segunda-feira, 8 de julho de 2019

Mídia abandonou o jornalismo para ser “cão de guarda” da Lava Jato, por Cíntia Alves, no GGN




"É preciso desmistificar a atuação da imprensa que se apresenta como mediadora desinteressada." Durante toda a cobertura da operação, houve "usurpação da função judicial pela imprensa", em um "consórcio harmônico" com Moro e os procuradores, escreveu o juiz Marcus Gomes, ainda em 2016




Foto: Agência Brasil
Matéria publicada originalmente em 28/12/2018
Jornal GGN – Dois, três meses atrás houve quem prometesse chegar ao centro do poder público em janeiro de 2019 com a coragem de devolver a Lava Jato à sua “caixinha”. Passada a eleição presidencial, a estrela da operação, Sergio Moro, não vai para caixinha alguma, mas para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, com a missão de aprovar leis capazes de institucionalizar o modus operandi da chamada República de Curitiba.
Além da heterodoxia jurídica da própria força-tarefa, se tem um agente com crédito na ascensão meteórica de Moro – que leva consigo cabeças da Polícia Federal na Lava Jato – são os meios de comunicação de massa tradicionais.
Abandonando a responsabilidade de fiscalizar o Judiciário, a maior parte dos jornais mergulhou numa relação promíscua com a operação que derrubou Dilma Rousseff e inabilitou Lula eleitoralmente. Foi abastecida quase diariamente com informações que interessavam aos procuradores e ainda faz, com sua postura acrítica diante de abusos e extravagâncias avalizados por tribunais, a opinião pública acreditar que os fins justificavam os meios.
“Aquele que deveria fiscalizar os excessos do poder – e os das agências penais estão escancarados, à mostra, sem constrangimentos (maus-tratos e tortura policial, seletividade da clientela do castigo, superpopulação carcerária e condições degradantes das prisões, inquisitoriedade da persecução penal etc.) – acaba por se tornar um aliado da repressão penal, seu incentivador, ao fazer crer à massa que garantias fundamentais e direitos constitucionais são um pequeno obstáculo removível, um breve entretempo a ser logo superado em prol do punitivismo.”
Quem escreve isso, ainda em 2016, foi o juiz de Direito e professor da Universidade Federal do Pará, Marcus Alan de Melo Gomes, num artigo no qual faz crítica à cobertura jornalística da Lava Jato, publicado na Revista Brasileira de Ciência Criminal. Trabalho que ilustra bem a aptidão da imprensa em construir heróis nacionais, transformar investigações em novelas e dizer “amém” para julgamentos controversos, desde que o resultado seja de seu interesse.
Para Gomes, a imprensa tem se prestado historicamente a “cão de guarda do poder punitivo”, e com a Lava Jato não foi diferente. “O que a Operação Lava Jato veio confirmar foi algo que a crítica criminológica já aponta há vários anos: o emaranhado de conexões que aproxima a mídia do sistema penal, a ponto de falar-se mesmo em uma parceria entre esses dois universos, o comunicacional e o punitivo.”
No artigo, o juiz explica que há décadas a imprensa legitima “intensamente o poder punitivo exercido pela ordem burguesa, assumindo um discurso defensivista-social que, pretendendo enraizar-se nas fontes liberais ilustradas, não lograva disfarçar seu encantamento com os produtos teóricos do positivismo criminológico, que naturalizava a inferioridade biológica dos infratores. Esse fenômeno parece ser cíclico e se repete no contexto neoliberal de nossos dias, acentuado pelas nuances de um modelo de Estado mínimo na afirmação de direitos e máximo no controle penal, e por uma imprensa inserida nas engrenagens das grandes corporações comunicacionais, que não mais fiscalizam o poder, pois também o exercem. O cão de guarda das democracias atuais tem um especial interesse na legitimação do poder punitivo. E ele não apenas late. Também morde.”
“É preciso desmistificar”, portanto, “a atuação da imprensa que se apresenta como mediadora desinteressada” em relação aos produtos da Lava Jato. Porque, na prática, em vez de “informar para emancipar, a mídia noticia para distorcer e cegar”, escreve.
Segundo Gomes, o conluio Lava Jato-mídia soube utilizar o perfil dos investigados (empresários, agente públicos e políticos, em sua maioria ricos) para “criar no imaginário coletivo a ilusão de uma distribuição igualitária de justiça penal.”
“Cria-se um cenário visual muito apropriado ao espetáculo, que reforça o discurso da moralização da política ou da purificação da moral política pela via punitiva.”
