segunda-feira, 24 de junho de 2019

A mí(s)tica do planalto central, por Dora Incontri




O fato é que os horizontes de utopia de comunidades, cidades, nações, que poderiam concretizar vivências mais fraternas, lugares de felicidade terrestre, acabam se transformando em infernos, com abusos, violência, submissão...


Nesse fim de semana último, 14, 15 e 16 de junho, estive em Goiânia, num evento organizado por espíritas da ala progressista, um Fórum Espírita sobre Direitos Humanos e Cultura da Paz. Dois grupos propuseram o encontro – o Aephus (Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais) e a Abrepaz (Associação Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura de Paz).

Significativo que esse movimento se faça em Goiás, onde justamente no ano passado houve alguns fatos polêmicos. Foi aí, num congresso espírita nada progressista, que o médium baiano Divaldo Pereira Franco, considerado por muitos (mas não todos) o maior líder vivo do espiritismo brasileiro, teve uma manifestação contra a chamada “ideologia de gênero”, junto com rasgados elogios ao tal juiz que anda agora nas denúncias do Intercept. Essa manifestação de Divaldo gerou uma reação crítica entre espíritas do Brasil inteiro que assinaram na época um manifesto, publicado na Carta Capital.
Também em Goiás, foi desmascarado o médium João de Deus que, embora não se autodeclarasse espírita, estava associado ao fenômeno mediúnico de supostas curas e que está preso, sob a acusação de abuso sexual de centenas de mulheres, numa história tenebrosa, que ainda não está totalmente desvendada.
No mesmo estado, também tem uma comunidade outro acusado em 2018 de assédio sexual, o líder Prem Baba. Ligado às tradições hinduístas, o guru paulista foi acusado de abuso, de enriquecimento às custas da devoção de seus fieis e apareceu numa longa reportagem da Revista Época, em 2018, com denúncias pesadas.
Isso tudo nos remete a um tema, que debati enquanto estive com esses companheiros progressistas de Goiás. É fato conhecido a abundância de comunidades, cidades, colônias espíritas, espiritualistas, orientalistas, esotéricas, espalhadas pelo planalto central ligadas a um misticismo exaltado, autoinvestidas de alguma missão espiritual. Prem Baba, por exemplo, tem um ashram em Alto do Paraíso.
Lembremos que a própria cidade de Brasília foi construída no planalto, por conta de um sonho de São João Bosco. No final do século XIX, o grande educador, fundador da ordem salesiana, hoje com inúmeros colégios no Brasil, teve um sonho em que passeava pela América do Sul, que ele nunca visitou em carne e osso, e via entre os paralelos 15º e 20º uma “terra prometida, de onde jorraria leite e mel”. Foi o local escolhido para a construção de Brasília, cujo patrono espiritual é João Bosco.
Essas visões de terra prometida, de utopia de lugares que seriam o porto de salvação para almas atormentadas, de cidades e comunidades predestinadas é algo que ressoa desde a terra prometida a Moisés (discurso recuperado pelos sionistas que refundaram Israel no século XX), e permeava também a visão dos descobridores (ou invasores) das Américas. O filme de Ridley Scott, 1492 – A Conquista do Paraíso, conta com bastante veracidade e beleza a história de Cristóvão Colombo, que chegou cheio de sonhos ao novo continente, achando que tinha alcançado um paraíso terrestre, e acabou com as mãos manchadas de sangue, matando indígenas e concorrendo para sua escravização. Colombo foi autor de um livro de Profecias, e ele se considerava um predestinado, ouvia vozes e atribuía a salvação de um naufrágio à intervenção divina.
O fato é que os horizontes de utopia de comunidades, cidades, nações, que poderiam concretizar vivências mais fraternas, lugares de felicidade terrestre, acabam se transformando em infernos, com abusos, violência, submissão, política corrompida…
Isso nos leva à ideia de que embora utopias, ideais, sonhos – aliados a visões e revelações espirituais –  possam ser importantes e até necessários para movimentar as pessoas no sentido da ação concreta, social, de construção de projetos, é indispensável que a espiritualidade seja permeada de crítica, seja aliada de consciência política e não se entregue à sujeição de gurus, profetas e líderes, que se autodeclaram detentores de verdades exclusivas.
Na própria época de Colombo, um grande frade dominicano, Frei Bartolomé de las Casas, exerceu esse papel de espiritualidade crítica. Tendo convivido pessoalmente com o navegador, e admirando-lhe a coragem e as boas intenções, foi o seu primeiro crítico e o primeiro a denunciar a matança dos povos originários na América central. Claro nos limites históricos do seu século (las Casas viveu entre 1478 e 1566), esse frade, o primeiro a ser ordenado na América, é considerado um dos primeiros defensores dos direitos humanos.
Por tudo isso, considero importante esse movimento de espíritas progressistas – e que sejam cada vez mais progressistas – em pleno Planalto Central – lugar dos latifúndios, lugar do agronegócio, dos garimpos e lugar onde está fincada Brasília, que decide os destinos da nação. Toca-lhes, como é tarefa de todos nós, semear racionalidade, crítica, espiritualidade consciente e ativista contra os desmandos, as injustiças, a profunda desigualdade social e as estruturas arcaicas e escravocratas de uma sociedade que se constituiu assim há séculos e assim ainda se faz em pleno século XXI.


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