quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

“Conhecimento ancestral tem valor”, afirmam comunidades religiosas de matriz africana sobre a destruição do Rio Paraopeba por dizimadores ruralistas e da Vale privatizada e desrespeitosos da Natureza e grupos sociais desta dependentes

 

Representantes de povos tradicionais que vivem às margens do Paraopeba destruído contam a importância do rio para a perpetuação dos rituais e sobrevivência nos territórios

PCTRAMA é a sigla pela qual os povos e comunidades de tradição religiosa ancestral de matriz africana preferem ser chamados. São comunidades oriundas das nações de Angola, Angola-Muxikongo, Ketu, Jeje, Umbanda, Omolocô e Reinado, e estão localizadas nas cidades de Juatuba, Mateus Leme, Betim, Mário Campos e São Joaquim de Bicas; em Minas Gerais. Cidades vizinhas e afetadas pelo desastre da Vale em Brumadinho, causado pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em janeiro de 2019.

O impacto do crime ambiental, com destaque para a contaminação do Rio Paraopeba, não só alterou as relações estabelecidas nas comunidades, como os encontros, os festejos, rituais e o exercício da fé, mas feriu também os princípios cosmológicos das comunidades.

Baba Edvaldo de Jesus, do Ilê Axé Alá Tooloribi (nação Ketu), situado no bairro Francelinos, na cidade de Juatuba, 1.300 metros da calha do rio Paraopeba, diz que a água é um elemento de importância fundamental para estes povos.

“A água é mãe, e sendo um dos quatro elementos, assume para nós o princípio feminino da fecundidade originária e perene. O culto às águas como mantenedora de nossas vidas remonta aos mitos da criação e perpassa as nossas crenças no que tange à possibilidade da existência”, explica.

Capitã Pedrina, ou Seji danjy, Muzenza da Nzo Atin Oya Oderin (nação Angola) relatou que utilizavam o rio como meio de lazer, natação, pescaria e para rituais religiosos, quando fazia uso da água do rio Paraopeba para lavagens, banhos sagrados nas águas de Lemba, e nas festas  das Munhatas ( Indandalunda e  Kaiaia), em conformidade com os costumes de sua religião.

A relação com o rio Paraopeba antes do rompimento, como conta Baba Edvaldo, se dava de maneira mais livre e direta, por meio de rituais próprios do dia a dia, religando as pessoas ao axé (energia vital) que as águas de um rio proporciona, sejam em rituais de oferendas às divindades das águas ou sacralizando elementos próprios da natureza, disponíveis no rio e em sua extensão, tais como pedras e plantas; peixes para a alimentação coletiva de alguns ritos e festas, dentre outros usos que denotam os “fazeres e saberes” ancestrais. Ser uma pessoa de tradição, segundo ele, os remete de modo muito direto ao cultivo e culto à natureza como manifestação do sagrado.

Após o rompimento da barragem, o Baba diz que, lamentavelmente, estão impossibilitados de ter contato com o rio Paraopeba e tudo o que ele representa. “Além de suas sagradas águas, o próprio lençol freático e as nascentes, de onde possivelmente se podia utilizar também as águas para alguns rituais e práticas, estão também com seus acessos vedados, sob risco de contaminação. A situação é crítica e preocupante, visto que temos de nos deslocar para o município de Itaúna (distante a aproximadamente 40 km do bairro Francelinos)”, denuncia Edvaldo.

Como praticantes dessa maneira de ver o mundo e desta religião, o Baba diz que os PCTRAMA são fundamentalmente preservadores do meio ambiente, pois nele encontram as condições materiais e simbólicas para sua existência.

“O patrono de nossa comunidade-terreiro Obatala (Oxalá, em sua manifestação pelo orixá Oxaguian) revela para os seus adeptos o potencial de purificação e de renovação do axé através da água e suas intrínsecas relações com a Mãe-Terra (Ilé). Sem água não tem orixá! Sem água, sem folha e sem a terra, que nos acolhe, não existem mais os elos que nos re-conectam com nossa própria essência”, aponta o adepto da nação Ketu.

“Preservar e educar para a preservação do meio ambiente são o nosso legado. Deixar que o rio flua livremente em sua plenitude, sem as amarras do lucro devastador e da ambição é a nossa missão. Nós podemos contribuir para a preservação desse patrimônio que é o rio Paraopeba, através de uma presença que reforça a manutenção de valores imateriais da cultura de nosso território. Nosso conhecimento ancestral tem valor”, ressaltou Baba Edvaldo.

A visão de Capitã Pedrina não é diferente. Ela conta que as comunidades evitam tudo que polui o meio ambiente, buscando mantê-lo limpo de tudo aquilo que não seja deteriorado naturalmente num curto espaço de tempo. “Para isto, constantemente, orientamos aos seguidores o não uso deste tipo de materiais. Além disso, preservamos as matas, as ervas,  com constante replantio e incentivamos o adubo natural com esterco e folhas secas”, ensina a capitã, explicando de que forma os povos tradicionais podem contribuir com a reparação.

