos comum encontrarmos pessoas à esquerda com essa tônica, mas há também, mesmo porque parte dos que se dizem deste campo está amolecida, muitas vezes abraçada ao sistema, sem força de contestação.
Poderíamos aqui recorrer a dois autores distantes no tempo e pertencentes a diferentes correntes de ideias, mas que têm incríveis convergências: Allan Kardec e Erich Fromm. Para eles, todas as visões de mundo, sejam religiosas, políticas, filosóficas e mesmo científicas, têm alguma forma de fé, entendida a fé como uma dada concepção de mundo, com certos pressupostos. A diferença se daria no plano da racionalidade: uma fé que tem argumentos, que se abre ao diálogo, uma fé centrada na confiança na razão humana e seu desenvolvimento em contraposição a uma fé irracional, enraizada no poder da autoridade, na submissão fanática, nas pulsões mais primitivas do ser humano – que se agigantam quando se tornam manipuláveis nas massas.
Ora, essa é justamente a precariedade que nos assola: a precariedade da razão. As dancinhas no Tic Toc, a avalanche de informações e desinformações desencontradas, rápidas, não distinguidas, não digeridas, o declínio cognitivo provocado pelas telas – tudo isso nos lança num vazio de racionalidade de onde brotam os extremismos, os ódios, as violências de parte da população, tudo orquestrado pelo mau-caratismo de alguns.
E com gente furiosa, fanática, enceguecida, sem qualquer fio de racionalidade, torna-se impossível o diálogo, que pressupõe sempre algum grau de civilidade, respeito e até de domínio básico da linguagem.
E como atuar sobre esse contingente de pessoas enlouquecidas, que não são necessariamente más? Estão sim agindo com as pulsões mais primitivas de seu inconsciente (que todos temos), acordadas e manipuladas por estímulos calculados, como já foi feito antes, um século atrás, com as multidões que apoiaram o nazifascismo.
Há muito a sociedade de consumo manipula esses impulsos, apelando aos desejos, para vender produtos, para submeter as pessoas a uma vida de objetificação e descartabilidade. E quando há um recrudescimento do sistema capitalista, vem a investida no nazifascismo, sempre a favor do capital, desencadeando a submissão voluntária e suicida das massas.
O que fazer então? Para nos contrapormos a afetos desordenados e destrutivos, temos que suscitar afetos amorosos e construtivos. E por onde conseguimos isso? Através da espiritualidade (livre e crítica), das artes, do afeto pessoal – tudo embrulhado numa racionalidade impecável e muito didática. Uma racionalidade paciente, cotidiana, calma e amorosa.
E nesse intento, podemos usar – e muitos já fazem isso – do veículo mesmo que o outro lado usa, o mundo virtual. É claro que as grandes Big Techs estão do lado do sistema – elas mesmas são o sistema – e permitem e apoiam toda sorte de exploração do que há de mais sombrio no ser humano. E quando damos as caras nestas redes, temos que lutar com os algoritmos, com o investimento maciço dos manipuladores nas Fake News e com a adesão de milhões ao que distorce a visão da realidade.
Por isso, ocupemos as redes na medida de nossas possibilidades, mas façamos o encontro pessoal na máxima frequência que consigamos, para que o abraço, o olho no olho, e o acolhimento resgatem o que é humano em todos nós. Espalhemos a razão crítica aos quatro cantos das redes, das escolas, das universidades, das igrejas, dos lugares de encontro e mantenhamos a esperança de dias melhores.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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