O cenário do capitalismo é esse. Tudo é mercadoria. Tudo é descartável. Mesmo, e até principalmente, o ser humano.
Como o capital tudo descarta – inclusive o humano
por Dora Incontri
Recentemente, tenho acompanhado a saga de uma amiga ameaçada de desligamento, leia-se de descarte – de um trabalho de 25 anos numa empresa de porte internacional. E tive a experiência em minha própria casa, com um familiar de alto nível, que depois de se dedicar durante décadas ao mundo corporativo, recebeu uma oferta inaceitável na transnacional em que atuava há 20 anos – uma espécie de cargo figurativo, de consolação, com uma remuneração abaixo de qualquer possibilidade de aceitar… e teve que pedir demissão, perdendo assim os benefícios de uma longa carreira, inclusive a sua aposentadoria privada.
Ao mesmo tempo, acompanho jovens que estão ativos nesse mercado coorporativo, a maioria com ansiedade, depressão, burn out – consumidores diários de medicamentos psiquiátricos e, às vezes, de outras drogas, não tão lícitas. E assim é o roteiro de todos os empregos no mercado: primeiro se espreme, se suga, se explora, se adoece a pessoa. Depois se descarta, às vezes por um e-mail, mas sempre com indiferença e desfaçatez.
E isso são empregos, com carteira assinada, nos moldes tradicionais, cada vez mais raros, porque agora trata-se de ser empreendedor de si mesmo ou assumir trabalhos como PJ, em que não se tem nenhuma garantia de continuidade e nenhum direito a nada… Nos empregos ainda em formato de CLT, não há também, por outro lado, mais nenhum respeito às regras de horários, fins de semana. Todos os anos dou aula para os trabalhadores de um sindicato de um setor financeiro e invariavelmente pergunto: quem de vocês sai na hora estipulada para o fim do expediente? Ninguém! É até malvisto alguém que fecha o computador quando termina seu horário de trabalho. Todos ficam a mais (sem remuneração extra). E dependendo do cargo, o expediente se estende para a noite, para o fim de semana, através do e-mail, do WhatsApp… alcança as férias, quando férias há. Todos se exploram mutuamente. E se auto exploram também. Um ciclo de loucura. E depois de todo esse desgaste, a demissão sumária.
O cenário do capitalismo é esse. Tudo é mercadoria. Tudo é descartável. Mesmo, e até principalmente, o ser humano. Há a obsolescência programada de um celular, como há a descartabilidade programada do trabalhador. Esse molde desumano se mantém por uma estrutura de violência geral sobre todas as classes, que não são detentoras dos meios de produção. E o que é pior, as vítimas do sistema se tornam seus reprodutores, porque agem com seus colegas e subalternos, com a violência e a desconsideração com que são tratados, talvez na ilusão de que estejam acima do outro, porque são detentores de privilégios. São como os capatazes negros, na época da escravidão.
Nas classes mais desfavorecidas, onde o trabalho é ainda mais precário, na maioria das vezes com uma entrada completamente insuficiente para uma vida digna, há hoje no Brasil, um fator de contenção de qualquer revolta e tomada de consciência. As igrejas evangélicas, dentro das ideias protestantes de valorização cega do trabalho – o que alimenta o espírito do capitalismo (como bem analisou Max Weber), ajudam na submissão ao sistema, na glorificação a Deus, diante da exploração. E, entre as neopentecostais, ainda se arranca do pouco que o povo ganha, o dízimo (às vezes mais que o dízimo) que dá vida luxuosa para os pastores.
Esse é o sistema capitalista que nos engrada, nos oprime (e deprime) fortalecido pelos avanços da extrema direita no mundo, cuja ideologia é diminuir qualquer pouca garantia de proteção a quem trabalha, deixar passar toda boiada, sem preocupação com o meio ambiente, num negacionismo doentio da crise climática que vivemos.
Onde vamos parar? Não há alternativa a não ser nos tornarmos críticos radicais do capitalismo, sem concessões à ideologia neoliberal e irmos despertando a consciência do povo, numa educação das massas. É claro que isso é muito difícil, quando a mídia corporativa, a que chega de fato à maioria das pessoas, faz parte desse sistema e pratica uma doutrinação diária.
Enchamo-nos de coragem, em primeiro lugar, para não colaborarmos com esse cenário, fazendo resistência diária. Evitemos cair nos meios de manipulação das nossas consciências, com os medos que nos impigem, com os desejos consumistas que nos despertam, com o anestésico de uma religiosidade fundamentalista. É preciso acreditar na possibilidade de uma transformação profunda de como nos relacionamos econômica, social e politicamente. E como vivenciamos nossa espiritualidade – para que seja de forma crítica e aberta, como âncora dos necessários avanços neste mundo.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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