Outro “elemento significativo” na análise é a interação nas redes sociais. “Trata-se de um meio em que vigora a velocidade, fluidez e superficialidade das relações e que proporciona uma imensurável reverberação de opiniões, versões e informação. Um verdadeiro catalisador de notícias que potencializa a aptidão dos mass media para construir a realidade social.”
“Pode-se dizer, à margem de exageros, que a cobertura midiática da Operação Lava Jato representa o marco de uma nova etapa comunicacional caracterizada pela dinâmica tecnológica que cada vez mais define o mundo e a vida das pessoas e que pode ser ilustrada pela seguinte equação: mídia x redes sociais = construção da realidade social. Ao já conhecido fenômeno do trial by media soma-se agora o trial by social network”, descreve.
O então juiz Moro, despachando da 13ª Vara de Curitiba, mais parecia personagem do “Big Brother da Justiça”, “o mais recente reality show em que a privacidade de investigados, ainda que nada tenham a ver com os fatos apurados, é exposta ao público sem qualquer propósito útil para a persecução penal.” É só lembrar do vazamento de conversas entre a ex-primeira-dama Marisa Letícia, esposa falecidade de Lula, e familiares.
Na opinião de Gomes, “impressiona” o volume de meios de prova obtidos pela Lava Jato que deveriam estar sob sigilo, mas acabam “prematuramente acessados pelos meios de comunicação.”
“Há desses episódios em que se pode mesmo vislumbrar uma preocupante cumplicidade entre a justiça e a mídia, como, por exemplo, por ocasião do levantamento do sigilo de um breve diálogo telefônico envolvendo a presidente da república Dilma Rousseff e seu antecessor na função, Luiz Inácio Lula da Silva, e cujo conteúdo dizia respeito à nomeação deste último para um alto cargo do governo. (…) É no mínimo surpreendente que tal providência [o vazamento do grampo para emissora do grupi Globo] tenha sido adotada poucas horas depois da captação do áudio da conversa, e sem qualquer finalidade útil para a investigação policial, ao menos aparentemente. A divulgação do diálogo pelos meios de comunicação foi quase instantânea. Não houve, nessa aproximação – melhor seria dizer parceria? – entre a justiça e a mídia, a satisfação de qualquer interesse da persecução penal.”
Gomes criticou ainda o vazamento de acordos de colaboração premiada, “em completo desrespeito à presunção de inocência”, inclusive atingindo pessoas que sequer são alvos de investigação. Para ele, a divulgação de pequenos trechos “proporciona eficazmente a seletividade da informação, revelando o que se pretende disseminar, e escondendo o que se deseja ocultar.”
“A consequência mais nefasta dessa associação é o que Bourdieu chama de ‘uma verdadeira transferência do poder de julgar’, efeito que, no âmbito da Operação Lava Jato, se percebe pela forma como as decisões proferidas pelo juiz da 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba satisfazem as expectativas punitivas alimentadas pela repercussão midiática da investigação. A usurpação da função judicial pela imprensa e a mudança indevida do locus do julgamento encontraram eco na própria atividade jurisdicional, em um consórcio harmônico em que um conta com o apoio do outro para justificar suas escolhas e ações.”
É toda essa “pirotecnia tecnológica dos meios de comunicação”, “que escraviza a atenção da massa e elimina qualquer pretensão de que o debate público seja pautado por reflexões críticas e isentas sobre a dinâmica do poder punitivo”, que contribui para a criação e adoração do mito do “juiz justiceiro, destemido, incensurável, resignado ao sacerdócio da magistratura, que compreende e concretiza os anseios coletivos de combate à impunidade dos poderosos.”
“Não sem razão, portanto, a construção midiática desse episódio posiciona, no outro extremo do espetáculo, aqueles que legitimam a ação do paladino da virtuosidade: os investigados e réus. (…) O embate do bem contra o mal, da virtude contra o defeito, do digno contra o indigno, se materializou com a representação do ex-presidente da república Lula por um boneco plástico inflável em trajes de presidiário, cuja imagem foi divulgada em praticamente todas as notícias sobre as manifestações públicas relacionadas à investigação.”
Foi nesse contexto de relação promíscua e cobertura jornalística desequilibrada que Lula foi sacado das eleições presidenciais pela Lava Jato, após a condenação no caso triplex. O final, todos sabem: sem o petista no páreo, Bolsonaro levou a eleição no segundo turno. E convidou Moro a fazer política sem toga.

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