Para além das questões comuns a todos os atingidos, que lutam por reparação integral, Baba explica que pesa sobre os PCTRAMA a impossibilidade de continuidade de suas missões.

“A aquisição de nossos imóveis, para a implantação dos fundamentos religiosos e tradicionais de nossas comunidades-terreiros, levou em conta a relação com o rio; uns mais fisicamente próximos do que outros, mas sempre no contexto de pertença ao entorno das sagradas águas. O rompimento da barragem e suas drásticas consequência arrastaram consigo essa nossa intenção. E enterraram numa ‘lama cáustica’ a nossa expectativa de realizar a nossa missão”, lamenta Baba Edvaldo sobre as muitas violações, que vão desde o direito de manter e cultivar as suas tradições e costumes no território de sua livre escolha até a violação da soberania alimentar e nutricional.  

Capitã Pedrina reitera esse posicionamento. “Vivemos, a cada vez que vemos o Rio Paraopeba, ou vem à nossa lembrança, com uma profunda dor no coração. Coração muito apertado. Dói, dói muito. O rio tem, para nós, importância vital. Nossa religião cultua a natureza. Nossas divindades, os Nkisis ou Jinkisis ou Minkisis, são a própria natureza. Sem ela, morre nossa religião. Sem a religião, morremos. Temos consciência de que estamos inseridos neste bioma. Se aniquilamos a natureza, estamos fadados à morte de toda humanidade”, alerta.

No processo de reparação, logo após o rompimento, Baba Edvaldo diz que não foram reconhecidos como grupo de atingidos. “A meu ver, isso faz parte de um processo e de uma intenção programada para o extermínio dos povos tradicionais, na esteira da disseminação do histórico racismo institucional. A sociedade brasileira nega a nossa existência, o nosso papel, as nossas contribuições. Ao contrário, ela tenta nos criminalizar e nos associar a práticas demonizantes. A engrenagem da intenção desagregadora do racismo é a negação. Não nos levar em conta, subverter ou diminuir os nossos direitos, apagar os nossos rastros… essas são as táticas”, argumenta.

O Baba conta que um pequeno grupo de lideranças dos PCTRAMA (de Juatuba e Mateus Leme) resolveu chamar o Ministério Público para uma reunião, na qual expuseram a sua situação e o interesse de legitimamente fazer parte do grupo de atingidas e atingidos, tendo um espaço para discutir e evidenciar as violações específicas que sofriam e sofrem. “Esse pleito foi perfeitamente acolhido pelo Ministério Público e, posteriormente, pela assessoria que nos acompanha como grupo de atingidos. No desenrolar de nossos trabalhos, sentimos a necessidade de criarmos um Protocolo de Consulta, que é um instrumento legal cuja finalidade é reforçar a necessidade de escuta e consideração aos PCTRAMA nos territórios onde vivem e interagem com o meio ambiente. “, explica Edvaldo.

Consulta prévia

Em outubro de 2020, esses povos lançaram o Protocolo de Consulta que tem como objetivo informar para a Aedas (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social), como atender as especificidades dos PCTRAMA em seu trabalho como Assessoria Técnica Independente) um direito conquistado pelas comunidades atingidas na Bacia do Paraopeba. Esse protocolo deve ser respeitado, especialmente pela Aedas, mas também pelos povos e comunidades que o assinam.

E a mensagem final que essas comunidades nos deixam é de muita esperança, luta e resistência. “Seguimos na resistência e na luta! A nossa meta é a recuperação integral do rio Paraopeba. Sabemos que não será fácil. Confesso que tenho uma esperança teimosa de que vamos obter muitas vitórias sobre aquilo que nos foi retirado ou dificultado. Nosso povo é cheio de esperança na luta. Não é à toa que nossos ancestrais, vindos de África, resistiram às agruras do exílio forçado e às humilhações de uma escravidão genocida. Vamos vencer e fazer história com todas e todos os atingidos por esse crime ambiental sem precedentes”, diz Baba Edvaldo.

“Sempre fomos torturados, nós negros, principalmente de religião de matriz africana, mas a tortura psicológica não dá trégua. A contaminação do rio Paraopeba ruiu nosso mundo de culto. Portanto, esperamos a mitigação destes danos à natureza e a nós mesmos. Mitigar, porque reparar chega às raias do impossível. Esperamos a limpeza do rio, o tratamento das ervas e matas no percurso do mesmo e reparação material, pecuniária sim, que nos ajude a prosseguir, a ter ações e planejamentos que melhore nosso viver, inclusive difundindo nosso culto à natureza”, avaliou Capitã Pedrina, levantando mais uma vez a força de seus conhecimentos ancestrais.

“Vamos continuar na luta em busca de nossos direitos legítimos fundamentados na Constituição Federal de 1988 e nas leis vigentes do país. Nossa fé e crença seguem firmes, porque ainda que profundamente abalados pelo ocorrido com o rompimento da barragem de Brumadinho e as suas consequências nefastas, sabemos que sairemos vitoriosos nesta causa justa, legítima e honrosa para nós e todos os nossos ancestrais”, finaliza a Capitã.

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