Deveríamos nos perguntar se esse tão fácil descarte da vida – individual e coletiva – não está associado a uma visão fluida das relações
A vida se esvaindo na civilização do consumo
por Dora Incontri, publicado no Jornal GGN
Duas notícias recentes na mídia levam ao texto de hoje, que será necessariamente polêmico. Uma, a autorização da Holanda para a eutanásia de uma moça de 29 anos, que tem doenças psíquicas, mas não tem nenhuma doença terminal. Quando a pessoa se encontra em estado terminal e há uma abreviação do sofrimento final, geralmente se usa o termo eutanásia. No caso de não haver nenhuma doença terminal e nem previsão de morte, o termo mais comum é suicídio assistido – coisa que cada vez mais países estão incluindo em sua legislação. Mais recentemente a Alemanha abriu essa possibilidade legal. A mídia alemã, que sigo nas redes, está já relatando alguns casos, de forma romantizada: velhinhos morrendo de mãos dadas, no jardim de casa, e que necessariamente não tinham nenhuma doença. Apenas resolveram encerrar o expediente da vida.
Outro dado que está sendo comentado por vários analistas é o decréscimo da população em muitos países de maior poder econômico. Assisti a uma entrevista na mídia francesa com Elisabeth Badinter, autora feminista, que escreveu nos anos 80 o excelente livro O amor conquistado – o mito do amor materno. A filósofa, em seus 80 anos de vida, revela a sua preocupação com o conflito existente entre preservar a liberdade, duramente conquistada em seu país, da mulher poder escolher, inclusive através do aborto, em ter ou não ter filhos e a necessidade de se manter uma população mais nova produtiva, porque já está havendo uma sobrecarga na seguridade social dos idosos. Estamos cada vez mais longevos, e há um decréscimo de novas gerações, para levar a economia adiante. Problema que se apresenta também no Brasil.
Por outro lado, dizem os analistas demográficos, engajados nas questões ambientais, que um decréscimo na população mundial até 2100 – cenário possível, mas não determinado – poderia amenizar os problemas do meio ambiente, porque o consumo cairia.
Claro que todas essas questões se passam no cenário do capitalismo. Um cenário anti-vida.
Na Holanda, até crianças de 12 anos estão obtendo autorização para eutanásia/suicídio assistido, mesmo sem previsão de morte próxima. É preciso apenas se constatar um sofrimento insuportável.
Ponho aqui o questionamento se tanto uma coisa como a outra – admitir que se possa morrer com tanta facilidade e admitir que vamos restringir cada vez mais a vinda de crianças, que são a luz do futuro, e que cada vez mais gente prefere ser pai e mãe de pet do que pai e mãe de seres humanos, não é uma tendência mórbida do nosso sistema? Um modo de negar a vida, de interditar a possibilidade de superação de nossos problemas com saídas criativas e amorosas? Pessoas com problemas que não levam necessariamente à morte, não podem ser amadas e amarem, ressignificar o sofrimento e transformá-lo em arte, espiritualidade, ajuda ao próximo? Os idosos alemães não poderiam estar passando sua experiência de vida aos netos, às novas gerações, dando e recebendo afeto? No caso dos filhos, são justamente as pessoas que têm mais recursos econômicos que estão cada vez mais se negando à paternidade e à maternidade. Não será isso uma forma de interrupção do fluxo da vida? Não que todo mundo tenha o dever de “crescer e multiplicar-se”- eu mesma não tive filhos por opção própria. Mas o que quero acentuar é cada vez mais uma tendência a Tânatos e um silenciamento de Eros, em nossos tempos.
Quando fazemos um investimento afetivo, erótico – para usar uma linguagem freudiana – trata-se de um investimento de vida. Desistirmos de nós mesmos e do outro, desistirmos da humanidade é uma pulsão de Tânatos. E, sobretudo, há um esvaziamento de todo sentido existencial – para lembrar Victor Frankl, que veio da psicanálise, mas criou a logoterapia (que procura ajudar as pessoas a emprestarem sentido às suas vidas, incluindo o sentido do sofrimento, sem masoquismo, obviamente).
Deveríamos nos perguntar se esse tão fácil descarte da vida – individual e coletiva – não está associado a uma visão fluida (nos termos de Sygmunt Bauman) das relações e dos próprios sujeitos. Não estamos influenciados por esse consumismo desbragado, em que nós mesmos nos tornamos objetos de consumo e descarte? Vamos eliminar os que estão em sofrimento, desistindo de investir neles nossos cuidados, nosso afeto, possibilitando uma superação de um estado insuportável de dor psíquica? Estamos chegando assim perto da atitude nazista, que assassinava os doentes mentais? Agora, com o pedido e o consentimento dos próprios sujeitos.
É bom lembrar que em certos países, só como exemplo, não nascem mais quase bebês com síndrome de down: são abortados antes. Isso não é eugenia? E de um pressuposto de que se trata de uma vida indigna de ser vivida, quando hoje temos a evidência, de que crianças com down podem crescer autônomas e felizes, amarem muito e serem amadas.
Vamos diminuir a humanidade, ao invés de procurar maneiras mais sustentáveis e justas de economia e organização social? Esse modo capitalista predatório da natureza e injusto das relações de trabalho e exploração do outro é o que gera a crise climática, a miséria e todas as mazelas do mundo. (Não estou negando aqui a necessidade de planejamento familiar e nem adotando posturas de religiosos extremistas, que recusam qualquer método anticoncepcional.)
Repensar todas essas questões de um ponto de vista que inclua o amor e a luta pela vida e a dimensão espiritual do ser humano – é mais do que urgente. É claro que se formos apenas um pedaço de carne, sem alma, sem dignidade intrínseca, que se dissolve no pó, fica mais fácil eliminar os mais fracos, os mais carentes, os mais pobres. E se não acharmos um sentido para viver, lutar, superar nossas dores e as do próximo e melhorar o mundo, daqui a pouco, estaremos totalmente mergulhados na pulsão de morte, negando a pulsão da vida.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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